O "show dos atrasados do Enem" é sempre notícia. Robson Fernando de Souza, escritor e blogueiro vegano e autista aspie, autor dos blogs Veganagente e Consciência Autista e de livros sobre veganismo, além de colaborador frequente aqui do blog, critica a falta de empatia de quem ri da desgraça alheia.
Todos os anos um fenômeno bizarro, promovido pela mídia e por indivíduos de pouca empatia, marcado pela baixaria e pela falta de ética e de compaixão, acontece nos dias do Exame Nacional do Ensino Médio. Trata-se da espetacularização e até humorização do sofrimento de milhares de pessoas que, na maioria das vezes por infelizes injustiças do acaso, muitas vezes dotadas de um contexto de discriminação e exclusão social, são barradas de fazer a prova por causa de poucos minutos ou mesmo segundos de atraso após o fechamento dos portões dos locais de prova.
Já é lugar comum que a maioria dos grandes portais da imprensa e também sites locais e regionais de notícias transformem em “show de entretenimento” o desespero de quem encontrou as portas do futuro literalmente fechadas diante de si. Fazem algo parecido com as conhecidas “videocassetadas”: transformam a dor física ou emocional alheia em motivo de diversão, de riso, de pensamentos desalmados do tipo “Eu acho é bom!” ou “Bem feito, quem manda ser irresponsável?”.
Acabaram sendo destaque também algumas pessoas que foram ao cúmulo de chegar e sentar perto dos portões dos locais de prova, com direito a levar latas de cerveja para consumo próprio, só para assistir à miséria alheia e caçoar do desespero de quem se atrasou. A mídia abordou isso de maneira aparentemente “imparcial”, mas é evidente que, entre essas pessoas carentes de empatia e os noticiários, ficou subentendido um clima de “tamo junto”, já que compartilhavam o prazer sádico de converter o sofrimento de outrem em “atração cultural”.
Por outro lado, o que se viu entre a opinião pública foi uma prevalência dos que gostaram de ver o que viram nas tais notícias –- e até mesmo curtiram e acharam criativos os “engraçadinhos” que foram assistir à dor dos atrasados. Houve muitas pessoas que desaprovaram com veemência e defenderam que a postura da imprensa e dos “espectadores ao vivo” foi de fato absurda e antiética, mas atualmente, pelo que se pode deduzir, ainda são minoria.
Esse “show” de horrores –- nos múltiplos sentidos da expressão -–, incluindo também sua receptividade positiva entre tantas pessoas, nos mostra que paira na sociedade uma tradição de alarmante desvalorização da empatia, uma moral brigadamente divorciada da ética. A maioria das pessoas não se compadece do sofrimento da outra ou do outro –- pelo contrário, ri da dor dela(e) e, muitas vezes, a(o) julga como “culpada(o)” pela própria desgraça.
Essa “moral imoral” de comicizar a dor alheia e julgar quem sofre reflete a crença de muita gente de que a sociedade brasileira é ou deveria ser estritamente meritocrática. Ou seja, pune ou deveria punir com severidade os “perdedores”, mesmo que o motivo da derrota destes seja uma injustiça advinda das desigualdades sociais e discriminações que aflige a maioria da população do país.
Afinal, segundo dizem os ideólogos da meritocracia capitalista, as quedas do indivíduo são culpa dele mesmo, por “não ter se esforçado”, por não ter feito um rigoroso planejamento de sua carreira escolar-acadêmica e empregatícia, por ser “preguiçoso”, por “não ser disciplinado”, entre outros pretextos que ignoram completamente o contexto social no qual a vida de cada pessoa está inserida.
Nessa lógica, mesmo o confeiteiro que no ENEM 2016 chegou atrasado porque o patrão não o havia liberado do trabalho a tempo é o culpado por seu próprio infortúnio, portanto é um “perdedor” e “deve” ser escrachado pelo julgamento público. E, também, aquelas pessoas mais pobres que, não contando com o carro dos pais, moram longe do local da prova e tiveram que pegar dois ou três ônibus para tentar chegar a tempo, ou cujo patrão não deixou que saíssem do expediente a tempo, são penalizadas por esse julgamento, o que escancara o elitismo odiento dos julgadores.
Outro tentáculo dessa mesma “moral imoral” é a cultura do machismo. É aquela que consiste em culpar as mulheres, com os mais absurdos pretextos, pelas violências que elas sofrem -– por exemplo, culpando vítimas de estupro porque “não se davam ao respeito”, ou “usavam roupas curtas demais”, ou “estavam bêbadas”, ou “não estavam acompanhadas de seus maridos ou namorados” etc. De forma ainda mais severa e criminosa, o machismo amplifica contra mulheres vítimas das mais diversas violências a lógica do “júri opressor” imposto contra quem encontrou os portões fechados no vestibular. Julga, condena, ostraciza, maltrata, humilha.
Essa moral julgadora e estigmatizadora precisa ser enfrentada. Precisamos deixar claro que essa falta de empatia e de ética anda de mãos dadas com ideologias opressoras, como a meritocracia, o machismo e o conservadorismo egoísta, se não é diretamente derivada delas. Da mesma maneira, comentemos, em cada notícia que trata como “show de entretenimento” o sofrimento de quem perdeu a prova, como a imprensa viola a cidadania e os direitos humanos quando espetaculariza a desgraça alheia.
Essa moral sem ética de expor ao julgamento sumário, condenatório e linchador pessoas que são alvos de opressões e infelicidades cruéis não deve mais ser tolerada, caso queiramos uma sociedade mais humana e justa.
Essa moral sem ética de expor ao julgamento sumário, condenatório e linchador pessoas que são alvos de opressões e infelicidades cruéis não deve mais ser tolerada, caso queiramos uma sociedade mais humana e justa.
8 comentários:
Ok! Mas, sério mesmo, será que não estamos exagerando demais nessa onda do politicamente correto? O mundo está ficando muito chato com essa patrulha diuturnamente, em tudo, pra todo lado. Hj não se pode brincar com nada, não se pode rir de nada, não se pode fazer mais piada de nada, pq SEMPRE vai haver alguém ou algum grupo que vai se sentir "oprimido" e "injustiçado", e dessa forma matamos o humor. Será que não é mais fácil não levar TUDO tão a sério e rir um pouco? Exagero...
Particularmente sempre fui uma pessoa "chata" acho graça nenhuma dessas coisas, nem de gente caindo, vídeo cacetadas, nada que envolva situações nas quais, caso fosse eu, seria triste e não engraçado.
Ao passo que acho a maior graça de alguns memes bobos, coisas que não ferem ninguém.
Dá SIM para fazer humor ainda, mania que o povo tem de achar que humor só existe se for da desgraça alheia.
Sobre o assunto de mundo chato, patrulha e politicamente correto de hj, só ver o exemplo dos humoristas Trapalhões, Chico Anísio Show, Viva o Gordo, TV Pirata e etc... Se fosse hj, a patrulha literalmente "cairia de pau" em cima daqueles humoristas e daqueles quadros, pois riam do Gordo, da empregada, do Preto, dos politicos, das loiras, dos "retardados", dos cachaceiros, etc etc e etc. E era engraçado. E ninguém levava a mal ou se sentia injustiçado ou agredido por nada. Pq todo mundo levava na brincadeira. O mundo está muito chato...
Eu sempre achei isso patético e totalmente desrespeitoso. Pior é ver pessoas saírem de suas casas de manhã cedo apenas para verem a desgraça alheia.
Deixei três comentários nessa postagem. Nenhum foi aprovado. E depois reclamam de censurar beijo gay...
Quando o alvo da piada for você e você não gostar, ficar ofendido, será que alguém vai poder dizer que vc leva as coisas muito a sério? Que vc deveria relaxar e rir um pouco?
Como diz o ditado, pimenta no c* dos outros é refresco...
Acho que o que incomoda mais é que vemos que muitas pessoas (acredito que seja a maioria) que chegam atrasadas têm algo em comum: esbarram em alguma dificuldade que evidencia um problema estrutural na sociedade. Um trabalhador que demorou a conseguir sair do emprego, ou o ônibus que não passou, ou que quebrou... E tudo é tratado como irresponsabilidade, "olha que engraçado, da próxima vez acorde mais cedo!", como se todos tivessem sido levados pelos pais de carro pra fazer a prova.
De qualquer modo, acho que precisamos urgentemente repensar o humor. É possível rir sem pisar em outra pessoa, especialmente em alguém que está numa situação de dificuldade, ou que já sofre por preconceito.
Adoro os textos do Robson, acompanho o Veganagente e ele é demais!
Beijo gay não é indecente, mas seus comentários certamente são.
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