"Vivas nos queremos": em Buenos Aires, em outubro. Quando será aqui?
O caso de Débora Soriano é assustador. Ela era feminista, era militante, fazia parte da União da Juventude Socialista e da União Brasileira de Mulheres.
Era evangélica, tinha 23 anos e dois filhos. Semana passada, na manhã do dia 14, ela foi a um bar na Mooca (SP) com amigos, entre eles Willy Gorayeb Liger, gerente do bar e primo do dono. Willy disse ao dono, por telefone, que "perdeu a cabeça" e matou Débora dentro do bar usando um taco de beisebol.
Há também fortes indícios de estupro. Willy já tinha uma mandado de prisão em aberto e respondia por estupro e roubo. Agora ele está foragido (UPDATE: ele foi preso no interior da Bahia na casa de familiares em 23/12 e está preso. Ele confessou o crime).
No domingo, houve um ato na Av. Paulista chamado Nenhuma Débora a Menos. Provavelmente não foi muita gente, porque não vi nada nos jornais.
Sei que é final de ano, sei que estamos todas exaustas e desanimadas depois de um 2016 tenebroso.
Este ano deu tudo errado. Passamos o primeiro semestre dizendo "Não vai ter golpe. Vai ter luta!" Aí veio o golpe e não teve luta (ou teve pouca luta; os estudantes de escolas ocupadas certamente estão lutando). Imaginávamos que haveria uma grande mobilização depois do caso da menina estuprada por 33 homens no Rio. Seria uma nova primavera feminista. E não foi. Tivemos protestos em várias cidades, mas não atraiu grande público, nem foi algo contínuo.
Nossas hermanas argentinas continuam se revoltando e reunindo milhares de pessoas em protestos como o Ni Una a Menos. O caso mais recente (porque a violência contra as mulheres não para; lá uma mulher é assassinada a cada 30 horas por violência machista; aqui, uma mulher é morta a cada duas horas) aconteceu no sábado, quando uma mulher moribunda (que viria a morrer no hospital) foi encontrada empalada no meio de uma estrada. Quando teremos atos desta magnitude por aqui?
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Um dos "reaças zueros" que diariamente combatem o feminismo |
Enquanto isso, feministas (e outros ativistas de direitos humanos) vivemos numa terra sem lei. As ameaças a mim já tem seis anos. Minha família é ameaçada há apenas dois. O grupo que me ameaça opinou sobre o terrível assassinato de Débora num chan (cuidado, trigger warning):
Tirando a Operação Intolerância, que levou dois mascus pra cadeia (não por causa das ameaças a mim ou a qualquer outra pessoa), mais nada foi feito.
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Marcelo Valle Silveira Mello |
Um dos mascus, Marcelo, voltou a fazer tudo que fazia antes de ser preso e continua solto. O sentimento de impunidade é tamanho que o cara fez prova de seleção de mestrado na mesma área (Ciências da Computação) e universidade em que leciona um professor que teve a filha menor de idade ameaçada de estupro, tortura e morte. Marcelo não passou na seleção, mas não por causa do professor em questão, que não fazia parte da comissão, e sim porque um outro professor resolveu ver o currículo Lattes dos candidatos na internet, e deu de cara com a ficha corrida de Marcelo. Agora Marcelo, sentindo-se excluído, promete atacar a UFTPR, assim como fez durante anos com a UnB, na qual foi alunos de Letras Japonês por alguns meses.
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Marcelo promete vingança a professor universitário |
Anteontem, enquanto os misóginos cobravam de mim um posicionamento diante do escândalo Murilo Cleto, eu estava conversando via DM com uma professora universitária.
Em novembro, ela trocou alguns tuítes comigo. E os mascus decidiram puni-la por isso (assim como puniram o professor da UFTPR, mas como ele é homem, não tem muito que fazer. Felizmente pros misóginos, ele tem uma filha, uma menina, que pode ser ameaçada de estupro). Colocaram o nome e telefone residencial da professora em sites de prostituição e de swing, fizeram montagens pornôs com a sua foto, e enviaram essas fotos ao departamento onde ela trabalha.
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Email enviado |
Anteontem, mandaram a foto de uma mulher decapitada pra todo o departamento, perguntando se era a professora. À tarde, voltaram a enviar um outro email, também para todo o departamento, com o aviso que se a professora continuasse lecionando lá, eles cometeriam um atentado na faculdade, matando "pelo menos umas cem pessoas".
Isso configura terrorismo. A polícia conhece os casos. Todas as pessoas ameaçadas fizeram boletim de ocorrência. Mas não faz nada. Um dos delegados responsáveis por crimes cibernéticos está em licença capacitação há meses, e, aparentemente, não deixou substituto. O mesmo com o meu caso. Um grupo de proteção a defensores de direitos humanos conseguiu reunir meus nove BOs e levá-los para serem investigados pela Delegacia da Mulher, pois é um crime de gênero. Mesmo assim, está tudo parado lá desde o início do ano. Um advogado que me ajuda sequer conseguiu se reunir com a delegada.
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Guilherme, eu e Ricardo em casa |
Mas não parece que toda a Polícia Federal está envolvida com Lava Jato e afins, já que restam alguns agentes para investigar quem fez ofensas racistas à filha de Bruno Gagliasso ou a Maju. Não estou desmerecendo, acho ótimo que haja investigação e condenação por racismo. Só que, por misoginia não ser crime, pode-se tudo. Faz um ano que o Profissão Repórter fez uma reportagem sobre feminismo e sobre as ameaças que recebo. O jornalista que me entrevistou, Guilherme Belarmino, por ser negro, também passou a ser alvo de ameças do mesmo grupo. A Globo entrou com um processo, mas nem o poder da emissora faz esse caso ir pra frente.
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Algumas das muitas ameaças a Guilherme no chan de Marcelo |
Então é assim. Vivemos num país em que mulheres são espancadas, estupradas, mortas, com grande impunidade. As únicas pessoas que tentam combater esta violência são as feministas. Essas pessoas, as feministas, são combatidas violentamente.
E quando se fala em "indignação seletiva", frase favorita dos reaças, queria lembrar que reaças nunca se opõem à violência que feministas como eu sofrem. Nesses seis anos de ameaças praticamente diárias, nunca vi um só reaça condenar essa violência. Eles acham que ela é merecida ou inexistente, criação da minha mente, mimimi vitimista. Quando a Globo expõe essa violência num programa, o que um formador de opinião reaça como Danilo Gentili faz? Faz piada chamando a feminista de gorda. Ou seja, estão no mesmo barco. Porque isso tudo tem lado. Nossa agenda é lutar contra o machismo. A deles (e é um erro crucial pensar que eles não têm agenda, que ideologia é só a gente que tem) é lutar contra quem luta.
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Algumas ameaças são ilustradas |
Que fique claro. Se você demoniza feministas, se você ataca feministas, se você chama talvez o maior movimento revolucionário do século 20 de "modinha da internet", se você se cala diante das agressões a feministas, se você faz graça com estupros e violência doméstica, não tem jeito: você é misógino. E você é acima de tudo ignorante, porque você também se beneficiaria de viver num mundo sem violência contra as mulheres.