terça-feira, 20 de março de 2012

É XENOFOBIA SER CONTRA COREANO COMER CARNE DE CACHORRO?

A Mayara me enviou um email (que dialoga um pouco com o último guest post) cheio de questões interessantes. Reproduzo só parte dele e, embaixo, respondo. Lá vai a parte da Mayara:

Tenho visto, ultimamente, notícias sobre apreensão de cães em freezers de restaurantes, geralmente coreanos, aqui no Brasil. Minha família é da região de Piracicaba-SP, onde há grande fábrica de uma montadora coreana. Essa montadora utiliza mão-de-obra de muitos coreanos que foram se instalar ali pela região. Pois bem, obviamente, alguns restaurantes coreanos foram abertos por lá. E a polícia de Piracicaba tem feito blitzes em alguns deles, encontrado cães mortos acondicionados em freezers, para serem servidos como alimento para os coreanos da região. Parece que mais 8 mil famílias de coreanos chegarão a Piracicaba para reforçar o trabalho na fábrica e, claro, vão precisar de mais cães.
Em São Paulo, há muitos restaurantes coreanos e vi uma reportagem, há alguns meses, que mostrava que várias famílias estavam pegando cães de rua para vender a esses restaurantes. Inclusive, uma cena triste, que mostrou a polícia entrando em uma casa de pessoas simples, mas não miseráveis, apreendendo todos os cães que ali se encontravam, porque essa família foi denunciada por recolher cães de rua para vender aos coreanos. No meio dos cães, havia dois deles que não eram para venda, mas de estimação da família. A reportagem mostrou as crianças, filhas dos donos da casa, chorando muito, desesperadas, pois aqueles dois cães, no meio dos outros apreendidos por serem destinado a comida em restaurantes, eram deles há alguns anos.
Acho que já deu pra vc entender que, agora, no Brasil, temos esse tipo de comércio que é clandestino. Há leis que punem esse tipo de coisa. É proibido por lei servir animais de estimação em restaurantes. Maus tratos são punidos com multa e cadeia, se matarem o animal, a pena é maior. Há distinção entre bichos de estimação e animais criados para abate e alimentação.
No CQC da semana passada, na bancada, o Marcelo Tas fez uma encenação, como era reestreia, de que a Globo havia mandado um presente para eles. Abriu uma grande caixa, e de lá saiu um gato preto, com cara de assutado, e eles riram, dizendo que a Globo havia mandado um gato preto como "mau agouro", desejando má sorte a eles, na reestreia. Depois, apareceram comendo churrasquinho, como se tivessem matado o gato preto azarado e o comido.
Muita gente protestou. Eu não sou de nenhuma entidade de proteção aos animais, mas achei de péssimo gosto, pra variar. O CQC sempre se superando...
Vi muita gente dizendo que quem reclama dessas coisas, sobre matar cães pra comer e servir em restaurantes coreanos ou contra esse tipo de "piada" com os bichos, é gente hipócrita, pois "come carne". E que se queremos que certos tabus caiam, por exemplo, contra homofobia, contra o machismo, não podemos alimentar outros tabus. Nossa! Fiquei meio passada. É isso mesmo? Uma coisa pode ser misturada no mesmo balaio de outra?
E fui xingada de xenófoba, assim como alguns amigos meus, por nos indignarmos que sirvam cães em restaurantes, vendam-nos para esse fim, e por dizermos que, se no Brasil é proibido fazer isso por lei, que esta deve ser cumprida.
Lola, não sou legalista dessa forma, claro que sei que há leis que devem ser peitadas, até porque, se não fossem, não teríamos nem saído da ditadura. Mas essa sobre matar bichos que são de estimação, para os brasileiros, não acho que deva ser "peitada". Se eu vou a outro país, há certos costumes que devo observar por lá, não é?
É mesmo xenofobia ser contra restaurante coreano servir carne de cachorro? Xenofobia é isso? Quebrar tabus não seria quebrar para coisas "boas", para boas causas? Enfim, eu sou contra coreanos virem ao Brasil e se acharem no direito de comer cães! Estou errada? Preciso mudar minha mentalidade?

MINHA RESPOSTA: Eu não sou a pessoa mais adequada para falar de tradições, rituais e costumes, porque estou me lixando pra eles. Modelo patriarcal de casamento (aquele em que o pai entrega a filha pro noivo) é tradição, e eu quero que acabe. Touradas, farras do boi, rinhas de galo, tudo muito tradicional -- e já deviam ter sido proibidas há décadas. Mutilação feminina para que a mulher seja aceita na sociedade? Super tradicional, e daí? Quero mais é que esses costumes morram. Eu não respeito muitas das tradições da minha própria cultura, e não vou respeitar as dos outros.
Não nasci pra ser diplomata. E quando digo isso, não é só porque não tenho apreço às tradições, mas também porque nem morta que eu iria comer alguma coisa que não gosto só pra ser educada.
Comida é algo cultural. Desde as primeiras semanas de nossas vidas, nos ensinam o que nossa cultura considera comestível e o que não considera. Bebê vai levar tudo pra boca, e é nossa cultura que vai dizer que aquele gafanhoto (pra não pensar em inseto pior) que a criança pegou não é pra ser mastigado (trocando em miúdos: "Argh! Tira isso da boca, menin@!").
É especismo sim, e também é cultural, que alguns animais sejam vistos como comida, outros como de estimação, outros como bichos nojentos. E é terrível quando a mesma cultura considera o mesmo animal comestível e de estimação. A cena mais chocante de Roger e Eu, documentário de Michael Moore sobre a falência de toda uma cidade de Michigan quando uma montadora de automóveis vai embora pra se instalar num país mais baratinho, é aquela em que uma americana pobre vende coelhos. Ela vende os mesmos coelhos para servirem de estimação ou de comida, o comprador que decide.
Eu não como coelho porque, na minha cabeça, antes de serem carne, são bichos fofinhos, orelhudos e saltitantes. Mas sei que é hipocrisia minha, porque também considero bois, vacas, porcos e galinhas -- todos bichos que eu como -- animais bonitos e queridos. Só que aí a solução, a meu ver, não é sair por aí comendo todos os bichos que encontro pela frente, e sim deixar de comer carne. Ponto. Estou ciente de como o ser humano explora os animais, odeio isso, e gostaria de ser vegana, ou pelo menos vegetariana. Mas ainda não estou pronta. Meus hábitos alimentares são ruins o suficiente pra eu não ter muito que comer se eu fosse vegana. E eu ainda adoro o gosto da carne. O que tento fazer é reduzir o consumo de carne o máximo possível. E nunca, jamais, criticar quem é mais nobre e altruísta que eu porque conseguiu deixar de comer carne. Tenho grande admiração por vegetarianos, veganos, defensores de animais em geral.
Eu contribuo com cem reais por mês com uma ONG de Fortaleza que ajuda animais abandonados. Amo cães e gatos igualmente, e jamais poderia me imaginar comendo esses animais (espero nunca ter comido churrasquinho de gato na vida). Se eu visse uma vaca antes de ser abatida, não poderia comê-la. Quando eu era bem novinha, presenciei uma vizinha matando uma galinha -- e fiquei sem comer frango por um ano. Depois de ver Babe, o Porquinho Atrapalhado, não comi presunto e afins durante meses. Creio, sinceramente, que a maior parte de nós só é capaz de comer carne se não pensar de onde vem essa carne. Imaginar animais levando uma vida infernal, confinados e explorados, e depois sendo degolados com requintes de crueldade, é de estragar qualquer apetite. Somos hipócritas.
Não acho, de jeito nenhum, que coreanos ou quem quer que seja deva poder comer cachorro. Nem aqui nem na Coreia. Como eu já disse, não é por alguma coisa ser tradição que a gente tenha que falar "amém" pra ela. Mas acho que a xenofobia não está em querer proibir coreanos de comer carne, e sim em associarmos coreanos com comedores de cães. Isso está muito longe de ser verdade. Na escola (internacional) onde estudei, em SP, convivi durante anos com um monte de coreanos. Tudo gente boa, com algumas tradições problemáticas (tipo coreano só poder se casar com coreano, e outras visões bem conservadoras), mas eram amigos simpáticos e perspicazes. Ninguém comia cachorro. Aliás, eles se ofendiam com a sugestão.
Eu comi comida coreana (que é excelente, apimentada, gostosa) inúmeras vezes, e não havia qualquer menção de
carne de cachorro no cardápio. Não sei se você lembra das matérias sobre a Copa do Mundo de 2002, realizada na Coreia do Sul. Os jornalistas de toda parte, não muito criativos, insistiam na pauta da carne canina. E os coreanos cansavam de falar que, embora aquele fosse um costume milenar, estava caindo. Jovens coreanos acham horrível a ideia de se comer cachorro, que é animal de estimação pra eles. Em Seul é praticamente impossível encontrar prato feito com cachorro. Em algumas províncias isso ainda existe, mas é cada vez mais raro. Se já na Copa de dez anos atrás os coreanos se apressavam em dizer que não comiam cães, imagina hoje...
Portanto, há várias questões. Primeiro que é exagero pensar que coreanos comem cachorro desenfreadamente, ou que todo restaurante coreano serve carne canina. São casos isolados. Segundo que, se comer carne de cão está por baixo na Coreia, não é nada legal que coreanos queiram consumi-la no Brasil -- um país que só aceita cães como animais domésticos (e que mesmo assim os trata muito mal). Vamos supor que uma família da Somália se mude pra cá, e queira continuar o costume de mutilar os genitais de suas filhas. A família deve poder fazer isso em nome da tradição? Óbvio que não! Nem na Somália, nem aqui. Mas é xenofobia pensar que todas somalis sofrem mutilação genital.
Um terceiro ponto é que o consumo de carne canina no Brasil está relacionado a status. É coisa pra coreano rico, assim como brasileiro rico vai a churrascarias chiques pra comer carne de caça. Ricos fazem essas coisas como demonstração de poder. Pra se diferenciar da gentalha. Pra provar que são especiais e que o dinheiro compra tudo. Se eu já detesto tradições, vou gostar de tradição de rico esnobe e sem empatia? Pra mim, rico querer comer carne proibida é como gostar de snuff film (aquele tipo de filme pornô que é meio lenda urbana, em que mulheres são estupradas, torturadas e mortas de verdade diante de uma câmera). Snuff film é coisa de rico. Só eles podem pagar uma vida. Só eles pra financiarem a impunidade.

209 comentários:

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Marcelly Sanches disse...

Bom dia de novo Lola...

lá vou eu falar de algo polemico com vcs..
esses tempos discuti com um amigo meu que é dono de um açougue..açougue da familia na verdade, onde eu disse que não sou exatamente contra que o ser humano coma carne, sou contra o como fazemos isso..como tratamos esse animais, sou contra o fato de que comemos por prazer e não por necessidade...sou contra o capitalismo se apropriar disso para lucrar tratando de forma monstruosa esses animais...sou contra o consumo desenfreado...cada vez mais acredito que o mal não está em algumas coisas que fazemos mas no que queremos com esses atos...comer carne nãop seria tão ruim se tivessemos o minimo de respeito pelo nosso alimento, alias não só pela carne mas por toda a natureza...acho que é um direito cada um decidir se quer comer carne ou não mas deveria ser um direito saber como esse alimento...esse ser vivo é tratado...me desculpem os vegetarianos se não tratei os animais com o respeito devido..mas não consigo ainda ser vegetariana.mas respeito a força de quem é..e assim acredito que também mereça o respeito de vocês.

Anônimo disse...

Você está tão indignado porque o CQC é um programa para inteligentes :\ E o que o CQC quis passar n foi "OLHA COMI O GATO" E sim, Olha globo vocês me mandaram o gato? Pois vamos aproveitar. É a velha história do "Se a vida de der um limão, faça uma limonada"

Anônimo disse...

Contra tradição? Contra tradição? Uma pessoa que afirma que todas as tradições devem morrer, não parou para pensar nas prórprias palavras. O que formou a humanidade como nós a conhecemos e tudo que te cerca chama-se tradição. Você acha que não segue nenhuma tradição? Então está bom, faz o seguinte então: me mostra essa sociedade que vc vice, e principalmente se você não tem uma herança tradicional nas suas costas, então porque vc está indginada com a matança dos cahorros para comer? Sabe porque? Porque as tradições da cultura que vc nasceu prega que isso é errado e monstruoso ( mas comer o boi não né?) Todo ser humano está imbuído até o pescoço com a sua tradição ou seja lá o nome que queira dar. E como sempre na história da hmaniadade, entre as diferenças sempre surge aquele que acha que a sua é mais civilizada que as outras e portanto as outras devem ser convertidas. Gregos na antiquidade, romanos, Europa medieval, China antiga, Japão, Jesuítas nas Américas e hoje me dia também. Olhe ai o seu exemplo: Toda cheia de discuros qurendo provar que é contra as tradições, até as próprias, porém fica ofendida quando o outro faz algo que foge Á SUA TRADIÇÃO. Hipócrita não, acéfala. E danem-se não vou me identificar.

Anônimo disse...

esses dias eu liiii em um blog que não poderiamos criticar uma tribo X por ela comer carne humana ,pois isso fazia parte da cultura dela. O.o q absurdo!! isso de respeitar a cultura alheia não pode ultrapassar o nosso senso de justiça!!

izumi disse...

Até agora não vi nenhum link de reportagem dizendo que efetivamente foi fechado algum restaurante coreano por estarem com cachorros em seus freezers. Vi apenas acusações e rumores, claro que os coreanos devem saber que aqui no Brasil é crime matar cachorro para comer a carne do mesmo, crime ambiental da mesma forma que matar animais silvestres. Não acredito que seriam loucos de fazer isto aqui correríamos o mesmo risco de matar e comercializar clandestinamente carne bovina na India. Acredito que esses falsos rumores sejam lançados para tentar desqualificar os coreanos enquanto etnia, é pura e simplesmente racismo.

Anônimo disse...

Estão falando muito em: "se está na lei, cumpra-se"; ok!
Mas não é bem assim; a lei historicamente acompanha a dinâmica social, e não a sociedade se acomoda numa legislação estática... Ou seja a sociedade adquire costumes e a lei se adequa e regulamenta... Isso é Direito.
Esse argumento lei se cumpre é relativo; deve se cumprir para não incorrer nas penas; mas nem sempre o que é legal está em concordância com os hábitos sociais contemporâneos.... Lembro que até meados de 2008 adultério configurava crime na lei brasileira, com o passar do tempo entrou em desuso e foi revogado o artigo do código penal que tipificava o crime de adultério. Isso sem falar em escravidão que há 150 anos era lei e hoje é memória e vergonha...
Então, a legalidade de se alimentar de cães é secundaria nessa discussão, nem tudo que é lei é certo e nem tudo que é certo esta na lei; essa dinâmica social é muito mais rápida do que a adaptação legal.
O mote é: não da pra comparar consumo de carne animal com degradação humana, a lei brasileira só prive consumo de cães ou cavalos por questões sanitárias.
Quanto a gosto, não se discute, carne é carne, contanto que não seja de gente, por que não? Concordo que faz pena ver animais sendo mortos para virar comida; mas somos onívoros por natureza; é a mesma pena que faz uma águia comer um Coelho; mas o nome disso é Natureza e antes de sermos humanos tbm somos animais e temos instintos primitivos.

Por fim; não considero xenofobia, sim hipocrisia... Melhor regulamentar o civismo do que proibir ou podar a cultura alheia...

Anônimo disse...

Ah! Meu nome é Luciano; não tenho conta no Google por isso apareceu anônimo. Minha formação é sociológica e jurídica... Obrigado e parabéns pelo post!

Anônimo disse...

Cada um coma o que quiser, mas ninguém pode impor sua cultura ou ponto de vista a outro. Difícilmente eu vou encontrar o pão de queijo mineiro ou o frango com quiabo, ou o barreado do Parana la na China então eu como aqui no Brasil. Lá, se algum dia eu tiver vontade de ir e a oportunidade, eu, com certeza vou experimentar outros cardápios ou como salada. Ninguém pode julgar ou criticar a cultura ou os hábitos de outro povo, mas ninguém também é obrigado a gostar. Toda essa discussão é fruto do avanço da economia chinesa no mundo, da globalização, mas as barreiras culturais sempre irão existir

DeniseM disse...

Como disse o Lucas, não é legal falar mal do cara que come cachorro se você come carne.

Eu também acho coelho uma coisa fofa, mas tb acho uma delícia!
Meu pai morreu aos 100 e poucos dizendo que a melhor carne que ele comeu foi de cobra.
Perguntei pro meu vizinho da frente o que os chineses não comem (ótimo livro, alias) e ele nem entendeu a pergunta! (por via das dúvidas não deixo meus gatos soltos no corredor)...
A venda de carne de cachorro é proibida no brasil, pq ele é considerado "bicho de estimação"...

Não concordo com um monte de tradições, acho q tourada e rinha são tortura. Mas em termos de alimentação, sinceramente, não vejo restrições.

Obrigada!

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