Ontem foi sancionada a lei no. 14.245/2021, que ganhou o nome de Lei Mariana Ferrer em homenagem à influencer que denunciou um estupro em dezembro de 2018.
A lei prevê punição para quem constrange vítimas de violência sexual e testemunhas em julgamentos. Ao contrário do horror que aconteceu na audiência de Mari Ferrer em julho de 2020, a lei estipula que todos os presentes num julgamento devem assegurar a integridade física e psicológica da vítima.
Tem otários (que eu não sei se são otários pagos ou voluntários) que gritam que foi uma edição, que a gente não viu a audiência (de cinco horas!) inteira, que o juiz tão bonzinho perguntou a Mari se ela estava bem e se ela queria parar um pouco para tomar água. Como o patriarcado é gentil!
Na realidade, a fatídica audiência ocorreu em julho do ano passado, online, mas só veio à tona quando a jornalista Schirlei Alves, primeiro no Nd+ (de Santa Catarina) e em novembro no Intercept Brasil, escreveu sobre ela (pouco depois Schirlei foi demitida do jornal catarinense). O que a jornalista contou revoltou o Brasil. Primeiro que a sugestão de absolver o acusado veio do promotor, que agiu mais como advogado de defesa ao inventar o tipo penal "estupro sem intenção de estuprar". Segundo que Gastãozinho, o advogado do acusado, fez de tudo para ofender Mari, dizendo "graças a Deus não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus, e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher feito você" e condenando a "pose ginecológica" de Mari numa foto.
Bem antes de qualquer julgamento legal, uma médica legista analisou algumas fotos que Mari postava no Instagram e escreveu um laudo ressaltando "um traço narcisista e exibicionista". Quer dizer, todo e toda jovem que tira selfies, posa pra fotos e as posta nas redes sociais deve ter esse traço, não?
O que a médica legista e o advogado de defesa fizeram é clichê: culparam a vítima. Sugeriram que Mari ou foi responsável pelo que sofreu, ou que está mentindo, ou ambos. Qualquer pessoa que já viu algum filme relacionado a julgamento sabe como vítimas são tratadas. São vistas como criminosas e mentirosas. Às vítimas cabe relembrar nos mínimos detalhes uma das piores violências sofridas e serem questionadas, desacreditadas e culpadas a cada instante. Isso é cultura de estupro.
O procurador Vladimir Aras, muito ligado à defesa dos direitos humanos (tive a honra de compartilhar uma mesa com ele em Brasília sobre a aplicabilidade da Lei Lola), escreveu uma thread no ano passado, depois da terrível audiência, lembrando que em países que "adotam regras precisas de direito probatório", a escandalosa audiência em que Mari foi humilhada não aconteceria. Nos EUA, por exemplo, diz ele, existe o "rape shield act", que "visa proteger a vítima ou a suposta vítima de invasão de privacidade, de sujeição a estereótipos sexistas ou de humilhação, que poderia advir da revelação de detalhes de sua vida sexual pretérita. Evita-se a introdução de insinuações no processo decisório". Essa regra, que foi adotada primeiro em Michigan, depois foi reproduzida na Nova Zelândia, Austrália e Canadá. Mas aqui não havia nada do tipo.
Pra quem acha que o pior presidente de todos os tempos tem alguma coisa a ver com a lei só porque a sancionou, vale ressaltar que uma das funções presidenciais é justamente essa -- a de sancionar leis aprovadas pelo poder legislativo. Assim como o então presidente em exorcismo Michel Temer sancionou a lei no. 13.642, a Lei Lola, o genocida sancionou a Lei Mari Ferrer. Isso não o faz de maneira alguma autor da lei. O projeto de lei é de autoria da deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA) e outros 25 deputados. A lei foi votada e aprovada primeiro na Câmara de Deputados, e depois no Senado. Se o Capetão vetasse a lei, ela voltaria para o Congresso, que tem poder para derrubar vetos presidenciais.
É óbvio que quem acha que não existe estupro e que toda denúncia é falsa e parte de mulheres fingidas e oportunistas (todo misógino acha isso, exceto se a denúncia for contra alguém que ele não gosta) vai considerar a lei uma violência contra eles. Onde já se viu, não se pode desmascarar uma golpista numa audiência acusando um pobre homem inocente? Porém, qualquer pessoa que não seja incrivelmente estúpida ou monstruosa entende que a enorme maioria das vítimas de estupro não mentem e não merecem ser culpadas e tratadas como criminosas.
A Lei Mari Ferrer é, portanto, uma conquista de todas as mulheres. É uma conquista para Mari, que viu o acusado de seu estupro ser absolvido duas vezes, e que continua lutando para anular o processo e levá-lo ao STF, já que a justiça de Santa Catarina se mostrou bastante suspeita. Continue, Mari, não desista! Parabéns e obrigada pela sua garra, guerreira!
4 comentários:
Força para Mari Ferrer e punição para todos os culpados, o estuprador, os advogados, o juiz e até mesmo a legista. Que todos os canalhas paguem pelo mal que fizeram, o estuprador mais do que ninguém.
Força pra Mari Ferrer e todas as vítimas dessa violência. Não podemos desistir dessa luta. Justiça para Mari Ferrer, e que não haja mais vítimas.
a) Muita tristeza pelo o que ocorreu com Mari Ferrer.Mas a lei demonstrou a importância de elegermos mulheres progressistas para o campo legislativo. Vou apoiar os coletivos feministas
Vi tantos homens dizendo que essa lei só abrange vítimas e testemunhas e não o réu. Que é injusta e aumenta os privilégios das mulheres, porque os homens podem ser acusados falsamente por mulheres mal-intencionadas... Estou começando a achar que alguns que falam isso podem ser possíveis estupradores. Afinal o homem que sofre estupro não é juridicamente a vítima? Se sim, a lei abrange homens tb. Sou só eu que penso assim?
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