Publico hoje um relato da jornalista Patrícia Garcia, nossa correspondente de Montevidéu!
Nunca é um momento conveniente para se passar por uma pandemia mas tudo que é ruim pode piorar, se não há um comando forte e responsável das autoridades. Embora estejamos conseguindo conter o avanço da epidemia, muito pela responsabilidade e consciência do povo uruguaio, ainda temos grandes desafios diante desta situação.
Se as atitudes vindas da sociedade (como as “ollas solidárias” -- “panelas solidárias” --, para arrecadação de alimentos para famílias carentes) são certeiras, as ações do governo refletem sua constituição como grupo governante: confusas, mal-definidas, perdidas.
Quando se cede a negociação com grupos ideológicos distintos e de gamas muito variadas dentro de um mesmo espectro político em busca de uma vitória eleitoral, várias coisas podem perder-se em meio à incessante disputa de espaço dos partidos. A coalizão da direita, que governa o Uruguai desde o dia 1 de março, é composta por 5 partidos de direita com intensidades muito diferentes. Imaginem que o PSL, a Aliança Pelo Brasil, o Prona, o Novo e o PSDB se unissem para governar o Brasil. Esta é nossa situação aqui.
Obviamente, isso traria grandes conflitos na gestão e erros crassos a serem cometidos por pura pressão política em negociatas complicadas e cheias de interesses diversos. Em uma dessas pressões cedidas, talvez a pior para todos nós, o Cabildo Abierto (nosso “Aliança pelo Brasil”) conseguiu ganhar um dos ministérios mais delicados: o da saúde. Claro que isso gerou muita desconfiança e preocupação, pois é um partido militar de extrema-direita, colocando as mãos em um dos campos onde mais conseguimos evoluções sociais nos últimos anos.
Tanto a Lei do Aborto, como a digitalização dos serviços médicos, a adoção de médicos cubanos (responsáveis pelas exemplares clínicas oftalmológicas que temos, elogiadas pelo mundo todo), como nosso SUS (a ASSE - Administración de los Servicios de Salud del Estado), são assuntos delicados e que geraram preocupação à população quando Guido Manini Rios foi indicado como ministro.
Em um misto tão confuso e após uma eleição que surpreendeu até mesmo seus vencedores, ficou claro com muita rapidez que eles estavam perdidos inclusive em suas indicações para cargos de confiança. Os setores mais socialmente delicados da população, como saúde e vivendas (moradia), foram alguns dos últimos a terem seu quadro de administradores e diretores renovado. A ASSE, especificamente, e mesmo em meio à pandemia, foi o último órgão do governo a ter uma direção designada, quase um mês após a posse de Luis Lacalle Pou e já com a sombra da pandemia pairando sobre o país.
Diante disso, as orientações que recebemos com relação à epidemia, as medidas tomadas (vou explicar mais extensamente estas medidas em meus próximos textos) vieram exclusivamente da ala presidencial, o Partido Nacional e dos Colorados, nosso Novo, para as áreas econômicas. Essa demora em definir a nova direção e a fantástica tolerância baixa da sociedade uruguaia, especialmente em momentos de crise, geraram um panelaço já no primeiro mês do novo governo. Muitos julgam que as medidas de contenção são “frouxas” e pedem radicalização das determinações, como o “isolamento total” (no momento, estamos no chamado “isolamento voluntário”, onde pessoas, empresas e estabelecimentos têm liberdade para decidirem se entram ou não em isolamento e a maioria está optando por isso).
Já em meio a um caldeirão de emoções afloradas, e considerando o histórico curto mas conturbado do Cabildo Abierto (CA), era de se esperar que tivéssemos surpresas desagradáveis no meio do caminho. No início desta semana, um dos novos diretores de zona regional da ASSE, Fernando Silva (CA), deu declarações polêmicas em sua página oficial no Facebook, onde ele argumentava que os hospitais públicos eram “sujos e cheios de lixo”.
Quem conhece um pouco do Uruguai sabe que isso é uma grande mentira e ficou óbvio que o diretor falava para a camada mais abastada da população, que nunca pisou em um hospital ou posto público. Rapidamente a comunidade médica soltou sua nota de repúdio às declarações, enviaram vídeos para as TVs com a real situação dos hospitais e solicitaram um pedido formal de desculpas e a retirada do post e dos comentários posteriores da direção.
Quem conhece um pouco do Uruguai sabe que isso é uma grande mentira e ficou óbvio que o diretor falava para a camada mais abastada da população, que nunca pisou em um hospital ou posto público. Rapidamente a comunidade médica soltou sua nota de repúdio às declarações, enviaram vídeos para as TVs com a real situação dos hospitais e solicitaram um pedido formal de desculpas e a retirada do post e dos comentários posteriores da direção.
Ao serem ignorados pelo diretor e pelo partido, na tarde de ontem (21), médicos e diretores de hospitais e postos de saúde iniciaram uma onda de denúncias em massa, iniciada pelos médicos da Regional Este (coordenada por Silva) e acompanhados, até o momento de escrita deste artigo, por mais 4 regionais. Mais de 30 profissionais de alto cargo dos centros de saúde pública já apresentaram sua demissão e solicitam a imediata remoção de Fernando Silva da direção da regional. Junto a isso, também solicitam que o governo forneça mais testes, equipamentos e que restrinja a circulação de pessoas com mais ênfase, por medidas governamentais.
Essas renúncias em massa deixam o setor da saúde fragilizado em um momento delicado. No entanto, são prova de uma consciência social e de categoria pouco vista em outros lugares. A união dos médicos e sua defesa pelo seu trabalho na linha de frente da pandemia são exemplares para que outros lugares também se levantem contra medidas absurdas e comentários baixos vindos de autoridades.
Provavelmente, teremos uma coletiva da presidência entre hoje ou amanhã e, se eu pudesse apostar, apostaria em um recuo do governo, pois sua situação já está complicada junto ao povo e estamos em ano de eleições municipais.
Provavelmente, teremos uma coletiva da presidência entre hoje ou amanhã e, se eu pudesse apostar, apostaria em um recuo do governo, pois sua situação já está complicada junto ao povo e estamos em ano de eleições municipais.
Seja como for, essa atitude é mais um exemplo fantástico de como o povo tem força e de como essa força não pode ser ignorada pelos governos, uma vez que ela é descoberta na própria sociedade. Aqui nos fazemos ouvir, nem que seja no grito, pois seguimos fielmente um de nossos motes nacionais à risca: Uruguay no baja, ni se detiene (Uruguay não se abaixa nem se detém). E entendemos que Uruguai não é algo alheio, algo fora de nós. Uruguai SOMOS nós, o país é seu povo.
E esse povo carrega no sangue a vontade de lutar por seus direitos e por criar uma sociedade mais justa e melhor para todos. Aqui, já entendemos que só com um povo unido e com justiça social, um país vai longe. Espero, com todas as minhas poucas esperanças, que um dia nosso vizinho continental descubra dentro de seu povo a força inexorável de pessoas unidas em prol de um país melhor. Não custa sonhar.
E esse povo carrega no sangue a vontade de lutar por seus direitos e por criar uma sociedade mais justa e melhor para todos. Aqui, já entendemos que só com um povo unido e com justiça social, um país vai longe. Espero, com todas as minhas poucas esperanças, que um dia nosso vizinho continental descubra dentro de seu povo a força inexorável de pessoas unidas em prol de um país melhor. Não custa sonhar.
Em coletiva de imprensa realizada nesta tarde, o diretor geral da ASSE informa que Fernando Silva não continuará no cargo e será afastado sem, inicialmente, indicações futuras para outros cargos.
10 comentários:
A coisa mais estranha do mundo é constatar que existe a palavra "massivo" (maciço) em dicionário:
https://www.dicio.com.br/massivo/
http://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario
Acho que estou a ficar anacrônico, não se soía usar esse vocábulo...
O texto literalmente diz «onda de denúncias em massa».
São denúncias ou renúncias? Ou ameaças de renúncias caso não se tire o farsante do governo?
(Lola, podia separar com mais espaços os parágrafos do texto, que está um pouco embolado.)
Comparar uruguaios, argentinos, mexicanos, bolivianos, peruanos, entre outros hermanos latino americanos com brasileiros é complicado, pois estamos muito longe do nível de consciência, questionamento e senso crítico de nossos verdadeiros amigos. O povo brasileiro em sua maioria não tem o hábito da leitura, busca soluções imediatistas quando estão com problemas, devido a isso caem no charlatanismo religiosista e terminam como presas fáceis de vigaristas da fé, meios de comunicação em massa sensacionalista, por isso o Olasno boca de putrefação do Caralho tem tantos adeptos, alguns desprovidos de caráter e outros ingênuos. O Uruguai com seu povo consciente, questionador e de senso crítico aguçado sairá dessa da melhor forma possível, apesar do desgoverno, enquanto no Brasil, exceto o nordeste, será a devastação.
O Brasil tem outro problema: muita heterogeneidade na sua formação. Cada região nossa é praticamente um país diferente dentro do Brasil.
Cão do mato
Concordo em parte, pois a Argentina tem um território extenso e o povo tem uma consciência muito além do brasileiro, embora exista o preconceito dos portenhos com os moradores das províncias, indígenas, menciono porque conheci duas moças, hoje amigas da Patagônia confirmarem isso comigo, ambas com os traços de ascendência indígena.
O Brasil devia ser balcanizado com certeza.
Oi Lola, eu moro em Santa Catarina e o governador aqui cedeu as pressões de empresários, agronegócio e está tudo aberto, poucos com os devidos cuidados. Tem um vídeo de um shopping center em Blumenau bem interessante :quando abriram a porta parecia o estouro da boiada, seria cômico caso não fosse trágico, pois haviam muitos idosos. Seria interessante fazer um post a respeito.
Nesse pronunciamento do Bolsonaro parecia que o Teich ia cair e dormir ali mesmo a qualquer hora.
Já o Mourão, super à vontade...
(A Teresa da Agricultura também parecia bem com a situação.)
Demissão massiva no Planalto!
Moro em Penha, hj tive que ir em Navegantes e voltei assustadissima: praias cheias, pessoas sem proteção, mercados socados. Surreal!
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