sexta-feira, 24 de maio de 2019

CHICO, TE AMAMOS

Esta semana Deus, ou melhor, Chico Buarque de Hollanda, ganhou o Prêmio Camões 2018, a premiação mais importante da língua portuguesa. 
O júri levou em consideração, além dos livros de Chico (dos quais devo admitir que não sou fã), suas peças e letras de música. As letras valeram como poemas, assim como o Nobel de Literatura fez com Bob Dylan.
A premiação levou gente que vive xingando Chico, como Olavão e Lobão, a níveis estratosféricos de inveja e rancor. E, óbvio, fez todo mundo falar do Chico, que já é há décadas um dos artistas mais conhecidos e reconhecidos do Brasil (e um dos brasileiros mais famosos no exterior).
Então eu tive que contar, pela enésima vez, a ocasião em que estive na mesma pizzaria com o Chico em SP depois de um show dele, do Tom Jobim e do Milton. Fui à mesa dele e, emocionada, falei coisas como "Tudo que sou hoje eu devo a você". Quando vi o que ele escreveu pra mim, fiquei boba: "Lola, eu te amo. Chico Buarque de Hollanda". Eu contei tudo em mínimos detalhes aqui, há onze anos. Tudo isso se passou em janeiro de 1990, e já passou da hora de renovar esse autógrafo. 
Foi só eu contar isso que uma leitora no Twitter, a Sonia, decidiu me relatar a sua história: "Fiz uma doideira pra conhecer o Chico pessoalmente: hospedei-me no mesmo hotel em que ele estava, em Curitiba, durante a turnê Carioca em 2007. Gastei a maior grana, mas consegui! Amo o Chico!" Perguntei como foi, e ela: "História meio longa, mas resumindo: como hóspede, fiquei com minha amiga Rosana no lobby do hotel aguardando que ele saísse pro ensaio. Beijinhos, autógrafo (sem 'eu te amo', que isso é só pra Lola). À noite ficamos aguardando seu retorno para tirar uma foto com ele. Nisso, já tem uma multidão fora do hotel. Quando ele chegou, ficou pela grade da garagem dando autógrafos e nós aguardando no lobby. Eis que o empresário o puxa garagem abaixo, e adeus a oportunidade da foto. Inconformadas, entramos no elevador, e o ascensorista: 'Que andar?', e eu, revoltada: 'Vamos ficar pra cima e pra baixo'. O elevador para e quem está na porta?! Ele! Muita emoção e a foto com a máquina que eu comprara na lojas pernambucanas da esquina".
Sonia, Chico e Rosana, em foto num elevador de Curitiba em 2007
Enfim, já que estamos manifestando nosso amor por esse gênio, nada melhor que destacar algumas canções dele que não são tão bem compreendidas. Chico sempre inclui protagonistas mulheres em suas músicas, e por isso é quase clichê dizer que ele "entende a alma feminina" -- o que é bem essencialista, né? Afinal, o que é a "alma feminina"? Todas as 3,6 bilhões de mulheres no mundo caberiam numa só alma? 
Chico escreve muito sobre mulheres e seu lugar no mundo. Várias dessas mulheres são submissas, outras são independentes, fortes, divertidas. Vez por outra vejo pessoas loucas pra chamar Chico de machista só porque o eu-lírico de alguma de suas canções é machista. Tipo: "Sem Compromisso", que em seus shows Chico contrapõe com "Deixe a Menina". 
Uma canção do Chico que frequentemente vejo as pessoas interpretando errado é "Mulheres de Atenas". Elas não veem ironia quando o narrador canta "Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas", que seriam muito submissas. A bela canção, escrita em 1976, durante a ditadura militar, fala de uma sociedade patriarcal em que as mulheres não valem nada, não têm direitos, só geram filhos para seus maridos, eles sim "orgulho e raça" de Atenas.
Quem realmente pensa que mulheres em geral devem ser belas, recatadas e do lar provavelmente verão o refrão da música como literal. Não enxergarão a ironia. Pra eles, a sociedade de Atenas deve ser copiada. Eles ignoram que o mundo mudou, que a posição das mulheres não é mais como era na Grécia antiga, de mais de dois milênios atrás. Essa gente geralmente suspira e diz: "Antigamente é que era bom!". Se eu estou por perto, eu pergunto: "Bom pra quem, cara pálida?!"
Outra música do Chico campeã das interpretações falhas é a fantástica "Geni e o Zepelim". Tem gente que acha que Chico está sendo machista por ser um na multidão a jogar pedra na Geni. Já li quem interpreta Geni como sendo uma donzela. A canção deixa bastante claro que ela é uma mulher promíscua, uma prostituta, tanto que começa com com "De tudo que é nego torto... ela já foi namorada". Depois o coro da cidade confirma: "ela dá pra qualquer um". O coro é a opinião preconceituosa e condenatória da cidade, mas o que vem antes é talvez a percepção de Geni sobre ela mesma, um "poço de bondade". 
Ou talvez o narrador esteja sendo irônico, já que Geni ser um poço de bondade pode se referir a ela dar seu corpo a "quem não tem mais nada" (cegos, retirantes, detentos, lazarentos, moleques do internato, velhinhos sem saúde, viúvas sem futuro). Sem dúvida, ela é muito mais bondosa que o resto da cidade, pois Geni vai contra seus princípios (passar uma noite com o comandante do zepelim, enquanto "preferia amar com os bichos") para salvar a cidade. 
Ademais, Geni é bem tratada pela letra da canção ("aquela formosa dama", donzela, namorada), apesar de não ter voz. É a população da cidade que a maltrata.
O que muita gente não sabe é que Geni é uma travesti. Sem conhecer o contexto da música não dá pra saber só pela letra. Opa, dá sim! Mais uma prova de como aprendo com minhas leitoras. A segunda estrofe é reveladora. Geni "dá-se assim desde menina... na cantina, no mato. É a rainha dos detentos / das loucas, dos lazarentos / dos moleques do internato". Internatos pra meninos e meninas, prisões mistas? Isso não existe. Geni já foi um dos "moleques do internato". Já foi um dos "detentos", talvez numa prisão adulta.
A canção vem do musical A Ópera do Malandro, que Chico adaptou em 1978 da Ópera dos Mendigos (de 1918), e da Ópera dos Três Vinténs (de 1928), de Brecht e Kurt Weill (o hoje perdoado pela esquerda Reinaldo Azevedo disse, num de seus textos mais ridículos, que Chico plagiou as óperas). Na introdução do álbum duplo em que a música é tocada, Geni é apresentada como uma travesti, abreviação de Genival, seu nome de batismo.
No filme de 1986, uma adaptação do musical, quem interpreta Geni é o ator J. C. Violla. Neste caso, Geni é uma travesti apaixonada pelo protagonista malandro.
Como bem lembra Naomi Maratea neste post, "da mesma forma em que o Brasil é o país que mais acessa pornografia travesti e transexual, também é o país com a maior taxa de assassinatos trans". 
A canção é tão genial que ela nos faz cantar o refrão junto com a sociedade hipócrita e preconceituosa. Quem nunca cantou alegremente "Joga bosta na Geni"? Chico podia ter construído a canção pra gente se colocar no lugar de Geni. Mas não, ele quer que a gente se identifique com a cidade! Uma cidade horrível que diz que Geni -- uma mulher, uma prostituta, uma travesti, não importa -- é "feita pra apanhar" e "boa de cuspir". Mas quem merece cusparadas? Geni ou a sociedade que quer linchá-la?
E mais uma descoberta de uma leitora: a canção "Vida" do maravilhoso álbum do mesmo nome, de 1980, é Geni falando da sua existência. Nunca soube disso! "Geni e o Zepelim" inspirou a peça Geni, de Marilena Ansaldi e José Possi Neto. "Vida" foi feita para o espetáculo: "Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz / Toquei na ferida / Nos nervos, nos fios / Nos olhos dos homens / De olhos sombrios / Mas vida, ali, eu sei que fui feliz". 
Outra perturbadora canção de Chico é "Cala a boca, Bárbara". Uma excelente análise sobre ela foi publicada nos comentários de um blog que analisa músicas. Vou reproduzi-la aqui: 
"As produções de Chico Buarque se tornaram uma bandeira da canção de protesto contra o regime militar. Contudo, o fato de parte de sua obra estar em sintonia com aspectos da vida política do país, isso não impediu que suas músicas tivessem precioso conteúdo poético relacionado à mulher; temática que podemos exemplificar nesta canção: 'Cala a Boca, Bárbara' que revela a mulher ao mesmo tempo amante e parceira de luta e também como guerrilheira. Essa canção faz parte da peça de teatro Calabar. Quando a peça se inicia, Calabar já está morto, executado pelos portugueses, que não apenas exigiram que seu nome fosse apagado de qualquer registro como proibiram que fosse pronunciado. 
"Sua mulher, Bárbara, é quem canta a canção, e em quem ele está intensamente presente. “Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o 'ele' a que Barbara se refere. O 'cala a boca, Bárbara', se refere a proibição da pronúncia do nome de Calabar; porém, serve ao seu reverso, uma vez que é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma constelação, à força da repetição do refrão: 'Cala a boca, Bárbara'. Aqueles que lerem/ouvirem esta canção, incorporarão o ‘Cala a boca’ ao nome de Calabar. 
"E o nome de Calabar conterá o nome de Bárbara: fusão de amantes apaixonados. Funde-se aqui o ‘poeta do social’ e o ‘poeta do feminino’".
Ou, é claro, você sempre pode interpretar a música como um homem (o cantor) mandando uma mulher calar a boca.
Daqui a pouco, dia 19 de junho, Chico faz 75 anos. Nunca mude, Chico!

18 comentários:

Jac disse...

Chico é um gênio!

Conheço pouco de Bob Dylan, mas o que eu conheço não justificaria um nobel de literatura se comparado com a genialidade de Chico. Mas é aquela coisa... se não é americano ou inglês, não tem espaço nesse mundo (da mesma forma como quase nunca sabemos de grandes compositores colombianos, peruanos, poloneses, suecos, indianos, etc).

Ruiva disse...

muito amor no CHico e nocê! texto lindo, à altura do homenageado!

Ana Clara disse...

Bela explanação da trajetória de um brasileiro que utilizou de seus recursos culturais e patrióticos para se posicionar e levar uma legião de fãs ao mundo!

Ana Clara disse...

Bela explanação. Chico patriota que utilizou de sua genuína poesia para descrever os movimentos sociais e políticos do Brasil! É muito bom cheirar o mesmo ar brasileiro do Chico Buarque. Ele é nosso e somos D'ele

Kasturba disse...

Amo demais o Chico. Eu tinha um acordo com um ex namorado da época de faculdade: o único homem que eu estava autorizada a traí-lo com, era o Chico. E a unica mulher com quem ele estava autorizado a me trair com, era a Ivete... hahahaha
Quando eu de vez em quando ia passear no Leblon, ficava antenada... vai que, né? kkkkkkkk

Lúcia disse...

Sendo uma mulher vivendo os 72 anos "Ópera do malandro" e "Calabar" foram ouvidos, dissecados, chorados e ridos na mesma época em que vieram ao mundo. Sou fã incondicional do Chico (dos livros até encontro gosto) e fiquei emocionada com seu texto me fazer viajar por essas músicas

Anônimo disse...

Amo o Chico cada um tem o mito que merece o meu e o Chico

Anônimo disse...

Quando tudo está uma bosta, quando a esperança termina, ouço Chico e tudo volta a valer a pena. É um privilégio compartilhar o breve instante do mundo, do tempo, da vida com ele, mesmo sem nunca ter o encontrado, nem sido o objeto do seu amor, como foi a Lola. Assisti a um show apenas, comprei o ingresso mais caro e fiquei a alguns metros dele.. me emocionei tanto, foi inesquecível. Fabi.

Unknown disse...

Lola, obrigada!!! Seus textos são deliciosos e fazem crescer a nossa alma! Amo Chico. Novamente, obrigada por este texto maravilhoso!

Fagundes Neto disse...

A sociedade Brasileira vive distante dos seus melhores filhos, sempre foi assim,infelizmente.Chico, é um ponto fora de qualquer curva.Sua obra se faz reconhecida mundo a fora, enquanto no Brasil é apenas um esquerdista.Pobre nação, sem seus filhos, sem seus valores, sem Chico.

Anônimo disse...

"Contrução" é a melhor música e gravação da língua portuguesa, pqp

Merecia Grammy de Record e Song of the Year

Anônimo disse...

Geni e o Zeppelin na verdade é baseada no conto Bola de Sebo de Guy de Maupassant, vale a pena a leitura

Maria disse...

A primeira vez que ouvi 'Geni e o Zepelim' fiquei super impactada e me faz amar na hora o seu autor, que eu nem sabia quem era... eu estava recém chegada no Brasil e fazia relativamente pouco aprendendo português. Que tenha brasileiro achando que essa ou 'mulheres de Atenas' são musicas machistas mostra o ruim que está a educação, quanto faz falta a mínima capacidade de interpretação de texto... que bom que temos o Chico, e os poetas, e artistas, e gentes de qualquer oficio que não deixam(os) a estupidez ganhar (nem porque tenha ganhado a presidencia)

A Palavra de Deus disse...

Por isso me entristeço com a postura do Bolsonaro na questão da educação. Lembro quando na escola pública, minha professora de português analisava "Mulheres de Atenas" com a turma. Eu tive uma professora de física tão boa, que quase confundi minha vocação profissional com o desejo de ser alguém como ela. A educação pode estar uma balbúrdia (segundo bolsominions), mas é somente dela que surgem fagulhas de esperança para um país melhor.

mh disse...

Também é legal lembrar aqui o livro infantil "Chapeuzinho Amarelo". A menina protagonista vence o medo. É um Chico dando a maior força para as feministinhas

Denise disse...

Eu também sou fã do Chico Buarque! Não li todos os livros dele, mas tenho em casa o único livro infantil que ele escreveu, chamado Chapeuzinho Amarelo. É absolutamente fantástico! O texto é genial, as crianças amam, e pra completar ainda tem as incríveis ilustrações do Ziraldo.

Alan Alriga disse...

Chico Buarque um dos maiores cantores do Brasil, pena que a atual geração não quer nem chegar perto das músicas dele, falam que são músicas de velho branco opressor e preferem "músicas" empoderadas como: novinha quer pau, menina do bucetão e afins...

Iris Franco disse...

Não acho que na música Geni se trata de uma prostituta. Acho que são os olhares preconceituosos da sociedade que nos levam a acreditar que se trata de uma prostituta. Afinal, dar pra qualquer um é sinal de prostituição? Em nenhum trecho da música ela quis dinheiro em troca de sexo e, quando lhe é oferecido, ela recusa. Um banqueiro oferece dinheiro e ela recusa. Não acho que ela fazia sexo por dinheiro, acho que gostava de transar. Simples assim. Ocorre que, por muito tempo achava que Geni era prostituta, até sofrer o preconceito da sociedade e entender que uma mulher livre sempre será taxada como puta.