segunda-feira, 30 de junho de 2014

ASSENTOS PREFERENCIAIS PARA MULHERES EM ÔNIBUS

Fortaleza como é hoje, exceto sem preferencial para obesos

Na última quarta, a Câmara Municipal de Fortaleza aprovou o projeto de lei 0097/2014, do vereador Carlos Dutra (Pros). O projeto diz que todos os assentos de ônibus e vans na cidade devem ser preferenciais para mulheres, idosos, obesos e pessoas com deficiência. 
Se o projeto for sancionado pelo prefeito, as empresas terão um mês para, logo na entrada do ônibus, colocando uma placa avisando que todos os assentos são destinados, de preferência, para esses grupos. 
Como vocês podem ver, é uma medida pra lá de polêmica. O vereador autor do projeto diz que o caráter é educacional, e que a intenção é coibir abusos sexuais dentro dos coletivos. 
Carlos Mazza, repórter do jornal O Povo, me procurou para uma entrevista, que republico aqui.

1) A reserva de assentos de coletivos para mulheres é uma forma adequada de combater abusos sexuais nos ônibus e vans? Caso sim; por quê? Caso não; que medidas seriam mais adequadas?
Eu: Não tenho opinião formada sobre isso. A questão de, por exemplo, vagões e ônibus especiais para mulheres, é polêmica entre as feministas. A maior parte dos coletivos feministas são contra, porque não são a favor da segregação. Além do mais, em lugares onde há vagões exclusivos, como nos trens do Rio de Janeiro, a lei não é respeitada. 
Quanto aos assentos preferenciais, creio que uma medida mais adequada seria fazer campanhas institucionais, com a colaboração da grande mídia, principalmente das redes de TV, contra os abusos sexuais. Muita gente ainda não sabe que esses abusos são crimes. Seria interessante ter uma campanha explicando isso, encorajando as mulheres a denunciar e a reagir, pedindo a colaboração da população em geral para coibir isso. 
O objetivo seria conscientizar as pessoas que esse tipo de comportamento é totalmente inaceitável socialmente. Também seria interessante que houvesse treinamento de motoristas e cobradores para que eles soubessem como agir quando um abuso é detectado. Porém, sem a melhoria do transporte público de modo geral, a situação não mudará a contento. É fácil abusar num ônibus lotado.
Sem falar que com as leis de hoje já há muita gente que não respeita. Uma pesquisa da revista Pais e Filhos mostrou que 61% das mulheres entrevistadas ficam em pé no ônibus, porque ninguém cede lugar. Apenas 27% disseram ter a sorte de encontrar um lugar para sentar do início ao fim da gravidez. 24% das pessoas fingem dormir para não ceder lugar às grávidas. 
Não há dúvida que o abuso sexual é uma constante no transporte público, e algo traumático para milhares de mulheres todos os dias. Mas não sei se reservar assentos é a solução. Há mulheres que são abusadas mesmo sentadas, com homens que se esfregam (e até ejaculam) nelas. E também não sei como fica a questão do assento preferencial. Se uma pessoa com deficiência quiser sentar num assento ocupado por uma mulher, a mulher deve ceder, certo? 
Certamente uma mulher grávida precisa muito mais do assento que uma mulher não grávida. Um idoso deve ter prioridade sobre uma mulher sem deficiências. Essas prioridades estão previstas no projeto? É estranho também um projeto que não prevê sanções.

2) Você, como autora de um blog feminista de grande visibilidade, costuma receber reclamações ou denúncias sobre este assunto, de assédios em coletivos? Por que esses casos acabam sendo tão comuns?
Eu: Sim, muitos. Casos de abuso são muito comuns, se bem que, desde que comecei o blog, em 2008, fiquei sabendo de um tipo de abuso que sequer imaginava: abuso sexual de meninas e mulheres que dormem em longas viagens de ônibus, como em viagens intermunicipais.e interestaduais. E acordam com um homem que as bolina ou que está se masturbando do lado delas. 
Não sei por que casos de abuso são tão comuns. Acho que é porque a impunidade reina. Ainda há uma aceitação social grande acerca disso, ainda é tratado como piada -- é só ver o quadro do programa humorístico Zorra Total, que há anos mostra duas amigas num metrô, uma delas dizendo pra outra "aproveitar" por estar sendo encoxada, já que é uma oportunidade pra ela. 
Também acho que as mulheres deveriam reagir mais. Sei que a primeira reação é se culpar e ficar com vergonha, mas é preciso criar um ambiente de solidariedade feminina. A esmagadora maioria das mulheres já passou por isso, então por que se calar? Tem que botar a boca no trombone! 
Eu gostei que um coletivo feminista fez um ato numa estação de metrô de SP por causa da onda de "encoxadores", e distribuiu apitos para as mulheres. A ideia é ótima: é que todas as mulheres comecem a apitar quando houver um abusador num ônibus.

3) Nas redes sociais, muita gente comenta que a lei pode ter “efeito inverso”, gerando mais atitudes de preconceito contra usuárias de transporte público. Você concorda com essa opinião? 
Eu: Não concordo. Essa "ameaça" do efeito inverso sempre é feita quando se tenta corrigir alguma injustiça. Na questão das cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, por exemplo, falou-se muito em "efeito inverso", que as cotas gerariam ainda mais racismo, e não foi isso que aconteceu. Qual seria o efeito inverso no caso dos assentos preferenciais para mulheres? Alguns homens passariam a abusar ainda mais delas? Não creio. 
O que pode acontecer é que a lei não seja respeitada. De todo modo, acho que há uma falta de campanhas de conscientização sobre diversos assuntos, entre eles como se comportar no transporte público. Aqui em Fortaleza há o costume de se oferecer para segurar as bolsas ou pacotes de quem está em pé ao seu lado? Eu não sei porque não pego muito ônibus. Tenho o privilégio de poder ir andando pro trabalho. 
Como eu demorei pra responder, Carlos teve que publicar a matéria sem as minhas respostas. Depois ele editou e incluiu parte do que falei.
Não fiquei satisfeita com as minhas respostas, então perguntei à ativista Ana Eufrázio como os coletivos aqui de Fortaleza têm se posicionado sobre o assunto, e ela respondeu:
"A tendência dos coletivos é de achar que a medida é uma espécie de machismo. No entanto, ainda não há nada fechado com relação a isso. As meninas questionam a medida porque acham que isso não se tornará fator impeditivo ao assédio. Além disso, o pessoal está dizendo coisas como 'é como se eles colocassem a mulher como deficiente",  "mas na real a medida não vai evitar o assédio, os caras se esfregam nos nossos braços, não acho que assim resolva alguma coisa mesmo, só faz reforçar o estereótipo da mulher que precisa ser cuidada, por ser frágil', 'tal atitude não evita e tampouco diminui abuso e/ou assédio sexual, pelo contrário, gera um forte recorte de gênero. É muita conversa pra boi dormir achar que essa atitude irá combater opressões no transporte coletivo', 'O que eles precisam entender é que queremos direitos iguais e não uma palhaçada dessas'."
Ana continua: "minha opinião a respeito é que esse projeto é um desserviço ao movimento feminista. Cria privilégios para a mulher e reacende a discussão sobre as diferenças entre os gêneros (tipo fragilidade, protecionismo, incapacidade de se defender sozinha). O que ocorre é que o setor de transporte não quer resolver o problema das lotações nos transportes públicos e através dessa manobra tenta resolver um problema cultural. 
"Uma manobra como essa não resolve o problema do assédio no transporte público, até mesmo porque sabemos que a medida não vai provocar uma mudança cultural desse porte. Acho que os homens não vão se sentir obrigados a ceder os assentos para as mulheres, nem se sentirão constrangidos de se masturbarem ou se exibirem para nós. 
"Esse tratamento desigual abre margem para outras medidas que, de repente, a partir da construção desses estereótipos, podem provocar a cassação de direitos femininos (como por exemplo a inserção ou participação feminina na construção civil), ou a acirrar a briga entre os sexos. A questão pode ser usada como um privilégio feminino em detrimento aos direitos masculinos."
Como vocês veem, não há qualquer tipo de consenso. É preciso discutir muito mais o assunto. E eu insisto na necessidade de conscientização e educação. É preciso mudar a cultura. 

domingo, 29 de junho de 2014

AGORA A COISA FICOU SÉRIA PRA MIM

Sei que tem jogo e tal, mas aguentem firme que a cocada é boa (sim, sei que minha tentativa de usar gírias é ridícula). Espero que vocês se divirtam tanto quanto eu.
Recebi semana passada um email de um leitor querido que de vez em quando vasculha os chans (fóruns só de anônimos em que os arquivos são deletados diariamente). E ele deu de cara com esta mensagem, e me mandou o print (clique para ampliar).

Espalhar calúnias e mentiras contra mim não é novidade. Meus inimiguinhos fazem isso há anos, sempre anonimamente. Algumas coisas que escrevem são asquerosas, mas não posso crer que alguém em sã consciência vai ler aquilo e pensar: é, acredito mesmo no que esse documento anônimo tá dizendo sobre essa professora. 
Reproduzo abaixo o texto que eles conseguiram colocar no Centro de Mídia Independente por algumas horas. Depois o artigo foi "escondido porque estava em desacordo com a política editorial do site". Mas não posso privar vocês dessa aula de humor.
Eu deixei tudo sic, tudo como apareceu publicado. De cara dá pra ver que não é obra de universitário. Meus aluninhos e aluninhas queridas fazem Letras e escrevem muito bem. 

"perseguição religiosa nas universidades
Por Dyhmurder
crime da profesora Dolores Aronovich Aguero
Gente estou chocada ,
estava na UFC ((universidade federal) e já estava rolando algumas conversas sobre professores perseguirem alunas por suas convicções. nada de mais né cada um tem sua opinião e já deu.
Foi aí que entrou uma profee nova que era a mais ditadora de pensamento, os aluno chama ela de 84 (piada com o livro 1984 das ditaduras de pensamentos). Ela entrou na sala já jogou a cadeira no meio do pátio falando que mulher sentada era coisa de sociedade machista e que pra colocar a sociedade nos eixos iria fazer daquela aula uma lição pros homens.
Ela fez todas as meninas ficarem em pé a aula toda enquanto os homens deveriam ficar submissos sentados.
Minha amiga ficou cheio de bolhas nos pés, teve uma que desmaiou e a prof nem ouviu falou que devia aguentar porque era a alienação machista saindo de dentro dela enquanto ascendeu um cigarro no meio do ambiente fechado. Não sou nem advogada mas é crime isso!!
Daí a menina que começou a filmar a Dolores tirou o celular da mão dela e guardou na bolsa. Nós se revoltou.. chamou ela de diaba.
Foi quando começou, ela se revoltou falou que ia mostrar que não existe deus !!!! foi na biblioteca e pegou uma biblia sagrada e rasgou página por página falou que era atrasado as pessoas que ficavam atras das igrejas que eram oprimidas por não abortarem.
Nós não sabemos o que fazer. Temos 45 testemunhas mas estamos com medo de sofrer represália porque não é só ela. Outros professores fazem a mesma coisa aqui e tem historias que eles perseguem fisicamente quem denuncia.
Teve uma menina evangélica que o professor de sociologia puxou os cabelos dela perguntando onde estava deus.... estamos sendo perseguidos e estamos com muito medo é quase um desabafo mesmo acho que vou fugir do pais está sério. uma amiga nossa desapareceu e a polícia disse que não pode fazer nada em um período de 14 dias.
O nome da professora é Dolores Aronovich Aguero. Se alguém puder ajudar dando acessoria advogada nós estamos com muito medo.
FAVOR ENTRAR EM CONTATO URGENTE!"

EU: Ahahauahauahau. Li essa carta em voz alta pro maridão e ele também gargalhou muito (nem metade do que eu ri). Ele comentou alguns trechos da carta. Por exemplo, quando eu li, engasgada de tanto rir, que uma amiga estava desaparecida, o maridão acrescentou: "No momento somos só 44 testemunhas". 
Eu ri muito na parte do meu apelido, 84 (eu podia fazer piadinha dizendo que é a média que meus alunos tiram comigo, mas estaria mentindo -- deve estar mais pra 90), e na parte da falta de resistência das aluninhas (ficar cheia de bolhas nos pés após uma hora e meia sem sentar?!). E, claro, na parte de rasgar bíblias. Segundo a narrativa, isso é tão comum nas federais que as bibliotecas universitárias já estão sem o estoque do livro sagrado!
Onde já se viu rasgar bíblia? A ideia original de eu queimá-las era muito mais eficaz. Sugestão: eu podia fazer uma fogueirinha no meio da classe só com queima de bíblias, aí acenderia um cigarro de maconha (é assim que se chama? Cigarro? Bagulho?), e obrigaria todas aquelas pessoas com bolhas nos pés a puxar unzinho. 
Se vocês tiverem mais dicas infalíveis de como sujar meu nome, deixem aí na caixa de comentários. 
UPDATE: Ontem à noite alguém do chan do mascu sancto Marcelo (este doente aqui) deixou a mensagem acima, crente que esta primeira ação me abalou. E eles já planejam as próximas ações. Eu não sei se os processo ou se uso o vasto material para iniciar uma carreira no stand up comedy.

sábado, 28 de junho de 2014

GUEST POST: PRECISAMOS FALAR SOBRE ESTUPRO

Shaonny Takaiama, jornalista em São Paulo, e autora deste portfólio virtual, me enviou um ótimo guest post:

Quando eu tinha sete anos, eu passava sempre na frente de uma bicicletaria, a caminho da escola. Eu morava com meus avós naquela época e a bicicletaria, que era administrada por dois irmãos que tinham por volta de vinte anos, ficava a poucos metros da casa do meu avô.
Certa vez, voltando da escola, um dos irmãos estava na porta da bicicletaria e me chamou pra entrar. 
Ele disse que tinha uma tartaruguinha lá dentro daquele espaço minúsculo e me perguntou se eu queria vê-la. Mesmo estando com receio daquele sujeito, eu acabei entrando, vencida pela curiosidade, e ele me fez descer uma escada que levava a uma espécie de porão.
Quando eu vi o lugar para onde ele estava me levando, imediatamente meu coração disparou e algo dentro de mim me disse para fugir dali. Eu saí correndo e nem dei chance de ele me perseguir. Me lembro até hoje do olhar desapontado daquele homem, por trás dos imensos óculos de lentes grossas. Ele havia perdido a sua “presa”. Sei que eu teria sido estuprada por ele se não tivesse dado ouvidos à minha voz interior.
Guardei essa história comigo durante anos e, quando contei a alguns familiares, fui desacreditada por todos. Disseram que eu tinha inventado tudo aquilo. Acredito que esta sensação de isolamento é muito similar à que acomete as vítimas de estupro que, quando tentam falar sobre o que lhes aconteceu, encontram, muitas vezes, o julgamento dos parentes e de toda a sociedade.
O episódio que aconteceu comigo fez com que eu sempre sentisse empatia pelas vítimas de estupro, mesmo que eu -– graças a Deus -- nunca tenha sido uma delas. Até hoje, o maior medo que eu tenho é que isso venha a acontecer comigo. Afinal, nenhuma mulher no mundo está livre disso. Ser mulher é muito perigoso.
Sempre me perguntei como eu enfrentaria essa situação se acontecesse comigo. Como eu reagiria, como eu juntaria meus cacos e me colaria depois -- se tivesse a sorte de sobreviver, é claro. Como eu lidaria com a sensação de devastação que vem em seguida? Nunca tive respostas para essas perguntas até assistir ao documentário Brave Miss World, disponível no Netflix (veja trailer aqui).
O filme conta a história da israelense Linor Abargil que, em 1998, aos 18 anos, foi estuprada sete semanas antes de ser eleita Miss Mundo. 
Ao contrário de muitas vítimas, Linor teve amplo apoio de sua família e não se calou. Escancarou ao mundo a violência que sofreu e lutou pela condenação de seu agressor, o agente de viagens Shlomo Nur.
De lá pra cá, Linor encontrou forças dentro de si mesma para se reconstruir e decidiu sair pelo mundo ajudando mulheres que sofreram a mesma violência que ela.
Linor dá uma aula de empatia, de sensibilidade, e se emociona com os relatos de cada vítima, que contam suas histórias através do site que ela montou. Viaja pelo mundo colhendo depoimentos para ajudar outras mulheres a não se calarem diante da violência, a denunciarem seus agressores e, principalmente, a falarem sobre o assunto. Porque ela descobriu que falar sobre isso ajuda a cicatrizar a ferida. Falar sobre o estupro, por mais traumático que ele seja, é um processo de cura.
Um dos lugares que Linor visitou foi a África do Sul, o país com a maior incidência de estupros do planeta. Lá, ela ouviu os relatos de meninas muito jovens que perderam a virgindade de forma brutal. Por estupradores que não apenas queriam violá-las, mas também transmitir HIV. No país, existe uma crendice popular de que é possível se curar da AIDS fazendo sexo com uma garota virgem.
Linor também visitou várias universidades americanas, pois nos campi do país, os estupros estão se espalhando como um câncer. A única falha do documentário, ao meu ver, é não falar sobre a cultura de estupro. Linor questiona por que tantas universitárias estão sendo estupradas em universidades renomadas como Princeton e não entende a causa desta epidemia.
A resposta é simples, Linor. Estupro não tem a ver com sexo, mas com poder. Estupro é um instrumento do patriarcado para colocar a mulher dentro dos eixos. Estupro é pra calar as mulheres. Por isso é tão importante o seu trabalho. Você é um exemplo de coragem, Linor, porque a coragem é feminina.