sexta-feira, 3 de junho de 2022

ÀS VEZES GANHAMOS

Fiquei muito feliz esta semana ao saber que a jornalista Amanda Audi conseguiu ganhar duas ações na Justiça.
No final de 2019, ela denunciou um estupro. O caso praticamente não foi investigado (o que é regra, não exceção, em denúncias de estupro! Menos de 10% das denúncias acabam em algum tipo de condenação já que, em boa parte das vezes, não há provas). Um ano depois, indignada, ela se manifestou no Twitter. O professor acusado entrou com uma ordem para calá-la, para proibir que ela citasse seu nome, embora ele tenha continuado a falar do caso à vontade. Ele também abriu três ações judiciais contra ela, uma criminal, por calúnia, injúria e difamação, e duas cíveis, pedindo no total R$ 150 mil de indenização. E perdeu.
Ele também processou no mínimo outras dez pessoas que se solidarizaram com Amanda no Twitter, pedindo R$ 15 mil de indenização de cada uma. Eu, que sequer mencionei o nome dele, fui uma das processadas, num caso típico de assédio jurídico. A juíza lhe deu ganho de causa, decidindo que eu deveria indenizá-lo em R$ 2.500. Eu recorri, ele também (querendo aumentar o valor). Estamos aguardando a decisão desde o ano passado.
A vitória da Amanda é muito importante para tentar impedir que homens acusados de violência processem as vítimas. Reproduzo aqui o lindo texto da colunista do Uol Isabela Del Monde, escrito em parceria com as advogadas Tainã Góis e Maira Pinheiro, e publicado ontem no Uol.

Enquanto advogadas feministas, comprometidas com a garantia do acesso à Justiça e com a transformação de um direito punitivista em um direito acolhedor, lutamos todos os dias para mudar o Judiciário e impedir que ele seja instrumentalizado por agressores.
E, às vezes, ganhamos.
Foi o que aconteceu no caso da jornalista Amanda Audi. Ela fez um boletim de ocorrência registrando uma violência sexual da qual alegou ser vítima em outubro de 2019. A investigação, infelizmente, foi superficial, e o resultado final foi o arquivamento do inquérito policial —o acusado não foi absolvido, mas sequer foi investigado.
Um ano depois, Amanda usou suas redes sociais para expor o que tinha acontecido com ela, especial foco no baixo grau de engajamento da polícia na investigação de sua ocorrência.
O homem denunciado por Amanda não tolerou seu pronunciamento e a processou exigindo, em primeiro lugar, que ela não pudesse mais falar de do caso em suas redes sociais. Tendo conseguido rapidamente uma decisão liminar que calou a vítima, ele próprio passou a fazer postagens e dar entrevistas na imprensa sobre o caso.
Não satisfeito, ele a processou por danos morais na esfera cível e, na esfera criminal, pelos crimes de injúria, difamação e calúnia. Além disso, processou mais de dez pessoas, entre jornalistas e usuários das redes sociais, simplesmente por terem compartilhado os relatos feitos por Amanda. Os valores que ele pretendia obter junto ao judiciário ultrapassavam os seis dígitos.
Em maio de 2022, após dois anos de processo, o caso de Amanda teve um desfecho pouco comum.
O Judiciário entendeu que ela não deveria ser condenada pela conduta de falar publicamente sobre a situação que viveu.
O juiz do processo criminal entendeu que o autor do processo não conseguiu provar que os fatos narrados por Amanda eram falsos , assim, não demonstrou que a intenção da Amanda foi atacar a honra e a imagem dele. Longe de ter como central o intuito de difamar, reconheceu o magistrado, ela não cometeu crime porque estava apenas contando a própria história.
No processo cível, a decisão seguiu a mesma lógica. Aqui, também, o Judiciário reconheceu que as manifestações de Amanda tinham como intuito fazer críticas à forma como sua denúncia foi tratada, e não buscar qualquer forma de retaliação contra o agressor.
O raciocínio que fundamentou essa decisão é uma grande vitória. Nos garante que, se há violência (ou a probabilidade real de a violência ter acontecido), é lícito que a vítima fale sobre o fato publicamente sem que isso seja lido a partir do ponto de vista do agressor.
Como a Universa já mostrou em algumas matérias, bem como já trazido em textos desta coluna, o assédio judicial tem sido uma estratégia de silenciamento de mulheres que se pronunciam sobre as violências que sofreram. A prática consiste, essencialmente, em um uso abusivo do judiciário para pressionar as denunciantes, econômica e psicologicamente.
Após relatarem suas histórias, muitas mulheres têm sido afogadas em processos judiciais que visam proibí-las de falar publicamente sobre o que viveram, bem como puní-las por crimes como difamação e calúnia e obrigá-las a pagar indenizações por danos morais àqueles que apontam como agressores.
É evidente que uma acusação precisa ser investigada e que o direito à defesa precisa ser defendido e respeitado.
Contudo, não podemos tratar o Judiciário e o processo judicial como instrumentos neutros e sem contradições de gênero.
O que uma vítima pode fazer se os órgãos competentes pela investigação não realizam seu trabalho de acordo com a lei e com as melhores práticas de enfrentamento à violência de gênero?
Engana-se quem acredita que as mulheres vítimas contam suas histórias nas redes sociais como primeiro recurso. Antes disso, elas costumam buscar ajuda nas delegacias e em serviços de saúde. Entretanto, em grande parte dos casos, o Estado falha com elas ao desacreditar sistematicamente sua palavra, ao deixar de investigar, ao se recusar a ouvir testemunhas ou reproduzir formas de opressão e silenciamento em audiências, oitivas e decisões.
A vítima deve aceitar calada que sua dor não vai ser reparada pelo Estado? E mais: como podemos promover transformações concretas se a vítima não tem o direito de falar publicamente sobre a violência e a ineficiência do sistema de Justiça?
Há quem defenda que a obrigação da vítima é silenciar, uma vez que suas falas públicas podem prejudicar a vida pessoal e profissional do homem apontado como seu agressor.
Entretanto, essa posição é mais um reflexo de uma sociedade que se empatiza muito mais com a reputação masculina e que fecha os olhos para todos os prejuízos que uma vítima enfrenta após ser alvo de uma violência. Por que apenas os danos à vida do acusado são levados em consideração?

9 comentários:

titia disse...

VIVA! Pena que o blog não tenha reações de confete nem gifs de fogos de artifício, mas é assim mesmo que eu gostaria de expressar minha opinião. Parabéns e viva, pra Amanda primeiro e pra todas nós!

Luise Mior disse...

Boa notícia para variar. Valeu por compartilhar Lola!

Anônimo disse...

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/forum-anonimo-organiza-tatica-para-producao-de-fake-news-pro-bolsonaro/

Alan Alriga disse...

Finalmente um pouco de justiça nesse país

Anônimo disse...

Sabe porque as mulheres que são vítimas de violências dos homens não são acreditadas? Porque o que se constitui como violência é definido para nós por homens -- não por nós. Ele assediou? Isso é só um elogio. Ela gritou? Isso é violência verbal. Ele apalpou? Isso é lisonjeiro. Ela deu um soco nele de volta? Isso é violência física. Ele abusou? Isso não pode ser evitado. Ela o denunciou? Isso é violência difamatória. Ele estuprou? Isso é apenas sexo ruim. Ela é feminista? Isso é ódio aos homens -- a pior violência. É simples assim; o mundo não acredita nas mulheres que são vítimas da violência dos homens (e é ávido em ficar do lado dos homens) porque até a nossa definição de "violência" é machista, misógina.

- Farida D.

Anônimo disse...

Lola, vi as notícias recentes. Tenho uma dúvida: qual é o chan mais perigoso daqui, Brchan, 55chan, Dogolachan ou 1500chan?

avasconsil disse...

Bom, não quero ser o chato estraga prazeres. Mas ainda não é a hora das comemorações. Uma das coisas mais frustrantes no sistema de justiça é que ele é como uma corrente, tem a força do elo mais fraco. Às vezes acontece de um caso ter sido corretamente investigado pela polícia civil e/ou ministério público, de o juiz ter dado uma sentença correta (não, moristas e lavajatistas, não estou falando aqui dos processos contra Lula, que não se enquadram aqui, pois neles houve uma confusão entre as funções de investigar, processar e julgar, que é inconstitucional mesmo... O STF demorou, mas no fim acertou), e de todo esse trabalho de muitas mãos ser derrubado pelo Tribunal de Justiça ou por um Tribunal Superior, como STJ ou STF. Com uma sentença favorável, só dá pra ficar um pouco feliz. Pois a estrada é longa e ainda tem muita água pra rolar. Quem trabalha no ou com o sistema de justiça, como advogados, advogadas, toda a gente, pode ver seu bom trabalho ser derrubado no julgamento de um recurso. Só muito amor mesmo, às leis e a essa coisa toda (que pode incluir o beija-mão sacal, ou o molha-mão inescrupuloso..., a desembargadores e ministros...) pra ser feliz com um trabalho chatíssimo desse. Trabalho com isso há quase 18 anos ao todo, e ainda não me acostumei com a frustração.

kay wilbury disse...

Farida D. Concordo plenamente contigo. Vivemos num mundo moldado por (e voltado para) homens. Nós mulheres somos consideradas apenas objetos, utilidades, algo a SERVIR para alguma finalidade conforme a faixa etária em que estamos. Estamos no mesmo nível de carros, coisas, eletrodomésticos, hobbies, entretenimento. Não somos vistas como seres humanos iguais a eles. E a sociedade de modo geral (mulheres incluídas) absorveu isso, por isso é tão difícil tratar de questões importantes, como a violência, sexualidade, trabalho, direitos e deveres. As pessoas não entendem, tipo "como assim, qual o problema? Onde está o problema?"

Anônimo disse...

O que Lola teria a dizer sobre a menina estuprada e que teve o direito legal ao aborto negado por uma juíza é uma procuradora ? Duas mulheres em cargos importantes mas que foram capazes dessa injustiça !