Recentemente um vídeo que chamou muita atenção foi divulgado. Era de uma mulher reaça que pregava que se deve bater nas crianças. Ela ainda dizia que bater com vara era um mandamento bíblico e ensinava como não deixar marcas.
Muita gente ficou indignada e relatou como apanhou na infância e como isso não ajudou em nada, muito pelo contrário. Pedi para uma moça, que quer ser identificada como Dona Dirce, contar o seu caso. Vale lembrar que usar violência física e/ou psicológica para "educar" crianças não é questão de gosto ou opinião. É crime desde 2014, além de praticamente qualquer estudo sério condená-la.
Existem certos traumas que com o passar do tempo se tornam fantasmas. Se a pessoa tiver sorte, ele aparece volta e meia, te atormenta e vai embora.
Caso contrário, ele habita por definitivo a sua alma e aí a vida só tem um rumo a tomar: ladeira abaixo.
Um dos meus fantasmas está ligado à agressão física na infância. Não estou falando de uns tapas na bunda, estou falando de surras fortes, longas, acompanhadas de xingamentos, numa total humilhação.
Eu tenho uma teoria pessoal: o agressor de crianças é, necessariamente, sádico, dominador e covarde. Sádico, porque está escrito em sua testa o olhar de triunfo e superioridade no antes, durante e depois da surra (sem falar do tom da voz, de quando contam detalhadamente para alguém a surra dada); dominador, porque encara o corpo e a vida da criança como sendo de sua propriedade e, sendo sua, não admite qualquer sinal de insubordinação; e covarde, porque a agressividade aumenta nos dias de frustração e estresse na vida fora de casa e, na incapacidade de resolver os próprios problemas, extravasa a raiva reprimida ao longo do dia no corpo da criança.
É certo que existem exceções e eu já as vi: me lembro de uma mãe pobre e solteira, que quando voltou do trabalho e viu que seu filho de 11 anos estava matando aula, foi lá buscá-lo de cinta na mão. Aquilo visivelmente não era sadismo, era desespero mesmo. E essa situação é uma exceção quando o assunto é agressão física em crianças e adolescentes, porque a rotina de agressões às crianças acontece em segredo, dentro de casa, numa idade em que elas são frágeis demais pra fugir ou resistir.
Há alguns dias esse meu fantasma de que falo veio me visitar quando li sobre uma “educadora” ensinando e motivando os pais a baterem em seus filhos desde bebês. E claro: a prática está sob o pretexto de seguir o “ensinamento bíblico”.
Depois de passar alguns dias remoendo o fato de viver em um país em que se pode defender a tortura em crianças livremente, decidi contar um pouco da minha história -– e vou contar bem pouco mesmo e bem rapidamente. Não farei para dialogar com essa gente sádica e má, mas para falar com as pessoas que estão no campo da defesa dos direitos humanos. Acho que vale a pena.
Eu tinha mais ou menos oito anos e meu irmão mais velho, dez, e a mais nova, cinco. Minha mãe estava em seu segundo casamento e estava bastante apaixonada. Seu marido era uma pessoa que acreditava que nós éramos crianças “muito frescas” quando o assunto era alimentação e decidiu nos passar o corretivo, fazendo, para o jantar, apenas alimentos de que não gostávamos. Para nos forçar a comê-los, ia nos batendo muito. Num determinado momento, eu me engasguei enquanto chorava e vomitei. Ele, então, jogou arroz em cima do meu vômito, misturou e continuou me batendo até que eu comesse tudo. Sim, aos oito anos eu comi arroz com vômito debaixo de surra. Se isso não for tortura, então foi algo pior.
Algumas coisas desse momento eu não consegui, infelizmente, esquecer: o semblante de prazer do meu padrasto toda vez que me via, chorando, colocar um garfo de comida na boca; ele transpirava bastante, de tanto que nos batia; e minha mãe, que assistiu tudo de forma indiferente e passiva.
Essa foi a fase da minha infância em que o mandamento “honrar pai e mãe” foi usado para a prática da tortura. No caso do episódio que acabo de contar, ao rejeitar um alimento, eu os estava desprezando e desonrando, pois tudo havia sido comprado com trabalho e sacrifício.
Os resultados práticos dessas surras para a minha vida foram: eu continuo odiando os alimentos que fui obrigada a comer naquele dia, e desenvolvi depressão e transtorno de ansiedade (doenças que trato até hoje e, depois de vários anos de tratamento encontro-me em ótima fase, pois estão muito bem controladas). Meus irmãos também sofrem de depressão e ansiedade. No frigir dos ovos, é como se fôssemos vasos remontados depois de quebrados, pois a paz de que precisamos –- coisa elementar para se viver, nos foi roubada da alma.
A sensação de quando se está apanhando também é muito viva: medo, solidão, tristeza e raiva. O meu agressor sempre me mandava pensar sobre o motivo de eu ter recebido uma surra e eu nunca consegui associar, porque o meu possível erro e a surra não eram coisas simétricas. Então, acabava por entender que ali não existia amor por mim e que eu não era bem vinda naquele lugar em que morava.
Por vezes, leio algumas postagens de companheiras da luta feminista colocando a mãe como alguém inquestionavelmente responsável com seus filhos, e isso nem de longe é real. Somente a criança pode falar o que se passa com ela. E enquanto não tivermos instrumentos sociais para alcançar as crianças deste país e dar a elas voz e vez, elas serão as pessoas mais expostas a todo o tipo de violência.
Aliás, me ocorreu algo óbvio agora: a maioria das pessoas que vivem num ambiente violento naturalizam a violência, chegando muitas vezes a associá-la ao amor -– é o caso de muitas mulheres que se envolvem com homens agressivos e ciumentos. E uma vez naturalizada a violência como forma de corrigir e educar uma pessoa, ela tem enormes chances de virar sabe o quê quando adulta? Isso mesmo: bolsominion, fascista, filhote da ditadura e afins, tanto quanto aquelas pessoas da classe média tradicional, que foram criadas na bolha dos privilégios.
Nós, militantes dos direitos humanos, precisamos urgentemente colocar o direito da criança no centro do debate. Tantas vezes nos questionamos sobre como foi que chegamos ao senso comum do ódio, inclusive entre as classes menos favorecidas, enquanto, debaixo do nosso nariz, crianças e adolescentes são barbarizados até que também se tornem adultos bárbaros.