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sexta-feira, 18 de março de 2022

O AMOR VENCE O ÓDIO

Muita gente elogiou a minha casinha reformada. Obrigada, queridas e queridos! Uma leitora deixou aqui um comentário dizendo que é aconchegante (e é mesmo, adoro a casa!). Isso foi demais pra um mascu, que deixou a seguinte mensagem:

Essas ameaças são tão patéticas... Estou pra juntar as ameaças mais recentes (de 2020 pra cá) e abrir um novo inquérito policial. São muitas. Continuo sem medo e dormindo muito bem à noite, obrigada.

Mas olha como são as coisas. Alguns minutos depois da ameaça, recebi o ebook de um livro recém-lançado, Mulheres fazendo história: da invisibilidade ao protagonismo (pode ser comprado aqui, apesar do preço um tanto salgado), pro qual dei uma entrevista. E as organizadoras Débora Karpowicz, Mônica Karawejczyk e Muriel Rodrigues de Freitas escreveram na contracapa e no prefácio:

"E, encerrando nosso livro, trazemos as palavras de Lola, simplesmente Lola, inspiração de tantas mulheres neste Brasil atual, militante Lola, escritora Lola, feminista Lola, a quem agradecemos pela generosidade e disponibilidade de nos conceder a entrevista, e saudamos com amor e sororidade. Boa leitura e que venham mais escritos, mais parcerias, mais amizades e mais protagonismo".

Eu é que agradeço o carinho, Débora, Mônica e Muriel!

Mas é isso: pra cada hater, pra cada mascu ameaçador, existem milhares de pessoas que nos dão muito carinho e reconhecimento. E, ao contrário dos mascus, essas pessoas têm coragem de assinar e dar a cara. É pra vocês que escrevo. 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

MULHER NA SEGURANÇA PÚBLICA DO CE: "ME ARREPIEI DE TANTO NOJO"

Na noite de quarta, um grupo de policiais militares do Ceará, lotados no 11o Batalhão de Polícia Militar, em Itapipoca, trocou pelo whatsapp uma série de mensagens machistas
Um PM diz sobre as policiais mulheres: "Elas eram pra estarem no quartel, pra tirar o estresse da gente, tá entendendo? Se chegasse estressado, elas estavam lá pra resolver a parada, tá entendendo?". Um segundo policial concorda: "Essa ideia foi boa, eu queria isso agora. Isso é uma ideia para chegar no Comando Geral. As voluntárias". Um terceiro PM acrescenta: "Essa tese aí, eu tinha pensado nisso. Sou obrigado a concordar. Os policiais sofrem muito do estresse psicológico, pressão psicológica muito grande na rua". Os áudios vazaram e viralizaram ontem (ouça aqui). 
A PM publicou uma nota atestando que "rechaça, veementemente, os comentários preconceituosos sobre a atuação da mulher policial na Corporação, proferidos por um de seus integrantes em aplicativo de conversas. O fato tomou repercussão nacional e todas as mulheres que compõem os quadros da Polícia Militar Ceará merecem respeito, são todas profissionais dedicadas ao mister de servir e proteger a sociedade cearense, seja nas ruas, dirigindo viaturas, comandando unidades operacionais, no serviço administrativo ou em quaisquer missões que a elas sejam designadas. O Comando Geral da Corporação nunca admitiu e jamais admitirá fatos que maculem a imagem da mulher policial militar".
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS-CE) também repudiou as conversas e alertou que "abomina qualquer conduta patriarcal, que pregue o desrespeito à mulher, colocando-a como uma figura inferior ao gênero masculino, seja em qual for o âmbito da sociedade. A Secretaria ressalta e reconhece o papel fundamental de todas as policiais militares femininas (PFEMs), assim como das bombeiras militares, policiais civis e servidoras da Perícia Forense, para a manutenção e fortalecimento da Segurança Pública do Ceará". A SSPDS abriu um inquérito policial militar (IPM) para investigar o caso. 
Entrevistei uma mulher da segurança pública daqui do Ceará. Como há pouquíssimas mulheres e ela não quer ser identificada, ela me pediu para não especificar seu cargo.

Minha pergunta: Qual foi a sua sensação ao ver e ouvir os comentários machistas dos seus colegas?
Resposta: Me arrepiei de tanto nojo e instantaneamente me veio à mente a ideia da possibilidade de ser estuprada no ambiente de trabalho. 

- Como uma mulher da segurança pública do Ceará, você tem que enfrentar esse tipo de machismo frequentemente?
Sim. Diria que quase que diariamente. Não existe mulher no militarismo que não tenha passado por algumas dezenas de investidas desrespeitosas. Os comentários vão desde colocações sobre nossa força física inferior até dizerem que alcançamos lugares altos porque temos o "quarto poder" (ou seja, temos vagina e conseguimos as coisas em troca de sexo com militares).

- Como é o tratamento dado às mulheres que trabalham na segurança pública? É muito diferente ao dos homens? E como é o relacionamento com os colegas homens?
Sim. Bem diferente. Quando uma mulher chega precisa provar seu valor. Mostrar o tanto que é forte, o tanto que aguenta. Quando um homem chega todos comemoram porque naturalmente já pensam que ele veio pra somar forças. Quando ela prova força os superiores se encarregam de fazê-la sofrer fisicamente até que prove seu ponto “mulheres são fracas”.
As mulheres estão constantemente se defendendo de algo. Além do mais, militares se utilizam da hierarquia rígida para assediar e humilhar mulheres hierarquicamente inferiores (sabem que é contra o regulamento militar bater de frente com um superior. Chamam isso de “inchar”). 
O relacionamento com alguns melhora depois que te conhecem melhor. Esses são os poucos amigos que temos. Mas com outros piora porque se você transa com militar você é puta, se você se posiciona contra, você é bruxa ou machona. Não tem pra onde correr. 

- Como diminuir o machismo dentro da segurança pública? Aumentar o número de mulheres já ajudaria?
O machismo aqui começa em um concurso em que são 14 vagas pra mulher e por volta de 240 (algo nessa quantidade) pra homens. A mulher que tira a 15a nota não entra no concurso, mas a nota da posição 240 de homens entra. Além disso, ajudaria se os outros homens se posicionassem contra esse comportamento de homens. Enquanto a grande maioria apoiar esse tipo de comentário, as poucas mulheres não terão força e serão chamadas de exageradas. Fora isso, um mecanismo menos burocrático e mais discreto pra denúncias de assédio sexual e moral contra mulheres. A denúncia é complicada, só homens a julgarão e ainda corremos o risco de sermos perseguidas por todos os homens (chefes) de mesmo pensamento machista. Lá vai a mimizenta, era só brincadeirinha. 

- Você acha que o machismo na corporação aumentou com a eleição de Bolsonaro, que faz tantas declarações sexistas, racistas e LGBTfóbicas?
Não acho que aumentou. Mas acho que esse machismo ficou mais “engraçadinho”. Se o presidente militar machista apoia isso então ele é nosso espelho. Nós apoiamos também! Uma excelente desculpa pra por pra fora toda a podridão que já existia em cada um. 

- Muita gente da esquerda diz que a polícia militar tem que acabar. Você concorda? O que deve ser feito para que a polícia de fato sirva à população, em vez de alvejar jovens e negros?
Não deve acabar. A PM tem muitos profissionais do bem. Acho que um grande problema é o treinamento fraco. É como equipar com estilingue (PM) quem vai lutar contra bazuca (crime organizado). Não digo dar armas mais poderosas, digo ensinar treinamento tático, tecnológico, etc. O policial não tem treinamento e equipamento de proteção compatível com a função. 
Sair atirando é a pior das reações, é desespero, despreparo emocional. Um bom treinamento é tático, tecnológico e seguro a todos. As horas de guarda são desumanas e ninguém pode reclamar senão é punido por seus superiores. Todos dependem dos seus salários, mas passam por fortes estresse psicológico e financeiro (salários baixíssimos) sem um acompanhamento efetivo do Estado. O índice de suicídio por profissionais da segurança pública é altíssimo. Já fui em alguns velórios no quartel. As péssimas iniciativas policiais também são, de certa forma, culpa de um país que não se importa com ninguém. 

terça-feira, 30 de junho de 2020

PARA APOIAR O BREQUE DOS APPS, NÃO PEÇA ENTREGAS AMANHÃ

Amanhã, dia 1o de julho, haverá uma greve dos entregadores de aplicativos. Já tem uma tag bombando no Twitter: 
#AmanhaTemBrequeDosApps. O jeito de apoiar é não pedir nenhuma entrega amanhã!
Reproduzo aqui a entrevista que o coletivo Juntos! fez com a entregadora antifascista Eduarda Alberto. Uma entrevista importante para entendermos os perigos e desafios desta profissão altamente precarizada

1. Como você se tornou entregadora de aplicativo? Tinha outra profissão antes?
Eu não sou entregadora de aplicativo, eu entrego para micro-empreendedoras e outros serviços freelancer que surgem. Porque eu não sou entregadora de aplicativo: o meu namorado até pouco tempo entregava por aplicativo e alguns companheiros nossos e amigos próximos também, e a questão da precarização do trabalho no aplicativo já era muito clara pra mim. Inclusive eles também pararam de entregar por aplicativo, então quando comecei a entregar, eu já tentei criar meios pra não depender de aplicativo, pra ter um trabalho mais autônomo mesmo. Eu tinha outra profissão antes sim, na realidade eu estudo arquitetura e todo o meu trampo é pra conseguir me manter estudando. Manter meu aluguel, comida e principalmente estudando. Eu tava trabalhando nos últimos tempos como bartender, e quando Crivella decretou a quarentena e os bares tiveram que fechar, na semana seguinte eu já tava fazendo entrega, porque eu precisava de uma fonte de renda. Então eu me tornei entregadora justamente por conta da pandemia. Então não fiquei de quarentena nenhuma semana sequer.

2. Como você vê essa ideia de empreendedorismo para aqueles que trabalham por conta própria?
Essa ideia de empreendedorismo pra quem trabalha por conta própria é uma mentira né, quando é contada pra pessoas que são prestadoras de serviço. Entregadores são prestadores de serviço, não têm um plano de negócio, não tem uma projeção de enriquecimento, até porque o que você ganha não consegue nem dar conta de todas as suas contas às vezes. Então isso é uma mentira que eu percebo que ela é contada pra você se sujeitar àquele trabalho mesmo, porque se você pensa, quem se sujeita a pedalar 6 km pra ganhar 3 reais, né? 
Você tem que estar acreditando numa mentira, então acredito que essa ideia do empreendedorismo é uma estratégia manipuladora mesmo, pra gente que entrega. Vende uma ideia de certa emancipação, de certo emponderamento, mas na verdade você não define se você quer as taxas que você vai receber, você não define absolutamente nada, você é um prestador de serviço e ponto. Você recebe uma demanda e aquilo é imperativo, você não decide nada sobre ela, você só pode cumprir.

3. Quais são as principais revindicações dessa paralisação?
Antes de tudo, acho importante deixar claro que eu faço parte do movimento dos entregadores antifascistas e essa paralisação que se tornou um chamado pra greve, não foi puxada por nós, mas a gente apoia. Nós fomos um movimento que surgiu inclusive no meio de todo esse processo de organização pra essa greve, mas não fomos nós que puxamos, apesar de apoiar 100%.
Mas vamos lá para as reivindicações dessa paralisação: está sendo reivindicado um aumento no valor das corridas e pacotes; aumento do valor mínimo por entrega; seguro de roubo, acidente e vida; bizarro até ter que reivindicar isso, porque não é garantido. Se você morre no meio da estrada, você vai estar morto com a logomarca do aplicativo do seu lado, fazendo propaganda, mas eles não vão ali te socorrer não. 
Então tem também o fim dos bloqueios e desligamentos indevidos. Por que isso tá entrando? É muito bloqueio indevido mesmo, tem gente que nem rodou no dia anterior, acorda pra poder rodar naquele dia e tá bloqueado porque supostamente fez uma entrega errada que a pessoa nem trabalhou. Só um exemplo da surrealidade. 
Tem também o fim do sistema de pontuação, esse sistema de pontuação, é muito injusto também porque às vezes quando a pessoa pede um lanche no aplicativo e dá uma nota baixa pra aquele pedido, isso pode bloquear um trabalhador que não vai ter como levar dinheiro pra botar comida em casa. E às vezes a responsabilidade é mais dos restaurantes do que dos entregadores. Além disso, tem também o auxílio pandemia que tá sendo reivindicado nessa greve: EPIs, porque os aplicativos não fornecem material de segurança, e licença também pros entregadores que pegarem coronavírus agora na pandemia.

4. Você vê uma relação entre essa mobilização e outras que tem acontecido nacionalmente, como os atos antifascistas e antirracistas?
Eu percebo sim uma relação porque está se criando um terreno de revolta. Esse terreno de mobilização já é um terreno de revolta, que tá acontecendo. Os atos antifascistas e antirracistas e antirracistas inclusive, foram o berço do nascimento dos entregadores antifascistas. Então pra além do nosso grupo de entregadores antifascistas, de qualquer forma tá sendo um momento no mundo todo de muita revolta. Em pontos chaves de disposição do mundo. E o próprio movimento nasceu no ato pela democracia, por isso é interessante também o termo antifascista no nosso movimento, até porque a gente percebe que se não tiver num regime político que você tenha a possibilidade de fala, de ter voz, de se organizar com seus comuns, não tem como tocar nenhuma luta.

5. Outras paralisações internacionais, como a de uberes que aconteceu ano passado, influenciaram vocês de alguma forma?
Nas discussões que eu vejo de motoboys e entregadores em geral, a maior referência tá sendo da greve dos caminhoneiros, que tá sendo citada de forma recorrente entre os motoboys. Talvez eles se percebam mais como entregadores também né, como pessoas que transportam mercadorias pelo território.

6. Como vocês tem se organizado a nível local e nacional?
De maneira geral os motoboys e entregadores têm se organizado por whatsapp. O whatsapp tem sido a maior ferramenta de troca de ideia, troca de informação. O movimento de entregadores antifascistas especificamente também se organiza bastante pelo whatsapp, mas a gente tem reuniões periódicas de todos os estados pra poder definir e alinhar nossos planos para o movimento. E o boca a boca, que é o mais utilizado de fato. Quando você tá com o aplicativo ligado, você pode ficar por 12h com ele ligado que não necessariamente você vai pegar vários pedidos. Tem várias pessoas que ficam com o aplicativo ligado e conseguem pegar 3 pedidos. Então esse momento de aguardo nos pontos que saem pedido é um momento potente pra troca de ideia e pra nossa organização.

7. Por que você acha que entregadores de aplicativo são principalmente homens?
Muito interessante essa questão, porque ela vai além dos entregadores de aplicativo. Eu acho que qualquer profissão que você tenha que vivenciar a cidade, as mulheres são menor quantidade no grupo de trabalhadores. Porque de maneira geral as mulheres são socializadas pra escala doméstica, a gente é criada pra ter medo da rua e a rua é realmente perigosa pra gente. Então é uma série de fatores que coloca os homens pro mundo e as mulheres pra escala doméstica, seja a socialização ou seja realmente os riscos que a rua oferece. 
Eu por exemplo, não rodo à noite, não posso rodar à noite. Porque eu percebo que eu ali, com uma bag nas costas, mexendo no celular o tempo inteiro, eu tô ali vulnerável. E alguns lugares eu não tenho total conhecimento, né? Então eu acho que essa questão do ambiente da cidade ser hostil pras mulheres de maneira geral, reflete nessa questão de ter mais entregadores homens, como em todas as outras profissões que são mais na rua.

8. Como as pessoas podem apoiar a mobilização de amanhã, dia 1?
Principalmente não pedindo no aplicativo. Não pedir no aplicativo é uma forma muito relevante de ajudar nesse dia. Mostrar realmente o impacto econômico que nós somos. Nós produzimos dinheiro pras empresas, né? 
Quem tá movimentando o dinheiro das empresas não são os acionistas, é quem faz o dinheiro pra eles que é quem tá na rua se expondo pra trabalhar. Então a gente consegue mostrar a nossa força com esse apoio, ninguém pedindo no dia 1°. E se der pra não pedir nos dias seguintes, ótimo também. Porque a gente tá querendo conseguir movimentar uma greve, então pra além de um dia.
E de maneira geral, eu tenho dito pras pessoas, quando for pedir um lanche por aplicativo que vier a pessoa entregar, pergunta pra ela se ela faz entrega por fora do aplicativo, aproveita pra pegar o contato dessa pessoa. Tem forma de apoiar por fora dos aplicativos e a ideia é fortalecer isso cada vez mais. E é isso, muito obrigada pelo interesse de ouvir sobre o movimento, de ouvir sobre nossa organização e pelo apoio. Também pelas perguntas muito boas, que foi uma delícia aqui de estar respondendo. Muito obrigada!
UPDATE: Veja aqui o sucesso que foi o #BrequeDosApps, o levante contra a precarização. Imagens de protestos por todo o país! (na foto acima, Fortaleza).

segunda-feira, 18 de março de 2019

POR QUE O MASSACRE DE SUZANO FOI UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA

Homenagens na escola onde ocorreu o massacre de Suzano

Na Uneb de Caetité, na Bahia
Logo depois do massacre de Suzano, chegaram por email uns trinta pedidos de entrevista da grande mídia. Respondi todos explicando que eu não estava em casa, em Fortaleza, e sim viajando e trabalhando, primeiro em Maceió, e depois em Caetité, sertão baiano. 
Algumas entrevistas eu respondi por email de madrugada, ao voltar das palestras. Outras eu agendei pra ontem, quando voltei. Foi o caso da do Fantástico, que dei pelo Skype (pra quem não viu a boa reportagem do programa, está aqui).
Continuo bastante sem tempo, porque esta semana vou para Brasília. Reproduzo aqui hoje uma das entrevistas que respondi de madrugada. Esta para o jornal O Dia, que foi publicada ontem. As perguntas são de uma jornalista que preferiu não assinar a matéria (o que é totalmente compreensível, visto que os chans adoram perseguir mulheres e que agora há um presidente no poder que comanda ataques orquestrados a jornalistas -- principalmente jornalistas mulheres).
O DIA - Em um texto no seu blog, você diz que o massacre em Suzano era uma tragédia anunciada, por quê?
Cabeçalho do fórum anônimo (que
ainda não estava na Deep Web) no
início de 2014: com imagens de
assassinos, o chan de Marcelo
pedia que seus frequentadores
"fossem heróis"
Lola Aronovich - Porque parece que de fato um dos atiradores frequentava o Dogolachan e avisou que iria cometer um massacre. Há prints. Porém, independentemente disso, eu monitorei o Dogolachan durante quatro anos, e não houve um dia sequer em que os membros não fantasiavam como iriam matar "a escória" (mulheres em geral, feministas em particular, negros, LGBT etc) assim que as armas fossem liberadas. Faz no mínimo quatro anos que eles cultuam "heróis" como o do Massacre de Realengo ou o do massacre na Califórnia, em 2014. Desta forma, eles tentam convencer outros rapazes a matarem para se tornarem "ícones" também.
Quando você entrou em contato com os chans? As ameaças começaram logo de cara?
Eu já havia sido atacada por alguns chans por ser feminista. Mas o chan que mais me perseguiu, o Dogolachan, foi uma criação do Marcelo (Valle Silveira Mello, fundador deste e de outros fóruns de disseminação de ódio) no segundo semestre de 2013, pouco depois que ele saiu da prisão. Só fiquei sabendo do chan no início de 2014, e isso porque Marcelo fez questão de me enviar um link. Ele queria que eu acompanhasse as ameaças diárias de morte, estupro e tortura contra mim.
Você procurou a polícia? Recebeu alguma orientação ou algum tipo de proteção na ocasião?
Marcelo e Emerson em
janeiro de 2016, em
Curitiba
O primeiro boletim de ocorrência eu fiz em janeiro de 2012, por conta das ameaças do site de ódio Silvio Koerich, mantido por Marcelo e Emerson (Eduardo Rodrigues Setim, parceiro de crimes de Marcelo). Depois eu fiz vários outros BOs (11, no total). Um dos primeiros foi contra o Dogolachan, no final de 2014, quando eu estava recebendo ameaças por telefone na minha casa. Eu levei os prints que tirava. Lá eles planejavam tudo. Marcelo dava ordens para um neonazista gaúcho, que hoje está internado num manicômio, me ligar. Nunca recebi qualquer orientação ou qualquer tipo de proteção de qualquer polícia, seja Civil, Federal ou Delegacia da Mulher.
Qual o perfil dos integrantes desses fóruns de propagação de ódio?
Montagem de assassinos com
cabeça do cachorro símbolo do
Dogolachan
A grande maioria dos channers (frequentadores de fóruns anônimos), dos Sanctos (como se autodenominam os homens do Dogolachan), e dos incels (celibatários involuntários, mais conhecidos como "virjões") mora com os pais. São adultos, maiores de idade, mas não estudam nem trabalham. Passam o dia espalhando ódio diante de um computador. Se eu fosse mãe e sustentasse um filho, gostaria de saber o que ele faz no computador o dia inteiro. Sei que não é fácil, há vários casos de Sanctos que batem na própria mãe. Mas tem Lei Maria da Penha para coibir isso.
Quais avanços você sentiu desde que a lei que leva o seu nome entrou em vigor?
Um mês depois que a Lei Lola entrou em vigor, Marcelo foi preso pela Operação Bravata. Mas não por causa da lei. As investigações haviam começado muito antes. A Lei Lola ainda está no começo. A Polícia Federal precisa levá-la mais a sério e nos orientar como denunciar e em qual casos. Um dos grandes avanços da Lei Lola é que, pela primeira vez, a palavra misoginia aparece numa lei.
Acredita que é possível combater esses fóruns?
Creio que seja impossível acabar com os chans, ainda mais na deep web, mas combatê-los é possível. Realmente, não há controle sobre o que acontece na Deep Web. Mas o Dogolachan existiu desde a segunda metade de 2013 até setembro de 2018 — ou seja, mais de cinco anos — na superfície. Houve algum tipo de monitoramento da polícia durante esses cinco anos? Algum agente tentou se infiltrar para descobrir a identidade dos criminosos? Por que não?
Eu não entendo como, no Brasil, um movimento legítimo e pacífico como o dos Sem Terra é considerado por muitos como uma organização terrorista, e um movimento de homens extremistas e frustrados na internet, que tem cometido centenas de crimes nos últimos anos, é visto como brincadeira de moleques. Mesmo na deep web, grupos extremistas devem ser monitorados. Eles são perigosos. Também os pais desses rapazes anti-sociáveis e revoltados deveriam saber o que seus filhos estão fazendo na internet.
Qual a importância da educação neste combate? 
É fundamental que uma discussão sobre questões de gênero, diversidade sexual, racismo, seja feita nas escolas. O caminho para uma sociedade com menos ódio tem que envolver a educação. Sabemos que liberar as armas, como este governo já começou a fazer, irá aumentar e muito o número de massacres em escolas e lugares públicos.
Qualquer estudo mostra que a liberação das armas aumenta a violência. Mas de um presidente que durante toda a campanha ensinou crianças a fazer arminha e até defendeu que crianças de 5 anos tivessem acesso às armas não se pode esperar nada de bom.
Como corporações responsáveis por redes sociais poderiam ajudar contra os crimes de ódio? 
As empresas da internet, como Google, Facebook, Twitter, WhatsApp etc também têm grande responsabilidade. Elas têm mecanismos não só para coibir o ódio, como também para incentivar os direitos humanos. É preciso que elas ajam e excluam perfis que espalhem ódio e mentiras. Já passou da hora de misóginos serem combatidos como terroristas.
As buscas pelos termos e por nomes de grupos da deep web aumentaram, vê isso como um ponto positivo ou um alerta?
Creio que um pouco dos dois. É algo positivo porque mostra que a população está se conscientizando de que esse perigo de fóruns de ódio existe. É também um alerta porque uma parte das pessoas que procura pode acabar influenciada pelos grupos.
Em um artigo recente seu (para o site The Intercept), a senhora menciona que Emerson Setim — um dos alvos da operação Bravata — está foragido na Espanha. Como  a senhora lida com um dos seus ameaçadores solto e agindo em um lugar que até as autoridades desconhecem os métodos?
Emerson sendo preso pela
Operação Intolerância em março 2012
Emerson não foi preso em maio do ano passado porque ele já havia fugido para a Espanha antes. Quando a Operação Bravata emitiu um mandado de prisão contra ele, ele já não estava mais no Brasil. Como havia um mandado para prendê-lo e ele não foi encontrado, creio que ele está foragido. Sei que o Jean Wyllys já enviou para a polícia a localização de Emerson em Madrid. Não entendo por que ele ainda não foi preso. Emerson é um lunático perigoso e um dos que me difamam e ameaçam, mas ele esta longe demais para representar um risco pra mim. Há channers mais perigosos.
Por exemplo, um rapaz chamado Breno Alves, de Franca. No dia 26 de fevereiro deste ano, ele me enviou uma ameaça de morte por e-mail dizendo que o Dogolachan vai contratar um pistoleiro para me matar em Fortaleza, e que deste ano eu não passo. Em junho do ano passado Breno gravou um vídeo com seu rosto dizendo que ele seria o próximo a se matar e me levaria junto com ele.
Eu sei o nome completo dele, sei a cidade onde ele mora, tenho imagens dele, ele faz parte do Dogolachan há anos, e faz dois anos agrediu um rapaz negro numa praça em Franca (saiu nos jornais locais; foi aberto inquérito). Eu passei tudo isso pra Polícia Federal e pra Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Por que a polícia ainda nem sequer o chamou para depor?