segunda-feira, 30 de março de 2020

A ROTINA DE TRÊS BRASILEIRAS DE DIFERENTES GERAÇÕES NA ESPANHA DURANTE O CORONA

A Espanha não lidou bem no enfrentamento à pandemia (demorou para reagir, e só começou a quarentena no dia 14 de março), e hoje é um dos maiores focos do corona no mundo, com mais de 800 mortos por dia. 
O país já ultrapassou a China no número de infectados (está com 85 mil). Em número de mortos, já conta com 7.340, atrás apenas da Itália. 
Mas nem tudo é desespero. Publico hoje um texto maravilhoso que Maria Ferreira escreveu especialmente pro bloguinho, cheio de detalhes e esperança. Ela foi estudar espanhol por 6 meses em Madri em 2017, depois de se aposentar do Banco do Brasil em Fortaleza, e acabou ficando por lá com a filha (e, depois, a neta). Agora Maria começou um canal no YouTube. Vai lá!

Acompanho desde o início o caos ocorrido na China com a expansão do coronavírus. Quando começou na Itália, eu já imaginava que ele chegaria até nós rapidamente. Sabemos que a globalização ocorrida nas últimas décadas nunca trouxe benefícios para os mais necessitados no planeta, mas é inegável a evolução nas telecomunicações, transporte etc. Em poucos dias estaríamos todos no mesmo barco.
Assim, iniciei um planejamento para uma possível quarentena. No dia 28 de fevereiro fiz uma compra de produtos de limpeza, alimentação, fraldas, paracetamol, soro para hidratação para o caso de disenteria etc. Busquei álcool gel e máscaras, mas já não havia, naquela ocasião.
Sempre que eu falava com pessoas conhecidas sobre o assunto, todos me diziam que esta seria somente mais uma gripe, mas algo me dizia que não era bem assim. Eles acreditaram nisso porque aqui a gripe é muito comum, principalmente durante a mudança das estações do ano. 
Eu estive estudando artesanato por um tempo porque gosto de atividades manuais e tenho muito tecido em casa. Comecei então a costurar nossas próprias máscaras e quando o governo, em seu primeiro decreto, determinou o fechamento de escolas e universidades, eu distribuí 30 máscaras entre conhecidas.
Algumas Ações do Governo Espanhol
Ao atingirmos 4.200 casos de contágio e 120 mortes, o governo, na figura do primeiro ministro Pedro Sanchez, decretou por 15 dias o “estado de alarma”, um estado de alerta imponto uma série de restrições, dentre as quais:
- Redução em 50% do sistema de transportes (trem, metrô, ônibus), e sua limpeza diária;
- Cancelamento de qualquer atividade social, cultural, esportiva e similares;
- Limitação da circulação das pessoas. Somente está autorizado: a) ir ao supermercado comprar produtos de primeira necessidade; b) ir a consultas médicas (a maioria dos agendamentos foi cancelada); c) ir e voltar ao trabalho (com uma autorização), e somente para trabalhos que não poderiam ser feitos em casa.
O governo anunciou a criação dos ERTE (Expediente Temporal de Regulação do Emprego), uma das ferramentas para minimizar os efeitos econômicos nas empresas aliviando seus custos. Pelo que entendi (confesso que não me aprofundei), poderá haver uma suspensão temporária do contrato de trabalho, mas a pessoa tem direito a usar o seguro desemprego, independentemente do tempo de contribuição. Assim, mesmo que a pessoa tenha sido contratada há pouco menos de um mês, será beneficiada. Também poderá haver redução de jornada, de 10 a 70 por cento, com redução do salário e aí o complemento seria o seguro desemprego.
Minha filha já trabalha em casa desde o dia 11 de março e logo na semana seguinte, a empresa comunicou a  cada um dos que estaria em ERTE. Hoje, de um total de quase 200 funcionários, cerca de 10% trabalha fisicamente na empresa, a maioria foi afastada pela ERTE. 
Há também medidas que amparam os autônomos, e está prestes a sair outro decreto para a redução dos aluguéis. Está suspenso o pagamento de financiamento de imóveis e está proibido cortar água, energia e gás, por falta de pagamento.
O Confinamento
Desde o dia 11 de março estamos as três confinadas em casa. Já são quase 20 dias e como havíamos nos preparado em termos de mantimentos, não estamos tendo dificuldades. Os espanhóis e todos os residentes estrangeiros estão obedecendo às normas do governo. Uma ou outra exceção ocorre, que geralmente resulta em multa e/ou prisão. De vez em quando ampliam-se as restrições e não duvido que parem tudo a qualquer hora.
Nestes 19 dias fui ao supermercado duas vezes comprar frutas e verduras. A cada dois ou três dias, desço para por o lixo nos contêineres de fora (só permitido à noite entre as 20:00 e 22:00).
Aqui no prédio, há poucos ruídos. Do lado esquerdo ouvimos uns gritos outro dia, mas não conseguimos identificar de que se tratava. Poucos minutos depois, o barulho do carro da polícia chegando e falando algo por megafone. Do lado direito faz uns quatro dias ouvi uma mulher chorando por umas duas horas. Provavelmente nunca saberemos o que houve.
Os casos
A uns 600m daqui, mora uma amiga brasileira, a Jussara. Eu a conheci em uma manifestação “Fora Temer” que fizemos em frente à Embaixada Brasileira. Ela me contou que faleceu um vizinho e depois vieram desinfetar todo o prédio. Lá todos estão assustados.
Semana passada fiquei sabendo, através do Google Classroom, que Marta, minha professora de espanhol, nos comunicou que não teríamos aula, pois seu pai faleceu de coronavírus pela manhã.
E seguimos assim, aos poucos vão surgindo casos com pessoas conhecidas. Há um grupo de cientistas espanhóis que pedem ao governo restringir mais ainda a mobilidade.
Nossa rotina
Na semana, Carol trabalha das 8:30 às 18:00 trancada no quarto para que possa se concentrar e Sofia. sua filha, a deixe trabalhar. Ali mesmo almoça.
Sofia tem 2,8 anos e parece não perceber que deixou de ir à creche e de passear no parquinho aqui perto. Segue brincando, dançando, cantando, fazendo seus desenhos, vendo seus cuentos e, infelizmente, vendo muita TV (é o jeito). Hoje ela me viu saindo para por o lixo fora e falou que queria passear. A mãe inventou qualquer coisa.
Minha filha às vezes tem dor de cabeça e um dia teve fortes dores na coluna. Eu tive uma  dorzinha ou outra de cabeça, mas acabo com ela com uma “lapada de cana” da reserva que ainda tenho em casa. Choramos algumas vezes, mas seguimos bem.
Como me sinto
Maria Ferreira, autora do post
Muito preocupada com o povo brasileiro. Às vezes me pergunto o que vai ser do tapioqueiro que vende tapioca com café bem cedo nas paradas de ônibus de Fortaleza se tiver de parar de trabalhar. De onde vai retirar seu sustento? E aquela empregada doméstica cuja patroa burra ainda não a liberou para que ela fique em casa? E caso libere, será que vai adiantar o salário? E os velhinhos aposentados do INSS, ficarão amontoados na fila do banco no próximo pagamento? São apenas alguns casos pontuais, dentre milhares que temos em nosso país. Isso sem contar as outras situações que imagino que ocorrerão pela falta de atendimento nos hospitais, cuja saúde está no chão.
Fora isso, meu tempo para sofrer é pouco. Além de estar sempre ocupada com a casa e com Sofia, todo dia falo com a família, amigos, vejo e leio as notícias diárias e, nos intervalos, sigo costurando. Não sou costureira, só sei o básico, mas tenho máquina e tecido suficiente para fazer umas 300 máscaras. Enviei e-mail para a prefeitura, oferecendo minha doação, liguei para dois hospitais, mas não obtive resposta. 
Finalmente liguei para a polícia e eles me transferiram para a Guardia Civil e a pessoa que me atendeu falou que eu podia seguir costurando que ela mandaria um policial pegar. Que alegria! Entretanto, calculei que exagerei na empolgação, pois eu tinha muito tecido, mas pouca linha. 
As máscaras de pano que Maria faz
não são para hospitais, mas são úteis
para quem já está com o vírus. Maria
usa no dia a dia, para ir ao super-
mercado e retirar o lixo
Coloquei um anúncio no grupo do Facebook (Eres de San Sebastián de Los Reyes) aqui da cidade e imediatamente tanto apareceu gente querendo me dar mais linha, como gente se oferecendo para me ajudar a costurar. Como pegar essa linha se não posso sair? Liguei para o moço da Guardia Civil e ele já perguntou se eu tinha algumas para lhe dar. Então, combinamos a entrega e o mesmo policial foi antes pegar a linha na casa de uma das pessoas. Na terça só consegui entregar 36, mas até quinta tinha outras 50. Termino o dia cansada mas já planejando como vai ser o dia seguinte. Sei que é pouco, mas isso me motiva e me faz um bem enorme.
Às vezes, se consigo dormir bem à noite, dou graças ao universo por tanto privilégio, mas lembro daqueles que sequer dormiram. Peço por eles.
Penso que isso vai durar ainda um bom tempo e creio que depois que tudo acabe, o mundo não será mais o mesmo e nós também não. Ojalá que nos tornemos um pouco melhores e que possamos ver as coisas sob um novo olhar!

8 comentários:

Superedson disse...

Que Deus abençoe vocês três. Gracias.

Anônimo disse...

Lola, tinha uma época que postava todo dia. Agora com essa quarentena devia voltar a ser assim.

Guidi disse...

Maravilhoso post. É impressionante como colaborar com a sociedade, os vizinhos, os desconhecidos, nos traz tanta alegria, satisfação e motivação.

Anônimo disse...

Maria Ferreira, força pra vocês aí na Espanha, que você está nos dando uma grande força aqui no Brasil! Gratidão!

Denise disse...

Que post lindo! Muita forca pra todos os espanhóis e italianos já há tantas semanas na quarentena total.

Aqui na Australia as medidas de quarentena estão sendo lancadas de forma gradativa. Domingo passado baixaram as medidas mais duras, impedindo as pessoas de sair nas ruas se não for para um dos 8 motivos que eles elencam. Ir no supermercado só 1 pessoa por família, escolas e creches seguem abertas mas só para os profissionais de saúde e de serviços essenciais. Eu e meu marido já estamos trabalhando de casa há 1 semana e agora estamos com as 2 crianças integralmente aqui conosco (5 e 2 anos). Como temos trabalhos demandantes (ele arquiteto coordenador numa empresa de engenharia) e eu assistente jurídica num escritório de mercado de capitais, temos tido muito trabalho. Estamos fazendo turnos de 1 hora e meia cada um para cuidar das crianças e trabalhar. As crianças levantam as 5:30-6am e ficam a toda até dormirem as 7:30pm. Qd dormem, vamos trabalhar mais até tarde da noite. Antes tínhamos uma faxineira e comprávamos comida pronta porque já tínhamos uma rotina corrida e não sobrava tempo de fazer essas coisas. Agora fazemos também esse serviço em casa (mas seguimos pagando não só as pessoas que faziam isso pra gente, como seguimos pagando a escola/creche das crianças, mesmo sem eles irem, porque não queremos “quebrar” essas pessoas/instituições). Com isso nossa jornada tem sido tripla, muitos dias não temos tempo nem para ler as notícias e nem sei mais o que é ver tv, ler um livro, ou dormir direito. As criancas, que tinham uma vida super ao ar livre e rodeados de amigos (sem família, os amigos se tornaram nosso porto seguro aqui), tem sentido demais ficar presas em casa sem ver os amigos, e o sofrimento emocional deles traz mais um peso para nós adultos, que temos que, além da nossa ansiedade, lidar com esses serzinhos tao novos e tao impactados que descontam se descontrolando por qualquer coisa.

Mesmo assim me sinto privilegiada porque tenho um emprego, moro num país estável que está dando inúmeros subsídios financeiros para estimular a economia, e temos muita área verde deserta, então no fim de semana conseguimos levar as crianças para trilhas na mata sem contato com outras pessoas. E isso porque na Australia os casos de coronavírus crescem de forma controlada, em mais de 1 mês “só” temos menos de 5000 casos no país todo e 19 mortes. Não consigo nem imaginar a calamidade publica que será no Brasil… Muita tristeza…

Lola Aronovich disse...

Denise querida, adorei seu relato. Escreve um pouco mais, fale mais sobre a situação na Austrália, que eu gostaria de publicar um texto sobre o corona aí no "down under". Imagino como deve ser difícil cuidar das crianças no mínimo 12 horas por dia em casa!

Denise disse...

Oi Lola. Vou tentar escrever nos proximos dias. Beijo

Anônimo disse...

Uma pesquisa em Belo Horizonte/MG revelou que 60% (SESSENTA POR CENTO!!!) dæs trabalhadoræs continuam na mesma rotina normal de antes da pandemia. [Fonte: Jornal O Tempo]

Patronato criminoso. Estado omisso.