“Pierrot” tem uma história, não muito linear, mas tem: um executivo de TV deixa pra trás seu cotidiano burguês pra viver uma paixão com uma mulher envolvida com o crime. No meio do caminho o casal rouba e mata. Se a trama lembra o magnífico “Bonnie & Clyde, Uma Rajada de Balas” (1967), é porque Godard se inspirou no roteiro do filme do Arthur Penn. Mas o roteiro, pro Godard, é apenas o ponto de partida pra várias improvisações (bom, pra mim “Bonnie” é muito mais marcante que qualquer coisa do Godard, mas eu sou daquelas pra quem o cinema americano dos anos 70 é mais importante que Fellini, Bergman, Glauber Rocha e Godard – juntos. Pra mim o período dourado do cinema foi a década de 70 nos EUA. Eu me sentia mal por pensar assim, até descobrir que minha ídola Pauline Kael também achava isso).
“Pierrot” tá repleto de metalinguagem. O casal de protagonistas – interpretados por Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, ambos lindos de morrer – ou fala com a câmera ou faz um take depois do outro, sem cortes. Ficamos sabendo o nome de uma pessoa sem nada a ver com a história e sua profissão – figurante de cinema. E, numa festa, o diretor americano Samuel Fuller (de “Cão Branco”) discursa que cinema é “amor, ódio, violência e morte: emoção”. É bacana como a trilha sonora se interrompe, e volta nos momentos mais dramáticos. E é ótimo que a gente veja logo no início a personagem da Anna derrubando um frentista com um peteleco porque, quando ela aparecer com outra roupa, sem que tenha se trocado, a gente vai saber que está num filme com regras próprias, em que continuidade não vale nada.
Além das referências ao cinema, o filme traz inúmeras alusões a tudo e a todos, desde à Guerra do Vietnã ao assassinato do Kennedy. O teórico Fredric Jameson disse que “Pierrot” pode ter sido o primeiro exemplar pós-modernista do cinema. Faz sentido, porque o filme mistura a cultura de elite (Renoir, Velásquez, Joyce) com a baixa cultura (quadrinhos, música pop, o Gordo e o Magro), uma das marcas do pós-modernismo. E não dá pra negar que “Pierrot” continua atual e influenciando gente. Identifiquei pelo menos dois instantes em que a Uma Thurman em “Pulp Fiction” imita a Anna (um deles é quando ambas estão com a cara sangrando). Tarantino deve ser um grande fã, já que na parte dirigida por ele em “Sin City”, as luzes coloridas do Godard iluminando o carro também estão lá.
A maior qualidade de “Pierrot” é seu humor. Isso torna o filme leve e desnorteia o clima existencial/pretensioso causado por um dos personagens, que gosta de recitar poesias e escrever em seu diário. Eu, como a Anna, prefiro o Belmondo imitando um cowboy e atirando numa vietnamita, pra entreter um soldado americano e descolar uma grana. Vi o filme num museu de arte, cercada por americanos, e a maior parte ria das gozações godardianas contra os EUA. Mas liga a televisão na Fox daqui pra ver o que eles pensam de quem critica americano e de quem é francês...
Coisas que não cabem no texto mas eu quero dizer
- Impressionante como a moda se apropriou do termo “alta cultura”. “High culture” em inglês é comum, mas em português a gente tem que traduzir o termo pra “cultura de elite” ou “cultura elevada”. Bizarro.
- Na festa do começo de “Pierrot” os convidados discursam como se fossem um comercial ambulante. Nesse instante o filme pareceu datado (a festa lembra as orgias de “Blow Up – Depois Daquele Beijo”) e ao mesmo tempo muito atual. Hoje há empresas que pagam gente pra narrar comerciais em festas, pra se tatuar com logomarcas...
- Numa hora a Anna se olha no espelho e vê o rosto de uma mulher junto a um homem prestes a se jogar de um precipício a 100 km por hora. Olhei pro maridão e me identifiquei com ela, bien sur. Talvez tirando a parte dos 100 km por hora.
- Noutro momento fiquei preocupadíssima com uns bichinhos. Tá, talvez o pessoal não tivesse essas inquietações na época, mas no filme tem uma arara e uma raposa, ou será um cachorrinho, e eles ficam amarrados. Nada pior pra animais do que serem bichinhos de estimação de um casal narcisista em crise existencial. Porque a gente sabe que o casal vai viajar por aí e abandonar os coitadinhos, sem nem sequer soltar a corda. Passei o resto de “Pierrot” pensando na raposa...
- “Pierrot” faz entender por que os melodramas hollywoodianos adoram pintar uma paixão eterna como algo que dura alguns dias, e de preferência em que um dos dois pombinhos morra antes que os dois comecem a se odiar. A Anna quer ir pra Las Vegas. O Belmondo, pra Florença. Não tem como o relacionamento dar certo. Melhor morrer mesmo.
- Um diálogo no final não tem relação com o resto, mas é divertido. Um homem conta e canta sua vida amorosa. O quê, eu não mencionei que “Pierrot” tem números musicais? Pois tem.
- O último filme que vi do Godard antes deste foi o polêmico “Je Vous Salue, Marie”, de 85, se não contar um episódio de “Aria”. Vi por causa do escândalo que a Igreja Católica fez em cima, e gostei. Truffaut é muito mais acessível. Faça o favor de ver pelo menos “A Noite Americana”.
3 comentários:
O mais irônico foi que você recomendou logo o filme do Truffaut que fez o Godard e ele se separarem devido ao desprezo que o Godard sentiu.
Pierrot le Fou é muito, muito mais do que isso.
O filme não se inspira no roteiro de Arthur Penn já que Pierrot le fou é de 1965 e Bonnie e Clyde é de 1967.
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