A antropóloga Isabela Kalil, que tive o prazer de conhecer pessoalmente em SP no final de 2019, publicou um artigo importante analisando a mudança de narrativa das (sempre absurdas) teorias conspiratórias de Bolso e sua trupe. O artigo está aqui (em inglês), mas reproduzo aqui o fio que ela deixou em seu Twitter:
Analisamos as narrativas mobilizadas por Bolsonaro e seus apoiadores, entre março e dezembro de 2020. Entre essas narrativas, se sobressai a mobilização do medo de uma "conspiração comunista". Ao longo do tempo isso foi se alterando.
Mapeamos dois momentos no compartilhamento de teorias conspiratórias, rumores e fake news. De março a junho, o foco foi a origem do vírus culpando a China pela pandemia. O conjunto de narrativas mobilizam a categoria de "vírus chinês".
De julho a dezembro, passaram a circular narrativas sobre o processo de desenvolvimento das vacinas, aí a China aparece novamente especialmente em ataques contra o imunizante da Sinovac. Aí o foco das teorias conspiratórias passou a ser a “vacina chinesa” ou a “vachina”.
Epidemias e momentos críticos são favoráveis ao surgimento de teorias conspiratórias, vide o caso das teorias sobre o surgimento do HIV/AIDS. No caso de “ficções políticas”, a literatura sobre o tema aponta os casos emblemáticos do assassinato de JFK e o 11 de setembro.
Mas vivemos um fenômeno novo. Além da dimensão da pandemia, vivemos o que Gabriele Cosentino e outros autores chamam de “globalização das teorias conspiratórias”. Quer um exemplo?
Trump, Bolsonaro e seus apoiadores compartilharam as mesmas conspirações sobre pandemia, comunismo e posições anti-China. No artigo discutimos as diferenças entre os dois países e as consequências disso, que incluem a criação de inimigos internos: a mídia, os governadores.
Voltando à mobilização do medo: utilizamos Becker e Cohen com a “sociologia do desvio" pra compreender como essas narrativas exploram “pânico moral” na formulação de posições anti-vacina. Lembra do pênis da Fiocruz? Atriz pornô citada na CPI? Maconha? Isso é pânico moral.
Ruth Wodack trata da mobilização do medo e pânico nos pós 11/09. Ela descreve 4 formas de legitimação disso: 1) o uso da autoridade, 2) o valor moral, 3) o uso de “evidências” e 4) a "mythopoesis" -- que é quando pequenos fragmentos de discursos se juntam em estruturas narrativas.
A partir de Wodack, classificamos as estruturas narrativas anti-vacinas em circulação no Brasil em quatro tipos. Assim, os “riscos” da “vacina chinesa" estariam relacionados a:
1. Autoritarismo, vigilância e comunismo
2. Sexualização, mutação genética e experimentos científicos
3. Risco de outras doenças (autismo, demência, câncer, e aqui homossexualidade é, por vezes, tida como doença. Alguém lembra da fala do presidente sobre “virar” gay depois de tomar a vacina?)
4. Aborto, controle populacional e genocídio.
O artigo traz ainda uma discussão sobre neoliberalismo e negacionismo a partir da dicotomia saúde x economia. Como já escrevi em outro artigo, negacionismo não é apenas usar chapéu de papel alumínio. Quando o “mercado” toma o lugar da "ciência", isso é uma forma de negacionismo.
Ficou longo o fio, mas como o artigo está em inglês, achei que valeria a pena resumir. Foi mais de um ano de pesquisa em equipe. Pra quem quiser ler o artigo é Politics of fear: Far-right conspiracy theories on COVID-19, vou deixar o link. Por favor, ajudem a compartilhar.
O artigo foi publicado pela revista Global Discourse, da Universidade de Bristol. Ficamos honrad@s de estar no mesmo volume que uma das nossas principais referências pra esse estudo que é a Ruth Wodak, que assina um artigo sobre a pandemia.
13 comentários:
Muito bom, Lola. Interessante que este "medo do comunismo" já foi utilizado outras vezes ao longo da história do Brasil no século passado para golpes de estado, como uma das maiores fake news já forjadas, o Plano Cohen que justificou a ditadura do Estado Novo em 1937 e, claro, o golpe militar em 1964 sob a suposta "ameaça comunista" que pairava no ar. Essa turma sabe manipular bem os medos no imaginário da população para interesses próprios.
Pelo menos em 1937 a Revolução Russa era uma jovem de apenas 20 anos de idade e a União Soviética era uma debutante de apenas 15 anos. E em 1964 a Revolução Cubana era uma coisa recente. Já hoje em dia esse medo é o verdadeiro delírio comunista. Coisa de gente doida mesmo. Agora dia 09 um conhecido compartilhou pelo WhatsApp:
Rapaz a situação e muito mais complicada do que imaginamos. Estou em Aracati resolvendo umas pendências pessoais e fui a Secretaria de finanças. Lá presenciei a seguinte cena: Dois garis conversando com um auditor da sefin. Eles estavam revoltados com uma coisa que um deles tinha acabado de receber no zap: o Zé Dirceu estava dizendo que com a volta da esquerda enfim o comunismo iria dominar o Brasil. Todos eles estavam muito preocupados e diziam que iriam lutar com todas as forças pra nunca mais haver comunismo no Brasil.
Gente burra, esse pessoal da extrema direita
Bolsonarismo = burrice + mau caratismo + distúrbio mental.
Mas o virus veio mesmo da China, certo?
Não se sabe ainda a origem do vírus.
o biden pedindo para investigarem como realmete surgiu é o que ?
Acho que essa investigação do Biden não vai dar em nada
Avasconcil, informações recebidas pela whatsapp não tem validade hoje em dia, mesmo que você conheça quem mandou. O Bolsonarismo acabou até com isso.
A burrice desses aí já é terminal, não há escola que salve. Talvez uns espancamentos encefálicos e testiculares com uma encilopédia Barsa resolva, mas é melhor não ter esperanças.
Falando sério, o gado não tem jeito. Eu mesma perdi a conta de quantas vezes eu desmenti as fake news do nazipalhaço e da corja dele, com notícias, boletins de agências investigavas e até os sites oficiais dos órgãos envolvidos nas fake news esfregando a verdade na cara dos minions, mas o gado só faz mugir e mandar pra Cuba/Venezuela, acusar de ser comunista, ptralha, mortadela, enfim, só fazem esbravejar feito os macróbios irracionais e desprovidos de inteligência que são. O que eles querem é liberdade pra odiar e manter quem consideram inferior no seu "devido lugar". Bando de peso morto na sociedade.
O da gripe espanhola veio dos Estados Unidos e não da Espanha, nem por isso se chama "virus estadunidense". O Ebola tem esse nome por conta de um rio que nada tem a ver com o lugar onde apareceram os primeiros casos da doença - foi nomeado assim justamente para não estigmatizar o local onde a doença surgiu. A peste bubônica dizimou a Europa na Idade Média (não se sabe exatamente onde a epidemia começou, com hipóteses variando da Ásia Central até a Ucrânia), nem por isso a doença se chama "peste europeia".
Essa pirraça da extrema-direita de chamar de "vírus chinês" é por pura gadice e delírio sobre a guerra contra os "perigosíssimos" comunistas imaginarios, que eles veem encarnados pela China.
Amnéris Maroni:
“A destruição da linguagem
A principal arma do fascismo, neo-fascismo, da quadrilha que tomou o poder no BRasil é a destruição da linguagem. Márcia Tíburi e Laymert Garcia dos Santos tem insistido nessa questão e penso que eles tem toda razão. São vários os operadores dessa destruição, destaco alguns:
- De nada adianta contrapor a verdade contra a mentira na era neo-fascista; com a destruição da linguagem esta encruzilhada já não existe; destruir a linguagem significa nulifica-la; é preciso transformar a linguagem em um nada, em algo nulo; é preciso assassinar o verbo, como foco de ação, de atividade, de emoção. É preciso que a realidade enunciada pela mentira torne-se mais real que a realidade compartilhada: fome, miséria, etc. . Na enunciação da mentira é muito importante pensar quem a emite e quem a escuta. Quem emite, o foco de enunciação, precisa ter muito mais poder do que quem escuta e é exatamente aí que reside o enlouquecimento. Acrescente-se a isso o poder das redes sociais e a capacidade da ultra-direita usar as redes, instrumentalizar as redes.
-nas manifestações de 2013, no Brasil, já se podia perceber o esgotamento da linguagem e com esse esgotamento uma espécie de curto-circuito do significado e a proliferação de sentidos contraditórios.
- a inexistência do diálogo, desde as eleições presidenciais, reforça esse ponto. Como não há diálogos, os discursos aparecem prontos. A ¨forma/representação¨ pronta é confortável, permite abrir mão do pensar ; pensar que, não raro nos inquieta e, como dizia H. Arendt pode ser muito perigoso!
-duplo vínculo/dupla mensagem caminha abraçado com o colapso da linguagem; presente fortemente em relação aos pobres e às minorias: convidam os donos do poder integrem-se à doçura do neo liberalismo e também: ah vocês se integraram e então não podem mais exigir direitos! Povos originários, quilombolas, etc estão sob a ameaça da dupla mensagem e do duplo vínculo. Base do enlouquecimento atual;
- a palavra fere/ palavra é ação... Não sabíamos disso com a precisão e a dor que hoje sabemos. Estamos tendo essa experiência todos os dias: a palavra é ação!
- a esquerda tem muito trabalho, trabalho de restauração do significado, da verdade, do diálogo, do debate político, da ciência. Torcendo para dar tempo!”
Amnéris Ângela Maroni é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas, representante docente do departamento de Antropologia na Comissão de Graduação e terapêuta. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1977), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1982) e doutorado em Ciências Sociais pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994). Antropóloga e estudiosa de Psicanálise, sua produção intelectual tem como eixo o fecundo diálogo entre essas duas disciplinas. (Fonte: Currículo Lattes)
Avasconsil
Tem um artigo com certa ligação a temática importante postada por você, está em espanhol, mas vale a leitura, reflexão e principalmente ação quanto a esta avalanche. https://www.alainet.org/es/articulo/212503
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