quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

EU SOU UMA CÂMERA

Sei que tá fora de foco. Foi o maridão que tirou...

Finalmente fomos a um musical aqui em Detroit! E os preços não foram proibitivos como os da Broadway, até porque a peça tinha pouco a ver com Broadway. Pagamos 18 dólares cada um pelo ingresso, mais 3 por comprar com o cartão de crédito (!), por telefone. O musical em questão era “Cabaret”, produzido por um grupo chamado Stagecraft
ers. Eu e o maridão tivemos a sorte de sentar ao lado de um casal velhinho simpaticíssimo que é membro do grupo há vinte anos, então eles nos contaram tudo. Este grupo tem 300 membros, praticamente todos lá de Royal Oak, um subúrbio charmoso de Detroit. No começo da década de 80, o teatro Baldwin, que é divino, encontrava-se abandonado, quase condenado pela prefeitura. Os membros se juntaram, compraram o teatro, fizeram uma reforma geral, mantendo todos os detalhes do original, e apresentam lá suas montagens desde então. O que é surpreendente é que a companhia nunca entra no vermelho. As peças se pagam, e olha que “Cabaret” tinha um elenco de 16 atores, orquestra ao vivo, cenários e figurinos simples mas bonitos...

Eu vi “Cabaret” em São Paulo muitos anos atrás, em 1989. Tinha o Diogo Vilela como mestre de cerimônias e a Beth Goulart como Sally Bowles. O que mais me lembro é do número do “The Money Song”, bem criativo. Logo, não fiquei comparando essa versão de Detroit com a superprodução de São Paulo. Mas não compará-la com o filme foi missão impossível! O musical de 1972, vencedor de vários Oscars, não é um filminho qualquer. Pra mim e pro maridão, é um dos maiores de todos os tempos, que a gente ama de paixão. E imediatamente percebi que o papel mais difícil é o do mestre de cerimônias, não o da Sally, porque não dá pra esquecer a interpretação do Joel Grey. O ator do Stagecrafters até que se esforçou, mas só conseguia tentar imitar o Joel. De qualquer jeito, adoramos a montagem, que apresentou um monte de coisas diferentes do filme. Por exemplo, na obra-prima do Bob Fosse, o casalzinho apaixonado que não pode se casar - porque a mulher é judia, e eles vivem na Alemanha, bem no momento da ascensão do nazismo – é jovem. Na montagem que vimos, o casal já passou da meia idade, e o fato de que dois solitários precisam morrer sozinhos só por causa de uma irracional perseguição religiosa comove ainda mais. Esse casal tem tanta importância quanto Sally e o estrangeiro que testemunha tudo (e, por ser de fora, é o único que percebe a histeria coletiva tomando conta da Alemanha. Não por coincidência, a peça original, antes de virar o musical consagrado, chamava-se “Eu Sou uma Câmera”).

Ah, quando acabou a peça, o casal que sentou-se do nosso lado nos ofereceu uma carona até em casa. Viu que amor? E eles moram lá em Royal Oak, pertinho do teatro, daria pra ir andando. Vieram de carro até lá porque, como Sandy (a senhora) me explicou, “Somos americanos”. E a peça que ela está dirigindo, “Frozen” (“Congelados”), estréia no início de março! Certamente estaremos lá.

E, como esse casal conhece todo mundo, acabamos conhecendo todo mundo também. Inclusive o diretor, uma figura muito divertida e entusiasmada. Eles nos apresentavam como “o casal que veio do Brasil ver a peça!”. Eu era a aluna de doutorado em Shakespeare, e o maridão, um campeão de xadrez (é incrível como uma pessoa sobe no conceito das outras por jogar xadrez, e como “jogador de xadrez” vira “campeão de xadrez”, a profissão mais glamurosa do mundo, em questão de segundos!). Descobri que o diretor da peça está encrencado pela mensagem que publicou no programa. Também, pudera. Olha o que ele escreveu (perdoe minha péssima tradução): “'Cabaret' nos permite presenciar um tempo e um povo, e nos ajuda a entender como, por que e quando uma nação inteira ficou tão degradada, tão desesperada, a ponto de estar disposta a trocar sua liberdade por segurança, prosperidade e a ilusão da invencibilidade. Vejo o que a América está se tornando, sob a cumplicidade silenciosa de tantos, e tenho medo. Não medo de terroristas, mas medo do futuro do nosso país. Muitos podem dizer, 'Isso nunca aconteceria aqui'. Ao que eu respondo: era isso que os alemães diziam”.

Uau! Muita gente do próprio grupo se opôs à mensagem, como era de se esperar. Mas fico feliz que existam americanos corajosos e perspicazes como esse diretor. Ele é a câmera.

Interior do Teatro Baldwin em Royal Oak, subúrbio de Detroit

5 comentários:

Anônimo disse...

Que legal Lolinha, bom que vocês deram sorte de fazer contatos legais e por serem um casal de idosos (simpaticos, dificil que não fossem né ?) fica tudo mais legal ainda.
Bom, quanto ao espetaculo não tenho mto oq comentar, é meio complicado comentar isso né ? Mas para nao ficar sem comentar nada, o preço foi otimo né ?

Julio Cesar disse...

Estou com o Pedro. É difícil comentar pra quem nunca assistiu um musical (só no cinema e um vídeo no youtube!). Sempre quis saber funciona o áudio nestes espetáculos. É uma pergunta boba mas os atores usam microfone? Estou vendo o vídeo da Jennifer Holliday em Dreamgirls, deve ser duro cantar para as pessoas da última fileira. :-)

lola aronovich disse...

Este artigo foi publicado na Noticia no sábado e recebi alguns emails de lá pra cá. Todos comentavam a mensagem do diretor da peça. Acho que esse é o principal ponto mesmo, de como uma produção cultural pode servir de registro de um tempo e lugar.
Julio, atores (de teatro) e cantores tem superpoderes, e conseguem projetar a voz pras últimas fileiras. Mas acho que, quando tem banda ao vivo, eles usam microfones sim, porque aí fica dificil concorrer com a música. Ai, esse é o video da Jennifer Holliday na entrega do Tony? Eu choro baldes toda vez que vejo...

Julio Cesar disse...

Eu entendi o principal ponto do texto. Eu fiquei uns cinco segundos sem reação depois de ler a mensagem do diretor. É mais um que a gente coloca ao lado do Michael Moore no altar.

Sim, é o vídeo do Tony.

Unknown disse...

Os Estados Unidos são um país interessante, plural, apesar do que a maioria das pessoas conseguem julgar do lado de fora. Quando morei aí, encontrei "radicals" bacanas. Esse diretor é dos nossos: pertinente e político no melhor sentido. Acho que poucas vezes vi um filme com uma mensagem política tão contundente como Cabaret. Sempre penso na cena antológica do garoto angelical cantando "tomorrow belongs to me" naquele clube de campo.
Fico feliz que você esteja vivendo essas experiências legais e compartilhando com a gente.
Um beijo!
Chris