Agora que a tempestade passou, ainda é importante falar da absurda fúria que conservadores mostraram em setembro, quando atacaram o MAM e um artista, um homem nu que foi tocado no pé por uma menina (também atacaram muito a mãe da menina, claro).
Esse "homem nu", que foi vilipendiado nacionalmente, chamado de pedófilo durante semanas e ameaçado de morte 150 vezes, tem nome: Wagner Schwartz. A excelente escritora Eliane Brum, colunista do El País, conseguiu entrevistá-lo com exclusividade. Não vou reproduzir a entrevista aqui, pois é longa, mas recomendo fortemente. Leiam e reflitam: como seria se você fosse atacadx por uma horda de fanáticos que sabem que o discurso contra a corrupção (só a do PT) já deu o que tinha que dar, e então apelam para o moralismo hipócrita?
Eis o texto de Eliane Brum.
Em 26 de setembro de 2017, o brasileiro Wagner Schwartz, 45 anos, era um artista em plena realização. Ele abria o 35º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, um dos espaços mais prestigiados do Brasil. Sua performance, chamada “La Bête” (“O Bicho”), partia da obra consagrada de Lygia Clark, uma das mais importantes artistas da história do país.
Desde 2005, Wagner já tinha apresentado esse trabalho dez vezes no Brasil e da Europa. Como nas ocasiões anteriores, a experiência artística aconteceu. Para La Bête acontecer é preciso que o público deixe de ser um espectador para se tornar participante. Cada apresentação é diferente da outra porque é o público que conta uma história criada coletivamente, ao manipular o corpo nu do artista como se ele fosse uma das figuras geométricas com dobradiças de Lygia Clark.
Nos dias seguintes, porém, um pesadelo que Wagner não tinha se materializou.
Um fragmento da apresentação foi jogado na internet para provocar fogueira. Nele, uma mulher e sua filha pequena tocavam no corpo do artista durante a performance, como tantas outras pessoas da plateia. Mas, recortada e tirada do contexto, a cena foi convertida naquilo que não era. E Wagner foi chamado de “pedófilo” por milhões na internet.
Em busca de holofotes e eleitores, políticos sem escrúpulos gravaram vídeos e fizeram declarações nas quais condenavam o museu e o artista. Lideranças religiosas fundamentalistas, a maioria ligadas a igrejas evangélicas neopentecostais, semearam ódio ao estimular seus fiéis a se esquecer dos preceitos cristãos mais básicos e a condenar o artista e o museu como se estivessem “a serviço de Satanás”. Grupos ligados a movimentos extremistas de direita promoveram protestos diante do museu, com a adesão de anônimos enfurecidos, e chegaram a agredir funcionários. A internet virou uma praça medieval onde Wagner Schwartz foi linchado como “monstro” e “pedófilo”.
O artista teve que dar um depoimento de quase três horas na 4a Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia. Um inquérito foi aberto pelo Ministério Público de São Paulo para apurar se houve crime. A CPI dos Maus-Tratos, do Senado Federal, decidiu aproveitar o momento para faturar com seu próprio factoide, convocando os curadores, a mãe da criança e o artista para prestarem depoimento.
De repente, Wagner Schwartz foi transformado num criminoso. E não no autor de qualquer crime, mas num “pedófilo”, uma das figuras que maior repulsa causa na sociedade. Sem vítima, sem fato, portanto sem crime. Em nenhum momento, seus linchadores, os anônimos e os públicos, lembraram que estava ali uma pessoa, com uma história, com uma vida e com afetos. Não importava.
O que importava era manipular o ódio, a mercadoria mais abundante no Brasil atual, com objetivos políticos. Deslocava-se assim a atenção da gravidade do que se passava -- e se passa -- no país, para uma ameaça inexistente. O truque é velho, usado amplamente em regimes totalitários, como na Alemanha nazista. Mas parece que sempre sobra gente para aderir às manipulações mais triviais. O ódio, como se sabe, é burro.
De repente, o problema não era mais Michel Temer estar no poder mesmo com todas as denúncias de corrupção, mala de dinheiro e conversas comprometedoras. Nem o Congresso mais corrupto da história recente usar dinheiro público para fins privados, pessoais e particulares no balcão de chantagens que se tornou Brasília. Nem o fato de que direitos conquistados pela luta de muitos estarem sendo rapidamente deletados da vida dos brasileiros. Nem o desemprego e a falta de perspectivas. Não.
As milícias de ódio, a serviço de si mesmas e de alguns políticos, criaram uma ficção e milhões se esqueceram de raciocinar, aderindo ao linchamento e produzindo provas contra si mesmos. Vale a pena investigar por que caminhos, objetivos e subjetivos, se tornou possível convencer tantas pessoas a acreditar numa ficção de má qualidade, porque totalmente inverossímil, como a de que o problema do Brasil são pedófilos abrigados em museus e exposições de arte.
A catástrofe é que, a partir da adesão a uma ficção, criou-se pelo menos uma vítima real: Wagner Schwartz.
Quem vai responder pelo que fizeram com sua vida?
Wagner Schwartz recebeu 150 ameaças de morte por algo que inventaram que ele fez. Já não podia andar na rua sozinho. Para imaginar os efeitos sobre ele, basta fazer o exercício de vestir a sua pele por alguns minutos e pensar no que aconteceria com a sua vida, assim como com a vida da sua família, se da noite para o dia inventassem que você cometeu o crime da pedofilia. E seu rosto estivesse nas redes com a tarja mais terrível: “pedófilo”. Não é preciso de muita empatia para imaginar o efeito de algo dessa dimensão. E, mesmo assim, tantos se esqueceram desse exercício básico de humanidade e se tornaram protagonistas e cúmplices da violência contra ele, esta sim criminosa.
Nos dias que se seguiram, inventaram mais. Não bastava transformarem Wagner num pedófilo. Mataram-no com notícias falsas na internet. Em uma ele tinha se suicidado. Em outro, era morto a pauladas. Quem é capaz de imaginar o que é ler a notícia da sua própria morte na internet? O que isso significa para os familiares? Como se vive enquanto tantos o matam repetidamente?
Wagner decidiu fazer a performance em 2005, ao se deparar em Paris com uma das figuras geométricas de Lygia Clark presa numa caixa. Como conta nesta entrevista, ele queria libertar o “bicho” criado pela artista, para que a obra voltasse a ser o que é. Em setembro, no Brasil, Wagner descobriu o que acontece quando um corpo ousa sair da caixa num país tomado pelo ódio e por fundamentalismos, num país de linchadores.
Foi brutalizado. Mas se recusa a seguir sujeitado, convertido em objeto sem voz. Wagner acredita que a resposta mais importante aos ataques é dada pela continuidade do seu trabalho.
Neste ano, o Festival de Teatro de Curitiba propõe uma reflexão, que é também uma ação, sobre os ataques contra a arte. Wagner Schwartz, Elisabete Finger, performer e mãe da criança que participou de La Bête, Maikon K, artista que chegou a ser preso em Brasília durante a performance “DNA de Dan”, na qual seu corpo fica nu, e Renata Carvalho, atriz que foi atacada por ser travesti e encarnar Jesus Cristo no teatro, estão criando uma peça a partir das violências sofridas.
A campanha contra a arte e os artistas não tem nada de inocente. Ela inventa uma justificativa “moral” e gera um apoio popular para sustentar a redução dos investimentos em Cultura. O setor cultural, historicamente carente de investimentos, hoje está em situação desesperadora.
 |
Apoio a Wagner e ao MAM |
O momento vivido pelo país é tão boçal que, em vez de a população estar pedindo mais investimento em Cultura, parte dela ataca a arte e os artistas, praticamente reivindicando o estreitamento de sua própria vida e da vida de seus filhos. Quanto menos investimento em arte e cultura, menos acesso à arte e à cultura -- e mais desconfiança e medo do que não se conhece. A boçalidade do mal vive dias de glória no Brasil, com a colaboração ativa de uma parcela da população.
Nesta entrevista, Wagner Schwartz, coreógrafo que vive entre Paris e São Paulo, fala pela primeira vez sobre a violência que sofreu, uma violência cujos efeitos estão longe de acabar. Entre as primeiras perguntas, enviadas por email, e as primeiras respostas se passaram dois meses e meio. O que fizeram com ele teve um efeito brutal na sua vida, seu corpo dói. Quando toca no assunto, partes dele tremem. Qualquer palavra parece quase arrancada. Para quem foi silenciado ao ser transformado em objeto de ódio, falar tornou-se um ato penoso. Na véspera da publicação, sua voz ficou rouca, entrecortada, às vezes sumia.
Mesmo assim, Wagner fez o esforço do gesto, o de acreditar que ainda é possível conviver e dialogar no Brasil atual.