sexta-feira, 10 de maio de 2019

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA, A EXPRESSÃO DE UM SISTEMA FALIDO E MISÓGINO

Esses dias o Ministério da Saúde pediu que o termo "violência obstétrica" fosse abolido.  É o jeito que este (des)governo encontra de enfrentar um grave problema: não vamos mais falar dele. Assim, ele desaparece sozinho.
Convidei Cintia Freitas, feminista, obstetriz e militante na área da saúde coletiva, para escrever este guest post sobre as implicações de mais este retrocesso.

Apesar da luta contra a violência obstétrica ter se popularizado com mais intensidade nos últimos anos, a busca por um parto respeitoso sempre foi uma pauta das lutas feministas, está presente nos estudos acadêmicos brasileiros pelo menos desde a década de 1980, e já era discutida nos programas de atenção à saúde das mulheres neste período, com o lançamento do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) em 1983.
Muitos avanços foram conquistados pelo movimento de mulheres na área da atenção ao parto e nascimento, como a lei do acompanhante (Lei 11.108/2005), a expansão dos centros de parto normal, casas de parto, incentivo à formação e contratação de obstetrizes e enfermeiras obstetras, doulas, bem como de quartos PPP (quartos privativos onde mulheres recebem cuidado e ficam com o acompanhante durante o pré-parto, parto e pós-parto). Entretanto, a busca pela consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos, e por um parto respeitoso para as mulheres que desejam engravidar e parir, ainda apresenta muitos desafios.
A pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo em mais de 170 municípios brasileiros, revelou que uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência no parto. Dentre as agressões mais frequentes estavam os xingamentos, gritos, toques vaginais dolorosos, constantes e sem consentimento, humilhações e negativa de oferta de atendimento ou uso de métodos de alívio da dor por parte dos profissionais. 
A violência obstétrica é uma violência de gênero, definida como qualquer tipo de abuso e violência no contexto da atenção à gestação, parto, cesariana, pós-parto e abortamento, sendo considerada uma violação aos direitos humanos das mulheres. Podem ser perpetuadas em diferentes esferas, como abuso físico, práticas clínicas sem consentimento e/ou inadequadas, como a manobra de kristeller (empurrar a barriga da mulher), episiotomia (corte no períneo), ocitocina para acelerar o parto (o famoso sorinho), violência verbal, emocional e sexual. 
Acontece também quando os serviços e profissionais são omissos, desrespeitam a lei do acompanhante, negam o uso de métodos para alívio da dor, ou os usam de forma inadequada, quando ignoram o plano de parto (documento no qual a mulher coloca os seus desejos para o parto e pós-parto) e não fornecem um ambiente com privacidade, além de contemplar qualquer tipo de discriminação com base na raça, nacionalidade, classe social, religião, idade ou características físicas das mulheres. Vale ressaltar que as questões de raça e classe também encontram-se atreladas à violência obstétrica, sendo que as mulheres negras são as que mais sofrem essa violência.
Conforme citado anteriormente, a luta contra a violência obstétrica é um assunto consolidado e reconhecido no movimento de mulheres e entre os profissionais que lutam pela melhoria da atenção às mulheres e recém-nascidos. Entretanto, despacho do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, de 3 de maio de 2019, posiciona o Ministério da Saúde (MS) contra o uso do termo violência obstétrica em publicações oficiais. 
Neste documento, cuja argumentação é rasa, descabida e contraditória, o MS afirma que a definição de violência obstétrica não possui consenso, e que o termo “não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”. Além disso, afirma que a violência obstétrica possui uma “conotação inadequada”, uma vez que os profissionais de saúde não “têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano” às mulheres.
Ora, como pode um termo que fornece visibilidade às violações contra as mulheres na gestação, parto, pós-parto e abortamento ser prejudicial à luta pela humanização do nascimento? Como ele não fornece valor ao movimento, uma vez que essa violência é cotidiana e ainda muito naturalizada? Com tantos artigos, documentários (por exemplo, Violência Obstétrica: A voz das brasileiras), matérias jornalísticas, ações judiciais, audiências públicas, gravações e relatos de mulheres retratando a violência obstétrica no Brasil e no mundo, qual a base material do MS para afirmar que os profissionais não possuem a intenção de nos agredir, humilhar, desrespeitar e mutilar no momento em que nos amarram, cortam, batem, silenciam e invadem nossos corpos? Somos mentirosas, ou mais uma vez seremos tachadas como exageradas e desequilibradas? 
Como mulher e profissional de saúde que presta cuidado a outras mulheres no ciclo gravídico e puerperal, afirmo categoricamente que a violência obstétrica existe, há intenção e principalmente conivência de instituições de saúde, gestores, conselhos e associações profissionais para que ela exista e se mantenha. Além do mais, mesmo que não houvesse intenção, isto não descaracterizaria a situação de violência, o que por si só já desmonta a argumentação do MS.
Práticas "radicais"
Por falar em conselho profissional, o Conselho Federal de Medicina elaborou no ano passado um parecer (nº32/2018) no qual ele afirma que a “expressão 'violência obstétrica' é uma agressão contra a medicina e especialidade de ginecologia e obstetrícia, contrariando conhecimentos científicos consagrados, reduzindo a segurança e a eficiência de uma boa prática assistencial e ética”. Eles afirmam no texto que a autonomia das mulheres deve ter limites e que as feministas e o movimento social incentivam o uso de novas práticas assistenciais que defendem a autonomia das mulheres, e que por isso os médicos obstetras estão sendo processados e estigmatizados por não adotarem essas práticas, que de acordo com eles são radicais. 
Bom, em primeiro lugar, a Obstetrícia é uma ciência e não uma área de atuação exclusiva da medicina. O termo vem do verbo latino “obstare” e significa estar ao lado, foi usado pela primeira vez em 1872 para designar a profissão de parteira ou obstetriz que assiste a parturiente, e hoje é um campo que abrange médicas obstetras, enfermeiras obstetras,  obstetrizes, fisioterapeutas obstétricas e qualquer outra profissão com atuação nesta área. 
Segundo, e mais importante, a luta dos movimentos sociais é por um parto respeitoso, centrado nas mulheres, com base nas evidências científicas mais atuais, e nossa luta é para que todos os profissionais, em todos os níveis de atenção, bem como as instituições e gestores sejam responsabilizados nos casos de violência. Dessa forma, por que o CFM é contrário ao termo violência obstétrica? Não queremos todos um cuidado seguro e de qualidade para as mulheres e recém-nascidos?
Agora, o mais grave é que foi justamente o Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul que abriu o processo para que o MS se posicionasse em relação ao termo violência obstétrica. Fica então o questionamento: o MS está interessado em garantir um cuidado respeitoso e seguro às mulheres, reduzir as taxas criminosas de mortalidade materna, de prematuridade, de cesarianas eletivas e de óbitos neonatais que ainda vigoram no país, ou em defender um corporativismo médico que se nega a rever as suas práticas retrógradas e que teme a conscientização e protagonismo das mulheres?
Pautada em uma lógica capitalista, racista e patriarcal, a violência obstétrica mata e traumatiza a sociedade como um todo, e é uma forma de garantir a hierarquia dos profissionais de saúde, muitas vezes homens, brancos e de alta renda sobre as mulheres. Na mesma lógica, o discurso de que as pessoas que questionam o modelo intervencionista, centrado no médico e no hospital são radicais, é claramente uma tentativa de inviabilizar a busca por um parto natural, no qual a fisiologia do nascimento e a autonomia das mulheres são privilegiadas. A violência durante o parto é também uma estratégia do mercado para vender cirurgias cesarianas sem indicação clínica, prática que além de aumentar a mortalidade e morbidade de mulheres e recém-nascidos, ainda aumenta os custos e as inequidades do sistema de saúde.
Apagar o termo violência obstétrica, cunhado pelo movimento de mulheres, é mais um exemplo de censura e negação do conhecimento científico por parte do atual governo. É também uma forma de tentar calar os movimentos sociais, de impedir avanços na legislação sobre violência obstétrica à nível nacional, e de que nós mulheres tenhamos mais informações sobre os nossos direitos. Os grupos conservadores sabem que o movimento pela humanização do nascimento, ou pelo menos boa parte dele, defende que as mulheres possam realmente fazer escolhas informadas e verdadeiras em todas as áreas de suas vidas, e não apenas sobre a via e local de nascimento. 
Desejamos acesso a métodos contraceptivos, a serviços de abortamento seguro nos casos previsto em lei, e principalmente que avancemos no debate sobre o aborto no Brasil. Afinal, não existe humanização do parto e luta verdadeira contra a violência sem que as mulheres tenham autonomia plena sobre os seus corpos.

8 comentários:

Anônimo disse...

Sinceramente, acho que as mulheres deviam se recusar a ter filhos como já acontece em alguns países da Europa. Quando a mulher tem educação de verdade acaba refletindo melhor e vendo que a maternidade não é um destino dela, ela pode escolher. Por isso que certos governos querem manter as mulheres na ignorância, assim o capitalismo tem abundância de mão de obra.
Aqui as moças de classe mais alta já estão pensando como as europeias e adiando, às vezes indefinidamente, a maternidade.
Eu concordo e dou a maior força, casamento e ter filho é bom só pra sociedade patriarcal em que vivemos.
Como disse uma mulher em outro post aqui, ela queria ser pai, coisa muito fácil e valorizada nos dias de hoje, já ser mãe, nem pensar

Hele Silveira disse...

Violência obstétrica, sim, sei bem o que significa! Em janeiro de 2001, quando tive minha primeira filha, estava no quarto (particular, registre-se!) quando uma enfermeira foi dizer à mãe do quarto ao lado para se levantar e tomar banho. Ocorre que a moça sequer parava sentada! A cada tentativa de se colocar de pé,sua pressão baixava mesmo amparada pelo marido e pela sogra. Que fez a enfermeira? Pôs-se a gritar: "--Na hora de virar os olhos você gostou! Para de fazer corpo mole, levanta daí agora, sua vadia, vagabunda, piranha!" Marido e sogra da moça não tiveram boca para responder. A gritaria se ouvia perfeitamente. E quando a dita enfermeira apontou a cara na porta do meu quarto, quem gritou fui eu: -OLHA AQUI, SE VOCÊ VIER FALAR AS MESMAS BESTEIRAS QUE DISSE À MOÇA ALI DO LADO, VAI ROLAR PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO E JUDICIAL! LEVANTO DA CAMA E NEM TOMAR BANHO VOU, VOU DIRETO RECLAMAR DO SEU PROCEDIMENTO DESRESPEITOSO E ANTIÉTICO!" Você deu um pio? Não? Nem a enfermeira! Ou seja, a quem diz que a melhor forma de evitar a violência obstétrica é ter dinheiro, melhor sair da bolha. Não é. Aquela moça pagou. Eu paguei. E só não ouvi gritos porque gritei antes. Numa hora em que não cabia gritar, a menos que fosse de alegria. Revoltante!

Unknown disse...

Concordo totalmente contigo.

Anônimo disse...

A gente nunca deve aceitar tratamentos absurdos de cabeça abaixada, vc fez bem em reclamar. O que é preciso é que as pessoas em volta tomem consciência dos seus direitos ( e deveres) e sempre apoiem umas às outras em situações como essa.

Anônimo disse...

Querida Lola, meu pai quando era jovem trabalhou em um hospital como recepcionista. Um dia, na ausência de funcionários, um médico chamou meu pai para auxiliá-lo em um parto difícil. O parto era normal e o bebê não estava saindo. Estão o médico pediu para que meu pai SENTASSE EM CIMA DA BARRIGA DA MULHER GRÁVIDA. Ele ficou embasbacado, e achou que fosse uma brincadeira. Não era. E seu trabalho estava em jogo. Ele sentou na barriga da mulher, que quase morreu de dor. O médico disse que isso era necessário para a facilitação do parto. Poucos minutos depois a mulher morreu. Não me recordo se o bebê havia sobrevivido (ele me contou essa história há muito tempo). Mas fiquei extremamente chocada com a determinação do médico. Infelizmente, o que mais falta em nossos hospitais é sensibilidade. A realidade é que cada pessoa é tratada como uma peça de carne no açougue, e não um ser humano com sentimentos...não tenho nem palavras para expressar minha indignação.

Jane Doe disse...

(...)uma vez que os profissionais de saúde não “têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano” às mulheres.
- É que na cabeça deles a violência física, psicológica e sexual que eles submetem as mulheres é a coisa mais natural do mundo. Afinal, mulheres não devem ter outra possibilidade na vida além ser mãe e toda mãe não dever ter outra possibilidade além de ser tratada como um cordeiro no abatedouro.

- Eu já CANSEI DE FALAR - essa carnificina promovida por GOs e também de certa forma - intencional ou não - das militantes do parto humanizado (humanizado desde que seja seguindo bovinamente a cartilha delas) tem implicações muitíssimos além da violência obstétrica (que na minha opinião deveria ser classificado como crime hediondo). Mulheres com doenças crônicas e extremante dolorosa demoram muito mais para receberem diagnósticos e recebem infinitamente menos possibilidades de alívio da dor do que homens com a mesma condição. Isso vem da noção imbecil que se a mulher suporta a dor no parto (e convenhamos, na grande maioria das vezes "suporta" por que não lhes é dado outra alternativa) então deve suportar qualquer coisa (sem reclamar, lógico) ou, se tem está sentido dor no parto - "ah pobrezinha vítima do patriarcado, essa dor está só na rua cabeça", cala a boquinha, entra na banheira e pare esse bebê sem reclamar que essa é a "dor da vida".

(...)obstetras estão sendo processados e estigmatizados(...)
Com todo o respeito por aqueles(as) profissionais que são a exceção e que de fato se importam com as suas pacientes. Essa crítica não é para eles/elas. Para eles/elas - todo meu respeito e admiração.
- GOs de maneira geral merecem todo o estigma, processos, perda de diploma, cadeia e surra de gato morto que eles podem suportar por unidade de tempo. Eu nunca vi uma classe de profissionais ser tão mentirosa, manipuladora, mercenária e negligente como GOs. Tratam as pacientes como gado reprodutor e se você tenta argumentar com eles/elas acham que você não passam de uma louca histérica e que não merece o "tempo precioso deles/delas", te mandam pra casa com um anticoncepcional qualquer (mesmo que esse te mate) ou engravidar o mais rápido (e frequente) possível...
Máfia dos infernos...

titia disse...

Os médicos ginecologistas e obstetras não estão sendo estigmatizados, oprimidos, difamados nem nada disso. Eles são uns bostas mesmo, e agora começaram a ser tratados como tal. Como todo bosta mimadinho, não estão gostando de serem tratados como merecem, então resolveram espenear pra outros velhos bostas que estão fazendo hora extra e desperdiçando recursos na Terra pra forçar as suas vítimas a tratá-los como deuses que eles acham que são. Espero que enfiem tantos processos no rabo desses babacas que eles terminem tendo que lavar chão pra viver. É mais do que eles merecem.

Queria que as mulheres acordassem e parassem de ter filho. Casamento e maternidade não servem pra nada além de foder com a vida e a saúde da mulher, se todas abrissem os olhos e mandassem essas instituições falidas à merda as nossas vidas seriam muito melhores. Mas pensar dói pra brasileira média, melhor fazer o que sabe que dá merda e depois chorar que a vida tá ruim... assim fica difícil ser solidária, mana.

Kasturba disse...

Outra questão nisso tudo é a máfia dos médicos. Na minha cidade você nao acha NENHUM médico disposto a acompanhar seu parto normal pelo convênio. Pra ter um parto normal, ou você vai pro SUS, correndo risco de se submeter a essas situações descritas, ou paga um absurdo como "taxa de disponibilidade" para um médico. E mesmo assim tem que procurar muito bem, receber indicação e pesquisar o histórico do médico, porque muitos deles te cobram a tal da "taxa de disponibilidade", mas quando está próximo à data do parto, inventam mil e um motivos pra marcar uma cesariana (e não correr o risco de ter que sair do meio da festa de sábado porque a mulher entrou em trabalho de parto em um momento não apropriado)...
E outra: existem equipes de enfermeiras obstetrices que cobram um preço justo pelo acompanhamento pré e pós natal, e pelo parto. Mas elas são proibidas de realizar parto hospitalar sem supervisão de um médico... Elas podem te acompanhar em um parto domiciliar, em um parto em casa de parto, na floresta, na lua... mas dentro de um hospital, aí não, porque é "perigoso" enfermeiras trabalhando na sua área de atuação sem supervisão de um médico... se isso não é uma máfia, não sei mais o que seria...