A escritora e roteirista Daniela ficou sabendo que um grupo católico estava fazendo vigília contra o aborto legal em frente ao hospital Pérola Byington, em SP, perto de onde ela mora.
E o que ela fez? Prontamente organizou uma vigília para defender o hospital e as mulheres de modo geral. Aqui essa minha ídola (que conheço faz anos no Twitter, mas que só na sexta à noite tive o prazer de conhecer pessoalmente) conta como tudo aconteceu.
E o que ela fez? Prontamente organizou uma vigília para defender o hospital e as mulheres de modo geral. Aqui essa minha ídola (que conheço faz anos no Twitter, mas que só na sexta à noite tive o prazer de conhecer pessoalmente) conta como tudo aconteceu.
Óbvio que eu senti indignação na primeira vez que tomei conhecimento de um grupo de oração assediando pacientes do Pérola Byington, hospital de referência da mulher e um dos únicos em São Paulo que realiza o aborto legal. Mas tem tanta coisa no Brasil causando indignação que essa notícia se misturou com Marielle, Queiroz, queimada na Amazônia, óleo no nordeste, perseguição na cultura, agrotóxico na nossa comida. Era mais um dos horrores que vivemos todo dia –- e tanto horror parece que nos anestesia.
No dia 31/10/2019 eu li outra notícia informando que uma vítima de estupro coletivo tinha levado um mata-leão de um dos participantes do grupo. A moça nem estava no hospital para o procedimento do aborto legal, foi para tratamento psicológico. Quando assediada atravessou a rua para explicar aos fundamentalistas o que aconteceu a ela -– o estupro coletivo. Ouviu da líder deles Celene Salomão [uma reaça católica que agrediu Judith Butler no aeroporto de SP em 2017]: "Para mim você continua sendo uma assassina como todas as outras". A moça perdeu o controle, e um dos homens –- que eram a maioria na barraca --, deu um mata-leão nela, que quase a asfixiou.
No dia 31/10/2019 eu li outra notícia informando que uma vítima de estupro coletivo tinha levado um mata-leão de um dos participantes do grupo. A moça nem estava no hospital para o procedimento do aborto legal, foi para tratamento psicológico. Quando assediada atravessou a rua para explicar aos fundamentalistas o que aconteceu a ela -– o estupro coletivo. Ouviu da líder deles Celene Salomão [uma reaça católica que agrediu Judith Butler no aeroporto de SP em 2017]: "Para mim você continua sendo uma assassina como todas as outras". A moça perdeu o controle, e um dos homens –- que eram a maioria na barraca --, deu um mata-leão nela, que quase a asfixiou.
O Hospital Pérola Byington fica a pouco mais de duas quadras de casa. É minha comunidade, meu quintal. Eu li a notícia e minha reação foi "Eles estão fazendo isso ao lado da minha casa e eu não vou fazer nada?". Eu não posso fisicamente limpar o óleo do Nordeste ou apagar os incêndios na Amazônia. Mas impedir que um grupo de fundamentalistas assediassem mulheres doentes e fragilizadas a duas quadras de casa não me soava impossível. Não deveria ser.
Fui na mesma hora, já passava das 21:30, até a praça onde o acampamento dos fundamentalistas estaria. Queria primeiro analisar quem e quantos eram. O acampamento não estava lá. Então deduzi que eles montavam de dia a barraca e desmontavam à noite. No dia seguinte acordei de manhã cedinho e me postei na praça às 6:30 da manhã. Só esperando. Enquanto esperava aproveitei para conversar com a tia do dogão que funciona na praça e com os moradores em situação de rua do local. Todos me disseram que durante o dia não havia mais do que quatro pessoas na barraca. À noite o número podia aumentar para uns 15 homens que chegavam. Naquela sexta-feira eles chegaram às 7:30 da manhã. Daí o plano já estava se materializando: chegar antes deles e ocupar seu espaço.
Assédio a pacientes do hospital: religiosos colocavam fetinhos de plástico nas mãos delas |
Falei com alguns amigos e soltei um chamado na minha conta do Twitter. O chamado ganhou até mais repercussão do que eu previa e contive os mais animados que já queriam criar eventos no FB ou espalhar na imprensa. Eles eram poucos, com dez pessoas já seríamos mais e teríamos o elemento surpresa. Às 7 da manhã chegamos em quase 15 pessoas. Alguns amigos, outros que seguiram o chamado no Twitter.
Lola, uma jovem mãe, trouxe a barraca que acabou sendo nossa por nove dias. Acabei a apelidando de George Soros, porque foi o maior patrocínio da vigília. Montamos a barraca exatamente no lugar onde eles montavam a deles. Só às 8 da manhã chegou Celene e um homem para montarem a barraca. Ambos ficaram do outro lado da rua, trocaram mensagens e chamaram a polícia.
Lola, uma jovem mãe, trouxe a barraca que acabou sendo nossa por nove dias. Acabei a apelidando de George Soros, porque foi o maior patrocínio da vigília. Montamos a barraca exatamente no lugar onde eles montavam a deles. Só às 8 da manhã chegou Celene e um homem para montarem a barraca. Ambos ficaram do outro lado da rua, trocaram mensagens e chamaram a polícia.
Os policiais falaram conosco e pela primeira vez ouvimos que "eles tinham autorização" para ficar naquele lugar, mas se quiséssemos, poderíamos ficar na praça, só levando a barraca mais para o lado. Fiquei indignada com o fato de a prefeitura ou subprefeitura ter dado autorização para esse tipo de grupo, mas movemos nossa barraca uns 20 metros para a esquerda. Eles não chegaram para montar a deles. Ficamos na expectativa.
Transmiti vários vídeos ao vivo no Twitter sobre a situação, mais gente foi chegando. Polícia veio de novo, mas dessa vez só para contar que a líder do grupo estava dando um piti na delegacia porque "era dever da polícia" nos expulsar. O subcomandante do batalhão e todos na delegacia tentaram explicar que não havia meios legais de nos tirar da praça -– afinal, estávamos ocupando um lugar público. No final da manhã já tínhamos a Letícia, uma jornalista da BBC nos acompanhando, e o Henrique, que normalmente presta serviço de frilas para vídeos de sites de notícias, mas que foi cooptado para documentar nossa vigília pela cineasta Juliana Reis, que também estava lá.
Eu já estava achando que eles tinham desistido ou que Celene tinha ido até a igreja arrumar mais gente para a vigília. Às duas da tarde vimos uma moça do grupo deles do outro lado da rua. Essa moça acabou atravessando a rua até a praça, se prostrou de joelhos e começou a rezar de maneira frenética. Letícia foi tentar saber se ela queria declarar alguma coisa, mas quase apanhou. Logo depois a barraca deles foi armada.
Transmiti vários vídeos ao vivo no Twitter sobre a situação, mais gente foi chegando. Polícia veio de novo, mas dessa vez só para contar que a líder do grupo estava dando um piti na delegacia porque "era dever da polícia" nos expulsar. O subcomandante do batalhão e todos na delegacia tentaram explicar que não havia meios legais de nos tirar da praça -– afinal, estávamos ocupando um lugar público. No final da manhã já tínhamos a Letícia, uma jornalista da BBC nos acompanhando, e o Henrique, que normalmente presta serviço de frilas para vídeos de sites de notícias, mas que foi cooptado para documentar nossa vigília pela cineasta Juliana Reis, que também estava lá.
Eu já estava achando que eles tinham desistido ou que Celene tinha ido até a igreja arrumar mais gente para a vigília. Às duas da tarde vimos uma moça do grupo deles do outro lado da rua. Essa moça acabou atravessando a rua até a praça, se prostrou de joelhos e começou a rezar de maneira frenética. Letícia foi tentar saber se ela queria declarar alguma coisa, mas quase apanhou. Logo depois a barraca deles foi armada.
A partir daí começou nosso dia-a-dia. Nós de um lado, eles de outro, sem qualquer interação. Com nossa presença eles se entocaram dentro da barraca, inclusive fecharam a barraca para não ver nosso lado. Só saíam perto do meio dia e mais ou menos às 18h para fazer as rezas mais "públicas". O fato de estarmos lá acabou com o assédio às mulheres e aos profissionais do hospital, se bem que o constrangimento continuou, porque uma barraca daquelas em frente a um hospital era de fato um constrangimento.
Diversas pacientes entraram em contato comigo ou por mensagem ou simplesmente atravessaram a rua para me dar um abraço. Até mulheres que não foram ao hospital em busca do aborto legal, mas de outros tratamentos, inclusive contra o câncer, contaram que foram assediadas. Porque o assédio contra o hospital era generalizado. Eles não perguntavam o que a mulher ia fazer por lá, não há formas de distinguir uma paciente psiquiátrica ou que vai fazer quimioterapia de outra que vai fazer aborto legal. Se era mulher e ia para o hospital, bastava para que realizassem o assédio.
Diversas pacientes entraram em contato comigo ou por mensagem ou simplesmente atravessaram a rua para me dar um abraço. Até mulheres que não foram ao hospital em busca do aborto legal, mas de outros tratamentos, inclusive contra o câncer, contaram que foram assediadas. Porque o assédio contra o hospital era generalizado. Eles não perguntavam o que a mulher ia fazer por lá, não há formas de distinguir uma paciente psiquiátrica ou que vai fazer quimioterapia de outra que vai fazer aborto legal. Se era mulher e ia para o hospital, bastava para que realizassem o assédio.
O grupo de rodízio da contra-vigília, que começou com 15 pessoas, inflou para quase cem em poucos dias. Os vizinhos começaram a aparecer para oferecer ajuda, gente que mora ao lado da minha casa e que eu nunca tinha trocado um oi, começou a abrigar as cadeiras, a barraca, a acordar cedo para montar nossa estrutura. Toda hora aparecia alguém com água, comida, abraço.
Recebemos apoio de vereadores como Juliana Cardoso, Mônica Seixas e Eduardo Suplicy. Mônica foi fundamental em nossa defesa, Isa Pessoa idem. A equipe da Sâmia Bomfim foi incrível, chegou a nos ajudar com um único policial que ficava inventando a história de "eles têm autorização e vocês não" (confirmamos com a prefeitura e subprefeitura que não existia qualquer autorização, até porque não era necessária). Os moradores em situação de rua da praça já ficavam conosco, almoçávamos e jantávamos juntos.
Católicas, evangélicas, gente com todo tipo de credo sentou conosco para nos dar apoio. As senhoras das Linhas de Sampa ficaram três dias fazendo bordados lindos por lá. Lola Aronovich apareceu por lá também para dar força. Muita gente que eu admirava de longe se materializou ao meu lado e isso foi importante demais. E muita gente anônima.
O entregador de Rappi que passou sua hora de descanso sentado com a gente "Porque era importante". A dona Cleide que ficou três dias consecutivos na barraca –- após um transplante de córnea, porque disse que não tinha nada melhor para fazer em casa.
Recebemos apoio de vereadores como Juliana Cardoso, Mônica Seixas e Eduardo Suplicy. Mônica foi fundamental em nossa defesa, Isa Pessoa idem. A equipe da Sâmia Bomfim foi incrível, chegou a nos ajudar com um único policial que ficava inventando a história de "eles têm autorização e vocês não" (confirmamos com a prefeitura e subprefeitura que não existia qualquer autorização, até porque não era necessária). Os moradores em situação de rua da praça já ficavam conosco, almoçávamos e jantávamos juntos.
Eu no meio de guerreiras |
O entregador de Rappi que passou sua hora de descanso sentado com a gente "Porque era importante". A dona Cleide que ficou três dias consecutivos na barraca –- após um transplante de córnea, porque disse que não tinha nada melhor para fazer em casa.
Teve coisas ruins? Teve. TFP [Tradição, Família e Propriedade] incitando carros a buzinarem na frente do hospital, usando megafone e gaita de fole, sem a menor empatia com as mulheres doentes logo a frente deles.
Teve também a realização de que a maioria das vítimas de estupro era criança. Ver os carros de polícia chegando com meninas, algumas até bebês, no hospital, foi das coisas mais tristes que testemunhei na vida –- e também me fez perceber a importância da resistência pacífica. Criar conflito com eles em frente a um hospital em que crianças chegavam depois de passar por tanta violência era a última coisa que eu queria fazer.
Teve também a realização de que a maioria das vítimas de estupro era criança. Ver os carros de polícia chegando com meninas, algumas até bebês, no hospital, foi das coisas mais tristes que testemunhei na vida –- e também me fez perceber a importância da resistência pacífica. Criar conflito com eles em frente a um hospital em que crianças chegavam depois de passar por tanta violência era a última coisa que eu queria fazer.
No sábado, penúltimo dia da vigília dos fundamentalistas, realizamos uma ação para ocupar e celebrar a praça: roda de conversa, intervenções artísticas, plantamos um canteiro novo e encerramos uma vaquinha para ajudar os moradores de rua da praça. Os fundamentalistas rezaram mil ave-marias. Único momento ruim do dia foi quando um menino da vizinhança atravessou a Brigadeiro Luís Antônio correndo, sem olhar para o lado. Ele foi atropelado. Foi muito perto de onde eu estava. Todo nosso grupo, que naquela hora reunia mais de cem pessoas, parou para prestar socorro ao menino ou –- no mínimo –- com o susto de ver uma criança sendo atropelada.
Representantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB estavam ao lado da barraca fundamentalista naquela hora, e nenhum deles parou de rezar com o acidente. Uma das advogadas questionou uma senhora: "Mas vocês não são pela vida? Uma criança acabou de ser atropelada". Segundo a advogada a senhora respondeu: "Mas esse é do demônio". Qualquer pessoa que fosse ao nosso lado da praça era do demônio.
Representantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB estavam ao lado da barraca fundamentalista naquela hora, e nenhum deles parou de rezar com o acidente. Uma das advogadas questionou uma senhora: "Mas vocês não são pela vida? Uma criança acabou de ser atropelada". Segundo a advogada a senhora respondeu: "Mas esse é do demônio". Qualquer pessoa que fosse ao nosso lado da praça era do demônio.
Lado do bem, segundo dia da vigília |
E só foi preciso isso: desse pouco de atenção pude descobrir na internet uma família desesperada em busca de Brayan. Na segunda-feira, depois de conversar com o próprio Brayan, entrei em contato com a família dele. No mesmo dia eles vieram de Miracatu para São Paulo para resgatar o moço.
As doações para os moradores da praça ainda estão acontecendo. Hoje vamos comprar os kits com roupas. Montamos um grupo de vizinhos para continuar cuidando da praça. Vamos pressionar por uma lei que impeça que manifestações políticas ou religiosas aconteçam em frente a hospitais e clínicas -– isso já acontece em vários países da Europa e foi suficiente para acabar com essa história de grupo fundamentalista em frente de clínica assediando mulheres.
Além de tudo, temos que brigar para que todos os hospitais do SUS com as condições necessárias ofereçam o procedimento de aborto legal. Se o SUS prevê o procedimento, nenhum diretor de hospital pode negá-lo se o hospital oferece condições para tanto.
Além de tudo, temos que brigar para que todos os hospitais do SUS com as condições necessárias ofereçam o procedimento de aborto legal. Se o SUS prevê o procedimento, nenhum diretor de hospital pode negá-lo se o hospital oferece condições para tanto.
O que era uma luta, virou várias. Mas em contrapartida, o que era uma pessoa, viraram milhares. Coragem é contagiante. E só com coragem a gente muda o Brasil.
12 comentários:
Que inspirador Daniela!Vc é uma pessoa incrível!
Obrigada por isso, estamos precisando de atitudes assim. São um respiro ótimo no meio de tanto caos!
Que lindo, Daniela!
Lindo...
Lola, Resistiremos e Lutaremos!
Me pergunto como essa gente pode ter tanto tempo livre.
Que história maravilhosa!!!! Inspirador!
Daniela, toda minha admiração e apoio! Você e sua equipe são pessoas maravilhosas, incríveis, e agradeço por todas as mulheres e meninas que encontraram força e amparo na atitude linda de vocês! Obrigada mana! Admiro muito quem mostra força através da paciência e da bondade. Minha vontade seria chegar já jogando pedra na cabeça desses porras pró-nascimento-e-que-se-dane-depois.
08:58 é porque não fazem porra nenhuma da vida. Vivem sendo sustentados pelas ovelhinhas, pelo dinheiro público a base de pistolão ou pela família, ficam entediados e vão fazer mal aos outros pra passar o tempo.
Daniela, parabéns pela coragem para agir e enfrentar esses conservadores. Sua atitude ajudou a construir uma sociedade melhor para as mulheres. Um grande abraço e que a Deusa te proteja.
Gente, que coisa mais linda! To verdadeiramente emocionada com o relato da Daniela e pela incrível atitude que ela tomou. Vou mostrar hoje pro meu marido, que adora o discurso de que uma pessoa só não pode mudar o mundo e que ações individuais não são relevantes.
Parabéns, Daniela, vc é uma inspiração para todos nós!!!
Não só em frente ao Pérola Byington mas onde quer que você esteja! Crime, quem julga é juiz. Pecado, quem julga É DEUS, que não pensa com a nossa cabeça falha e sequer pensa porque é a inteligência em seu todo! Quem usa a Bíblia, SAIBA: CADA UM DARÁ CONTA DE SI MESMO A DEUS! Só a Deus compete entender razões pessoais. Deus não é homem e não condena mulheres. Deus é ESPÍRITO! Espírito não é matéria! Nem homem e nem mulher, Deus procura quem adore como é, nào como imaginam! Pessoas não fazem justiça! Deus faz! O importante é o que você, humana(o) faz depois que a energia elétrica do seu Templo apaga. Você adora a Deus ou julga a seu próximo, sabendo que não te compete julgar? Quem cresce? Jesus ou você? A Bíblia responde: que CRISTO cresça e eu diminua! Ainda bem! Jesus é JUSTO E IMPARCIAL como eu não posso ser porque sou HUMANA!
Lola, você teria um e-mail para contato? Talvez você possa me ajudar.
#JuntasSomosMaisFortes!
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