Hoje é Dia da Consciência Negra, uma data fundamental para ser lembrada neste país racista. Infelizmente, para os racistas este é o dia de espalhar memes do Morgan Freeman dizendo que não se deve comemorar um dia específico para a história negra.
Vermes racistas concorrendo pelo troféu de maior racista |
Mas vamos falar de coisas boas, dar atenção a quem merece.
Publico aqui um lindo texto de Henrique Marques Samyn, professor da UERJ, coordenador do projeto de extensão LetrasPretas, voltado ao estudo e divulgação da produção literária, cultural e intelectual de autoria negra e feminina, desenvolvido com estudantes negras da UERJ. Ano passado este conceituado professor negro (é bom frisar, porque quantos professores negros você já teve?) publicou uma antologia de textos dos Panteras Negras, e tem dado palestras sobre o assunto por todo o Brasil.
“Achei que não fosse dar conta”, ela me disse, a fim de justificar sua desistência. Ela não foi a primeira a me dizer isso. No ano passado, diante do mesmo desafio -– o concurso para a pós-graduação -–, uma outra aluna me disse a mesma coisa; e eu já ouvira isso de uma terceira aluna, no ano anterior, que também me comunicava a descrença em sua capacidade de enfrentar o processo seletivo e, posteriormente, o curso de pós-graduação.
Ouvi variações dessa fala em inúmeras outras circunstâncias. “Eu não vou conseguir”; “Eu não sei fazer isso bem”; “É difícil demais para mim”. Todas as pessoas que me diziam essas palavras compartilhavam algumas coisas. Primeiro: todas eram mulheres negras. Segundo: todas eram alunas da Uerj, universidade na qual leciono, que eu conhecia razoavelmente bem -– ao menos, o suficiente para saber o quanto eram inteligentes e competentes.
A Síndrome do Impostor atinge mais as mulheres, e as negras mais que as brancas |
Assim como essas alunas tinham a certeza de que não seriam bem-sucedidas diante dos diversos obstáculos com os quais se deparavam -– concursos, processos seletivos, falas em público, participações em eventos -–, eu estava certo de que elas tinham a capacidade necessária para dar conta do que lhes fosse exigido. Isso, evidentemente, não era uma garantia de sucesso: sabemos que, quando a raça entra em questão, adversidades surgem de todos os lugares possíveis. É um fato que, na sociedade racista brasileira, pessoas negras nunca são avaliadas pelos mesmos critérios que as pessoas não-negras; e é um fato que essas mulheres sabiam o quanto isso pesaria na análise de seu desempenho. Contudo, neste texto, quero me concentrar em algo anterior a isso: na antecipação do fracasso, naquilo que fez com que essas mulheres desistissem antes mesmo de tentar.
O que impedia essas mulheres negras de avaliar objetivamente seus talentos e suas competências? O que fazia com que subestimassem a si mesmas, considerando-se inferiores e despreparadas? Não é difícil encontrar a raiz desse problema na intersecção entre racismo e sexismo: no fato de que mulheres negras são sistematicamente invisibilizadas, menosprezadas e inferiorizadas nos meios acadêmicos.
Obviamente, tudo isso é o resultado de um longo processo, que começa muito antes da academia -– quando meninas e adolescentes negras têm sua autoestima prejudicada de inúmeras formas, tanto no que tange à aparência quanto no que diz respeito à inteligência. Por força do machismo, quando nossa sociedade elogia qualquer menina ou adolescente, apela recorrentemente a adjetivos associados à beleza; por força do racismo, meninas e adolescentes negras não são “elogiadas” dessa forma -– ou aprendem a reagir com desconfiança a esses adjetivos.
E o que acontece quando essa adolescente se torna uma mulher -– mais especificamente, uma estudante universitária? Ainda que ela disponha de modelos de intelectuais negras, que hoje em dia têm alcançado algum reconhecimento (embora ainda estejamos muito longe do ideal), quão próximos esses modelos estão de suas experiências concretas? Em que medida Angela Davis, Sueli Carneiro e Chimamanda Ngozi Adichie, para citar intelectuais negras vivas e conhecidas, não são vistas pelas próprias estudantes negras como figuras distantes e inacessíveis?
Tudo isso piora quando consideramos que, nas universidades, pouco (se algum) espaço é conferido ao estudo acerca dessas intelectuais negras. Eu, professor de Literatura em uma universidade pública, sei de vários casos em que uma autora como Conceição Evaristo foi menosprezada por professoras (brancas) em plena sala de aula. Se mesmo uma escritora internacionalmente renomada e premiada tem questionado o valor de sua produção literária, como uma “mera” estudante negra pode esperar algum reconhecimento?
Felizmente, aquelas estudantes negras que me disseram as frases com as quais iniciei este texto não desistiram de seus projetos acadêmicos; elas os postergaram, mas encontraram o apoio necessário para persistir na construção de suas carreiras -– mesmo que não tenham deixado de se sentirem “impostoras”, numa sociedade que ainda encara como demasiadamente afrontosa a ideia de que mulheres negras possam ser intelectuais.
É preciso, no entanto, pensar em quantas outras não ficaram pelo caminho; e reconhecer que, no ambiente universitário, o racismo e o sexismo permanecem fortes o suficiente para destruir talentos e arruinar carreiras promissoras.
3 comentários:
Texto muito bom, eu como universitária, negra e moradora de Comunidade Pobre (ou favela se preferir) me vejo bem nessa questão de achar que não consegue por causa da invisibilidade e falata de referências de negras no discurso/textos acadêmicos.
E falando em dia da Consciência Negra, vocês viram que o número de negros e pardos pela primeira vez na História são a maioria no Ensino Superior? Num país de maioria negra isso deveria acontcer naturalmente desde sempre.
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-11/pela-primeira-vez-negros-sao-maioria-no-ensino-superior-publico
Sou pardo e odeio o movimento negro. Antes eu não tinha consciência racial, me achava brasileiro e me via como igual a todos. Hoje eu vejo que sou sem raça, não sou branco nem negro, não sou privilegiado nem quotista, uma merda ser pardo e ficar pensando em termos de raça.
Somos todos filhos do novo mundo, e isso vale também para os brancos e orientais lá do Canadá até a Patagonia.
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