segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

FINS, COMEÇOS E INCERTEZAS

Depois de muita indefinição e recontagem de votos, a direita voltou ao poder no Uruguai, após quinze anos muito bem sucedidos da esquerda. 
Amo o Uruguai e torço para que não aconteça com o nosso país irmão o mesmo que aconteceu na Argentina de Macri e o que está acontecendo com o Brasil de Bolso. Por todo lugar que a direita governa deixa um farto rastro de destruição, de terra arrasada, de fim de direitos sociais e aumento da miséria e da concentração de renda.
Infelizmente, não tem como ser diferente com o Uruguai. Fica o desejo de que esses cinco anos passem rápido. E que o povo não se dê por vencido.
A jornalista brasileira Patrícia García mora em Montevidéu e participou ativamente de todo o processo eleitoral. Vejamos o que ela tem a dizer. 

Memórias eleitorais são naturais em nossa vida. Todo mundo tem alguma história sobre o assunto ou, ao menos, um momento curioso do qual se lembra. É o nosso processo de absorção de nossa própria condição cidadã, de ver a cada 4 ou 5 anos um país se unir em direção às urnas, pronto para mudar seu destino. Mas um pleito que deixe os corações de toda uma nação em animação suspensa durante quase uma semana certamente é algo que não será esquecido tão cedo. 
Pela primeira vez em sua história, o Uruguai enfrentou uma eleição tão disputada que, na noite de domingo (24/11) cada cidadão foi para sua cama com um grito preso na garganta, fosse ele de alegria ou de tristeza. Como uma final de Copa do Mundo, cada comitê, cada casa, cada sítio e rincón onde estivesse um uruguaio tinha uma televisão ligada e olhos atentos á apuração. 
Segundo as pesquisas prévias, cerca de 7 pontos separavam a Frente Ampla do líder, o Partido Nacional e sua coalizão de direita. A cada minuto que passava, cada comentário de especialistas, cada transmissão dos diferentes estados e cidades, cada ligeira mudança em porcentagens, deixava as pessoas à beira de seus assentos. 
Rezas, bandeiras, olhos marejados, abraços, o compartilhamento de um momento tão crítico mas ao mesmo tempo tão bonito. A esperança no olhar de cada frenteamplista que via a barra de porcentagem subir a favor de Daniel Martínez. 
A crença de que, por algum milagre curioso ou alguma dessas inconstâncias da vida, toda a tensão e a preocupação vividas nas últimas semanas iria se esvair em uma vitória inesperada. A direita, em lives mostradas a cada pouco de sua concentração, era apenas uma massa confusa em um silêncio sepulcral, sem poder acreditar que a eleição, que já davam por ganha, lhes estava escapando pelos dedos.
E então, o contador parou. Na tela, estática, risonha, debochada, uma coisa impensável para todos: 48.2% para Daniel Martínez; 48.2% para Lacalle Pou. As barras que não se mexiam, a apuração que caminhava voto a voto, a tensão no ar, toda cédula desdobrada e exibida sendo alvo de um escrutínio atroz de cada espectador. Mudanças ligeiras na porcentagem invadiram a madrugada até que, diante de tal cenário e então com uma diferença de 1% entre os candidatos, a Corte Eleitoral decidiu que havia um empate técnico. 
Uma longa semana de recontagem e novas apurações se estenderia e tiraria o sono de um povo que já se encontrava muito confuso com tudo o que estava acontecendo. Embora com uma porcentagem mínima de vantagem, Lacalle Pou, em seu discurso daquela noite, lamentava que a esquerda não tivesse admitido a derrota. Acontece que ainda não havia derrota. A Corte foi taxativa: empate e recontagem. O Uruguai não conheceria seu próximo presidente naquela noite.
O processo de recontagem não apenas contabiliza os votos já contados como também os chamados votos observados. Essa modalidade distinta praticada aqui é usada para abarcar votos de pessoas em condições específicas. Delegados eleitorais, gente que foi ao colégio eleitoral errado, pessoas com acessibilidade reduzida mas que ainda votam em locais sem acessibilidade, todos estes são os tais votos observados. Por ser um país pequeno, esses votos podem ser absolutamente decisivos em uma disputa. 
Na noite de domingo, Lacalle contava com pouco mais de 24 mil votos a frente de Daniel, mas ainda haviam 33 mil votos observados a serem avaliados e contabilizados. Mesmo que com uma chance muito pequena, ainda havia uma esperança de que a esquerda pudesse se sustentar pelo quarto mandato e dar continuidade ao trabalho desenvolvido.
Após quatro dias de angústia, em que toda Montevidéu fora engolida em suspiros de apreensão, ansiedade ou desânimo, a Corte Eleitoral declarou na quinta-feira que não havia mais chances de a Frente Ampla vencer as eleições. A diferença entre os votos já estava impossível de ser superada e Lacalle vencia com 34 mil votos de vantagem. Uma derrota para a esquerda, mas não exatamente uma vitória para eles. O presidente eleito está nas mãos de seus acordos com a coalizão e precisou ceder em pontos cruciais para que pudesse obter o apoio dos outros quatro partidos. 
Essa colcha de retalhos, que pretende ser a guia do país para os próximos 5 anos, composta de pedaços tão divergentes, é frágil como a democracia em nossa América Latina. Como um prenúncio de tempos complicados, a comemoração da vitória de Lacalle, na última sexta-feira, foi cancelada devido ao mau tempo. Aquele que citava o pai e dizia que “as nuvens passam mas o azul fica”, fechou-se em sua mansão em Carrasco com medo de algumas gotas de chuva. Pergunto-me o que fará quando quando for atacado pelo próprio monstro que criou. Uma quimera de dez pernas, purulenta e contagiosa, que facilmente se voltaria contra seu idealizador.
No sábado, o Lacallito, como muitas vezes é chamado em constante referência a ainda presente figura de seu pai, saiu para encontrar o povo em sua tão sonhada comemoração. Talvez por serem muitas as emoções deste momento para toda uma sociedade que respira política, ou talvez por pura distração, poucos observaram as nuvens carregadas do “céu azulado” da coalizão direitista. 
Enquanto Lacalle discursava um rol de palavras vazias e sem nexo, um homem ao seu lado observava tudo aquilo com o máximo de satisfação que seu rosto enrijecido podia demonstrar. O mesmo rosto que havia protagonizado uma intimidação a civis e militares alguns dias antes, em uma mensagem clara de “perseguição aos traidores”, ou seja, quem não votasse na coalizão. O comandante que era um herói para o ex-militar Carlos Techera, preso nesta última terça e autor de um vídeo em que ameaçava os principais dirigentes da Frente. 
O dono de um partido que, com menos de um ano de existência, conseguiu 3 ministérios num acordo secreto com a cúpula do Nacional. O porta-voz de uma onda de ódio e negacionismo. Em suas mãos esqueléticas, as invisíveis correntes que envolvem a excêntrica quimera, que ele alimenta com inclinações fascistas. 
Se ele decidirá ou não soltar este monstro dentro da sociedade uruguaia, só o tempo dirá. A nós, resta resistir.
Pela volta!

5 comentários:

Rodolfo Abrantes disse...

Sempre esse papo de resistência quando a esquerda perde . Eu resiste a 13 anos de um governo corrupto então , vocês podem aguentar qualquer coisa .

Cindy disse...

Tive a oportunidade de visitar a capital do Uruguai, tempos atrás, e com todos que conversei, não foi como aqui. Eles pareciam estar plenamente conscientes que a Esquerda vinha fazendo um ótimo governo e que a alternância no poder também pode ser bom. Nada desse negócio de "tirar a esquerda do poder, porque eles não prestam", como o discurso que ouço até hoje no Brasil. E tenho certeza de que se essa direita que chegou agora por lá não fizer um bom governo, será plenamente derrotado nas próximas eleições.
Mas isso, só o tempo dirá.

Espero só que esse cara não tenha o mesmo discurso louco que o presidente daqui.

Anônimo disse...

No Uruguai se repetiu o que ocorreu na Argentina em 2015, onde Macri ganhou por uma diferença de apenas 1,3% acima dos 50% e após 3 mandatos da esquerda. Não há a menor dúvida que as consequências serão as mesmas. E o discurso do presidente eleito não deixa margem a dúvidas. Falou em combater ditaduras na América do Sul. Ele não estava se referindo à ditadura civil-milita na Bolívia. Ele será mais um governo neofascista a participar do combate ao governo venezuelano e muito provavelmente romperá relações diplomáticas, como aliás já fez o Jorge Battle em 2002 com Cuba. E é incrível como os partidos de direita no Uruguai são controlados por oligarquias que se revezam no poder desde a independência do país. Lacalle além de ser filho de presidente, é sobrinho bisneto de membro do Colégio de Governo, na época que o país foi uma república colegiada nos anos 1950. E o presidente Jorge Battle que antecedeu a Frente Ampla, é filho de presidente, sobrinho neto e sobrinho bisneto de presidente!!!!! Ou seja tanto o partido Colorado como o Nacional são dominados por oligarquias agrárias-comerciais que representam o que de mais atrasado há nas sociedade latino-americanas!!!

Anônimo disse...

Durante os 13 anos pode ter existido corrupção, mas pelo menos havia igualmente oportunidades, representatividade, e se defendia os mais fracos. Esse governo é corrupto igual, envolvido com coisas muito mais graves, tipo, milícia, assassinatos, e ainda executa e promove uma política de extermínio das pessoas mais fracas e vulneráveis, acabando com os direitos de quem lutou muito para tê-los. Um governante que caga para quem votou nele abrir a boca, é o que é, pois ele falou tudo isso antes de ser eleito. E hoje eu vejo pessoas indignadas com a aposentadoria que terão, que perderam benefícios e reclamando que tudo está mais caro. Enquanto isso os ricos e influentes riem da cara do trabalhador comum praticando cada vez mais corrupção, manipulando todos os sistemas possíveis em todos os níveis, poderes, esferas e tudo mais que exista e que seja público. O Brasil é um país corrupto sem corruptos.

Anônimo disse...

Se a esquerda tivesse sido tão bem sucedida assim, teria continuado no poder. Simples assim.