Patricia ontem em Montevidéu |
A jornalista e tradutora Patrícia García mora no Uruguai e conta tudo pra gente (aqui o que ela escreveu após o primeiro turno). Leia para entender o que está em jogo.
Existe uma brincadeira agridoce na nossa região que diz que se você não viveu um golpe na América Latina, você está experienciando errado nosso cantinho no mundo. A “piada” é uma lembrança constante de como os ventos do norte movem nossos moinhos e insuflam nosso povo contra si mesmo. Neste nosso rincón abandonado à própria sorte, lutamos para sair de ditaduras, criamos grupos de resistência e conquistamos, com muito suor, nosso estado democrático de direito.
Nossa democracia latina, nova, frágil, tantas vezes abusada ao longo de décadas, encontrou na voz do povo e no levante da esquerda um escudo protetor contra os desmandos nortistas e contra a disputa mundial pelos nossos recursos naturais. Ao longo das duas primeiras décadas deste século, a América Latina se viu florescer em aspectos diversos. De repente, não éramos mais “terceiro mundo” mas sim países conscientes de sua soberania e que, outrora relegados a quintal estrangeiro, descobriram seu papel protagonista em um jogo internacional fluído e mutante.
Nossa democracia latina, nova, frágil, tantas vezes abusada ao longo de décadas, encontrou na voz do povo e no levante da esquerda um escudo protetor contra os desmandos nortistas e contra a disputa mundial pelos nossos recursos naturais. Ao longo das duas primeiras décadas deste século, a América Latina se viu florescer em aspectos diversos. De repente, não éramos mais “terceiro mundo” mas sim países conscientes de sua soberania e que, outrora relegados a quintal estrangeiro, descobriram seu papel protagonista em um jogo internacional fluído e mutante.
Claro que um estado forte dificulta muito a influência e a exploração estrangeiras. Como consequência de tal força, somos vítimas de pequenas e grandes sabotagens que exemplificam as aplicações do modus operandi de desestabilização regional que alguns países têm adotado ao longo das décadas visando o controle de uma zona. Quem se lembra das aulas de História está familiarizado com o famoso Plano Condor, executado com a ajuda de latinos que em seus momentos de mais baixo caráter venderam seu próprio país em troca de um agrado pessoal vindos dos nortistas.
Se em outros momentos veríamos essas traições como contos longínquos em páginas de materiais didáticos enquanto esperávamos o recreio, às portas da segunda década do milênio observamos a mesma história tecendo-se a nossa frente e se repetindo como farsa. Em uma escala de matizes golpistas, que vão de Añez e Guaidó, governantes autoproclamados, a Temer, e sua presidência advinda de um golpe aliado ao judiciário, os métodos de dominação e traição tem se diversificado e refinado, porém não perderam sua essência.
E é exatamente essa essência, a da desestabilização, que acompanhamos hoje mais forte do que nunca na América Latina. Além dos golpes já mencionados e das rebeliões em Chile, Bolívia e Colômbia, que por si só já seriam preocupantes, vemos a onda do discurso do medo se espalhar como pólvora, através de canais midiáticos e digitais que ganham cada vez mais espaço na política.
Como já havia mencionado anteriormente, a tal “Reforma do medo” foi o grande foco das discussões no primeiro turno. Passado o plebiscito e a primeira roda de votação, enfim teríamos a oportunidade de discutir propostas e os modelos de país que nos eram oferecidos. No entanto, em uma jogada estratégica, os partidos de espectros direitistas uniram-se contra a coligação do Frente Amplio, visando arrastar o máximo de votantes para o caminho à direita.
A “coalizão”, como preferem chamá-la, é uma quimera desesperada de partidos e propostas muito distintas, mesmo dentro das próprias ideologias partidárias. Nacional e Colorado, historicamente rivais, uniram-se para este segundo turno ao redor da figura do candidato nacionalista Lacalle Pou, embora o apoio a ele não seja unanimidade dentro do PC. No entanto, o neoliberal que nunca trabalhou na vida e o Chicago boy derrotado, Ernesto Talvi, eram apenas duas faces da mesma moeda que poderiam se atrair a qualquer momento.
O que realmente chamou a atenção não foi o “abraço” entre rivais, mas uma outra aproximação a um novato que, em seu primeiro pleito, conseguiu arrastar 11% dos eleitores consigo. Além de conseguir seus votos utilizando um discurso de ódio e divisão, com ameaças e agressividade, Manini Ríos e seu partido (Cabildo Abierto, autodenominado ultradireitista) também conquistaram três vagas no senado. Poderia ser algo um pouco exótico, militares senadores em um país tão progressista, mas o que salta aos olhos é que dois deles são torturadores anistiados. No dia seguinte ao primeiro turno, numa nota de rodapé, o protofascismo platense mostrava sua primeira vítima: um preso da ditadura que, ao saber que seu torturador agora era seu senador, se matou em sua casa.
Se o fato passou em branco para uma grande parte das pessoas, o espaço tomado por Manini dentro da coalizão tornou-se perturbador até mesmo para os participantes. Ciente da união e fidelidade de seus eleitores e aproveitando-se de um programa de governo fraco e desorganizado como um quebra-cabeça sem sentido, Manini exigiu de Lacalle Pou uma participação mais ativa dentro do governo.
Em busca da vitória, Lacalle aproximou-se mais de Manini que de Talvi, dando-lhe o espaço necessário para influenciar promessas e decisões dentro do programa de governo. Lacalle, talvez por emular seu colega militar ou por ser orientado assim, passou também a tomar posturas mais agressivas e abusar de fake news em uma avalanche que impede o cidadão comum de fazer uma verificação em tempo suficiente antes que a mensagem se espalhe.
No único debate deste segundo turno, o candidato da direita dedicou-se apenas a repetir informações falsas e a cobrar os erros da Frente Ampla ao longo de seus 15 anos de governo. Nas duas horas e meia, pouco se falou de propostas e o foco foi um jogo constrangedor de ataques e defesas, que pouco satisfez o uruguaio indeciso. Além disso, soterrado por uma avalanche de propaganda política maquiada de notícias, o povo consciente e crítico que em outras eleições não aceitaria discursos vazios de seu candidato, agora aceitava apenas os gritos de mudanças, sem nem saber para onde iriam. Creio que isso lhes parece familiar.
Em busca da vitória, Lacalle aproximou-se mais de Manini que de Talvi, dando-lhe o espaço necessário para influenciar promessas e decisões dentro do programa de governo. Lacalle, talvez por emular seu colega militar ou por ser orientado assim, passou também a tomar posturas mais agressivas e abusar de fake news em uma avalanche que impede o cidadão comum de fazer uma verificação em tempo suficiente antes que a mensagem se espalhe.
No único debate deste segundo turno, o candidato da direita dedicou-se apenas a repetir informações falsas e a cobrar os erros da Frente Ampla ao longo de seus 15 anos de governo. Nas duas horas e meia, pouco se falou de propostas e o foco foi um jogo constrangedor de ataques e defesas, que pouco satisfez o uruguaio indeciso. Além disso, soterrado por uma avalanche de propaganda política maquiada de notícias, o povo consciente e crítico que em outras eleições não aceitaria discursos vazios de seu candidato, agora aceitava apenas os gritos de mudanças, sem nem saber para onde iriam. Creio que isso lhes parece familiar.
Entre fake news, declarações polêmicas, distribuição de folhas de votação falsas e tsunamis de desinformação, a campanha, que já se apresentava atípica, viveu alguns momentos preocupantes: o ataque a um dos comitês da Frente Ampla, onde todo o material de campanha e as folhas de votação foram destruídas, e o comunicado de Manini Ríos aos participantes do Círculo Militar, em que ele ameaça claramente os companheiros militares para que votem a Lacalle.
Se estes atos em outros momentos gerariam posicionamentos acalorados e repúdio, o silêncio da coalizão sobre o que aconteceu fala mais do que qualquer comunicado. É um aval, uma cumplicidade. É um candidato dizendo ao país que está tudo bem usar de intimidação para se atingir o que se quer, afinal, “os fins justificam os meios” e é preciso “mudar”. No entanto, como vimos no Brasil, nesta onda coordenada de ataques à democracia latina, o ódio, a divisão e as “mudanças” atraem o povo, que está tão anestesiado por tudo aquilo que querem fazê-lo acreditar que, talvez por cansaço, se veja simplesmente absorvendo esse discurso.
Se estes atos em outros momentos gerariam posicionamentos acalorados e repúdio, o silêncio da coalizão sobre o que aconteceu fala mais do que qualquer comunicado. É um aval, uma cumplicidade. É um candidato dizendo ao país que está tudo bem usar de intimidação para se atingir o que se quer, afinal, “os fins justificam os meios” e é preciso “mudar”. No entanto, como vimos no Brasil, nesta onda coordenada de ataques à democracia latina, o ódio, a divisão e as “mudanças” atraem o povo, que está tão anestesiado por tudo aquilo que querem fazê-lo acreditar que, talvez por cansaço, se veja simplesmente absorvendo esse discurso.
Seja qual for o resultado do segundo turno deste domingo, uma coisa é certa: todos nós perdemos algo com este pleito. Manini, ao contrário do que muitos possam acreditar, não é a causa. Ele é um vetor. Estamos, pela primeira vez desde aquele fatídico junho de 1973, nos vendo diante de dois modelos de país que oferecem direções diametralmente opostas.
Há alguma coisa acontecendo, algo se movimentando. Um caminhar gélido e rastejante que prenuncia o último grito desesperado da ultradireita e do conservadorismo em se manterem como ideologias dominantes. O fascismo está inegavelmente sendo alimentado em nosso continente. E esse monstro não vai parar enquanto não tentar devorar a todos nós.
Um dia chave para defender a democracia no Uruguai e nas Américas |
5 comentários:
Sabemos que o monstro do fascismo está em busca de poder e novas vítimas e não temos estratégias para barra-lo. Tudo muito preocupante.
A reserva indígena Raposa serra se Sol foi toda demarcada em milhares de quilômetros de fronteira pelo governo de esquerda. Reserva em área de fronteira.
Hoje às grandes potências patrocinam ONGs que agem livremente nestas reservas,muitos indígenas da região falam mais inglês do que português até.
As potências no futuro vão via a resolução da ONU de "autodeterminação dos povos" ter influência e se apoderar de grande parte do nosso território sem precisar dar um único tiro sequer.
Luis Lacalle Pou ganhou, nada tem fascismo, é apenas um conservador, seguirá a democracia, somando-se mais dias aos 12686 corridos aumentando o record histórico de governos legítimos no poder.
Parabéns novamente pela maneira/conteúdo com que nos mantém informados.
Maaaaaas para os sabe-tudos desse país essa história de EUA dando golpe na AL é tudo teoria da conspiração ou doutrinação comunista. Afinal, o mundo não pode ser tão feio e cruel assim, né? Senão como vamos viver com o fato de que não temos domínio nenhum sobre nossas vidas, que somos simples marionetes, gado pra alimentar um sistema cruel, peças descartáveis de um jogo sócio-econômico perverso ao invés dos senhores absolutos do nosso destino, os reis da criação que os filmes e as religiões nos ensinaram que somos? Como vamos viver sabendo que não somos superiores ao resto do mundo? Ou como vamos viver com a consciência de que fomos feitos de idiotas por décadas? Nosso frágil ego mais importante que tudo não aguentaria!
Por isso eu não tenho filhos. Agora que meus pais fizeram a burrada não posso evitar a marcha inexorável até o abatedouro do sistema, mas posso evitar continuar fornecendo inocentes para alimentá-lo.
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