Três notícias relacionadas à violência contra a mulher que vi só entre ontem e hoje.
A marca de roupas Dafiti comercializou em seu site uma camiseta feia pracarai que dava "exemplos de pleonasmo": "subir pra cima, descer pra baixo, hemorragia de sangue, político ladrão, mulher burra".
Lindo, né? R$ 49,90 por uma camiseta que chama mulheres de burras, pra você carimbar na testa o seu machismo. Pra você vestir sua misoginia e sair desfilando por aí!
Diante das reclamações, a Dafiti explicou que o produto era da responsabilidade de um de seus parceiros, a Eiblu, que foi descredenciada. Retirou a camiseta do ar, pediu desculpas, e afirmou "repudiar qualquer tipo de manifestação de preconceito e discriminação". Menos mal, né?
Pois é. O problema é que uma rápida busca possibilita ver outras camisetas machistas da Eiblu vendidas pela Dafiti. Tipo esta, que pode ser interpretada como fazendo apologia ao estupro:
Esta fala da "evolução das inimigas", indiretamente chamando mulheres de vacas e incentivando a rivalidade entre as mulheres, uma velha estratégia do patriarcado (juntas somos mais fortes):
E esta, em inglês, pede que você seja legal com as pessoas gordas, porque um dia elas podem salvar a sua vida. No desenho, um urso persegue uma pessoa mais gordinha.
Quer dizer, a Eiblu parece ser uma fábrica mascu, estampando os preconceitos de sempre (provavelmente as camisetas racistas e homofóbicas estavam em falta). E a Dafiti comercializa essa porcaria sem saber? Não cola. Não tem isso de "Eu não sabia". A marca obviamente tem que saber o que vende e quem produz o que está sendo vendido (sabe trabalho escravo?).
Outra violência vem do tipo de "jornalismo" que eu pensei que (assim como o colunismo social) já estivesse extinto. É aquela seção que fotografa mulheres na rua e dita se aquele look está "certo" ou "errado". Porque alguém morreu e nomeou o jornalista Deus pra decretar verdades absolutas sobre moda.
Este print saiu no caderno "Zona Oeste" (mais popular) nos jornais O Globo e Extra.
É uma coluna chamada "Estilo", assinada por Lolô Penteado, pseudônimo da jornalista Roberta Ferraz. Não tenho qualquer outra informação sobre a coluna. Nem sei se esse print é deste ano ou de 2014, já que o professor de literatura da UFRRJ, Marcos Pasche, que postou o print no seu FB, havia tratado do tema numa palestra no ano passado.
De todo modo, a coluna traz duas fotos com o rosto coberto por um desenho, para evitar processos (afinal, você não pode tirar foto de alguém na rua -- ou na internet -- e ofendê-lo; existe uma coisa chamada "concessão do uso de imagem", ou "termo de cessão de direitos para uso de imagem", como qualquer pessoa que já apareceu na TV ou num vídeo sabe). A primeira diz:
"Visão do inferno: Dá vontade de rolar uma Lava Jato na produção dessa lola. Como pode sair de casa com legging e blusa curta? Um crime! E o blazer três números menores do que o dela, estourando o botão? Gente, para completar, a botinha torna o look ridículo. Não queria ser cruel, mas fui. Às vezes, é preciso um choque de realidade".
E a outra: "Não pode. Se você está naqueles dias em que não está a fim de se produzir, melhor não sair de casa então. Para não dar nisso. Nesse look deprimente, com bermuda apertada e barriga saltando, chinelão 'véio' e camiseta desbeiçada. Acho que nem para dormir sozinha essa produção passa. Eu ficaria com vergonha de mim mesma".
Chato ver meu nominho sendo usado pra isso, mas obviamente não é pessoal e duvido que a jornalista me conheça. "Lola" é um nome fofo que vem cada vez mais sendo usado para ser marca de roupas, cosméticos, cabeleireiros, animais de estimação etc. Aqui, como o pseudônimo da jornalista é "Lolô", suponho que ela use "lola" como sujeito de suas críticas, que nada mais são do que puro "body shaming". Em outras palavras, você pega uma parte do corpo de uma pessoa, quase sempre mulher, e a humilha por isso. Nas duas imagens, vemos uma mulher acima do padrão de beleza magérrimo. Logo, ela nem deveria por os pés na rua, segundo a colunista, porque é "um crime" usar blazer "estourando o botão", ou "bermuda apertada", "barriga saltando".
O que mais me choca é a ordem de que, se você não quer se produzir, não saia de casa. A rua é pública, não é uma passarela. Mulheres saem de casa por mil e um motivos, e não precisam estar impecáveis, muito menos para agradar homens ou colunistas de moda. Eu sempre lembro de alguma dessas colunas dizendo na minha infância e adolescência que a mulher têm que estar sempre maquiada, bem vestida, cabelo lindo, salto alto, até quando vai à padaria, porque nunca se sabe quando vai encontrar o príncipe encantado (o meu -- se é que alguém ainda acredita nessa asneira de príncipe -- eu conheci num torneio de xadrez, sem maquiagem nem salto alto).
É esse tipo de baboseira que se ensina às meninas desde muito cedo, que as mulheres devem ser decorativas, devem viver em função de seduzir homens. Até na hora de dormir sozinha precisamos estar maquiadas!
Não preciso nem falar no quanto esta "cagação de regra" é elitista.
Todo mundo conhece o "ditado" "Não existe mulher feia, existe mulher sem dinheiro", ou, mais direto ainda, "Não existe mulher feia, existe mulher pobre", associando assim, na cara dura, pobreza à feiura. Ai de você, mulher pobre, que não tem grana ou tempo para um banho de loja ou uma academia ou uma cirurgia plástica. Seu destino é ser fotografada sem permissão na rua para servir de exemplo negativo de aparência (e ai de você se você tem dinheiro -- meu caso -- mas tem mais o que fazer além de se render a um padrão inatingível de beleza. Você também será perseguida).
Mas sabe o que é bacana? É que o segundo look, de uma mulher com camiseta, bermuda ou short e chinelo, é o que eu mais vejo na rua. Aliás, não só na rua, mas nas universidades também. Grande parte das alunas se veste desse jeito, pelo menos aqui no Nordeste, que é quente pacas. E elas se sentem ótimas, confortáveis, poderosas. Óbvio que nem andar "desleixada" as salva de serem assediadas na rua, mas esse é outro assunto.
Só concordo com a última parte do texto da jornalista: "Eu ficaria com vergonha de mim mesma". Sim, estamos com vergonha de você, Lolô.
A terceira notícia é que a TV estatal do Marrocos deu dicas de maquiagem para cobrir marcas de violência doméstica. Em vez de combater e eliminar essa violência que afeta tantas mulheres pelo mundo, a emissora decidiu escondê-la. E não sei se o timing influi, mas também foi totalmente errado: o tutorial foi ao ar no dia 23 de novembro, dois dias antes do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.
O tutorial de maquiagem, em que a sorridente apresentadora instrui "Depois do espancamento, essa parte do rosto ainda está sensível, então não pressione", foi amplamente repudiada em todo canto. As feministas marroquinas começaram uma petição clamando para não cobrir violência doméstica com maquiagem. E a TV se retratou.
A conclusão bastante óbvia dessas três notícia recentes está no título do post. Não vou repetir o que vocês já sabem.