Logo que passei no exame de ordem, minhas primeiras petições como advogada foram pedidos de extinção de punibilidade em processos do meu pai, juntando o atestado de óbito dele.
No último, ele tinha tentado matar minha mãe empurrando-a de um carro em movimento. O cinto a salvou.
Sim, também figurei como vítima num dos processos.
Há quem saiba e não entenda como, tendo crescido em meio à violência doméstica, ou saído de relacionamento abusivo, eu hoje atue na defesa técnica de supostos agressores. A experiência de vida ajuda a assimilar uns pontos.
1. Esse discurso sobre a "certeza da impunidade" é ilógico. O agressor, em regra, age de cara limpa, deixa marcas. Há testemunhas... Ele não liga pra pena. Converso com vários: eles sabem que serão punidos. A criminalização da conduta não é um fator desestimulador.
2. O que ele sente e verbaliza é a "aprovação social" pro seu comportamento. Faz sentido: a publicidade objetifica a mulher. Os brothers compartilham piadas machistas. A música trata mulher alcoolizada como propriedade. O presidente discursa... Ele está integrado numa estrutura.
3. Os oportunistas de ocasião pedem penas mais rigorosas. Alguns vão se eleger com isso. É uma posição simpática, cômoda e popular. Que não exige ações concretas. Mas o agressor vai deixar de ser agressor do dia pra noite, com base no recrudescimento da lei? Óbvio que não.
4. Muitas vezes, quando vou ao presídio atender um preso acusado de matar, agredir ou estuprar uma mulher, os agentes penitenciários se preocupam, perguntam se eu os quero na sala acompanhando minha entrevista reservada e particular. Se tenho medo. Não tenho. Atendo sozinha.
5. Na minha posição, nunca recebi nenhum tipo de violência. Mas preconceito sim: a inferioridade da mulher é algo tão arraigado, tão internalizado, tão cultural, tão natural, que muitos deles acreditam que uma mulher será incapaz de prover sua defesa técnica adequada.
6. Eu converso com muitos. Eles provém de várias classes sociais, níveis de instrução... Ponto em comum? O machismo. Seja sutil, seja escancarado -- meus assistidos da vara de violência doméstica são reproduções caricatas dos mesmos discursos e piadas do meu pai, modernizados.
7. Escrevi recentemente aqui sobre a sociedade "tradicional" preferir me ver infeliz, presa a um relacionamento abusivo, que "solteirona". Há uma série de microviolências diárias que mulheres sofrem e que sequer cargos de poder (juíza, deputada...) inibem. É uma bola de neve.
8. Várias iniciativas educativas de varas de violência doméstica, ou núcleos especializados das Defensorias e MP, têm trazido resultados positivos. Provendo palestras, trabalhos comunitários... combatendo na raiz a masculinidade tóxica. Desconstruindo. Geram resultados.
9. Mesmo enquanto vítima, não queria meu pai preso. Aquilo parecia traumático. Talvez já fosse uma criança abolicionista, sei lá. Queria que ele entendesse que era mau e errado. Queria que outras pessoas não sofressem aquilo... A cadeia nunca reparou as coisas que ele destruiu.
10. Atribuem a Pitágoras a frase "eduquem as crianças e não será preciso punir os homens". Não educar verdadeiramente sobre gênero, objetificação, feminismo, ações afirmativas etc é um erro bárbaro. Talvez, no futuro, a gente ainda puna... Mas que seja cada vez menos necessário.