domingo, 16 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: CAPITÃO PHILIPS, SEQUESTRO, ATÉ O FIM / Mar doce mar

Assisti recentemente a três filmes que se passam sobre as águas. O primeiro foi Capitão Philips (veja trailer), que concorre ao Oscar, e não vai ganhar nem que a vaca tussa e afunde. 
Até gostei de Capitão, que tem um bom ritmo. Tom Hanks está ótimo, pra variar, e as cenas finais, com ele vulnerável, em choque, são memoráveis, muito realistas mesmo. Só que é um filme em que os negros são vilões, e as pobres vítimas, brancas. Sim, sim, eu sei, alguém vai dizer “Mas é baseado em fatos reais! Piratas somalis realmente sequestraram um cargueiro americano em 2009!” 
É verdade, mas fatos verídicos, numas. O capitão Philips da vida real era (é ainda) autoritário e mais preocupado em economizar que na segurança de sua tripulação, que lhe pediu para não navegar tão próximo à costa somali, onde poderiam ser alvos de piratas. 
Além do mais, o verdadeiro capitão exigiu que seus comandados se engajassem num treinamento padrão contra fogo enquanto o navio estava sendo perseguido pelos piratas. E ele nunca disse “Se você vai atirar em alguém, atire em mim!” Em suma, ele foi muito menos heroico que Tom Hanks. Tanto que onze membros da tripulação estão processando o navio -- pedem 50 milhões de dólares pelo desprezo a sua segurança. 
Outra coisa é que o filme passa muito por cima da tragédia somali que faz com que jovens desesperados (os piratas reais eram menores de idade) se tornem piratas. O filme mostra que chefões da guerra forçam esses jovens à criminalidade. Mas há outros fatores, como a pesca ilegal e predatória e o lixo tóxico e nuclear jogado nos mares somalis (as duas atividades realizadas por países ricos), que destruíram o meio de vida daqueles pescadores. Quem são, afinal, os ladrões da propriedade alheia?
Mesmo que os fatos correspondessem 100% à realidade, o que está longe de ser o caso, há que se pensar na escolha de fazer um filme em que negros são vilões. Não é como se a gente tivesse milhares de produções em que negros são heróis. 
É preciso ver o contexto histórico pra entender como negros (e índios, e homossexuais, e mulheres) têm sido tratados por Hollywood. Qual a responsabilidade em se filmar uma história que, no fundo, é sobre um episódio de falta de sorte, já que fazia duzentos anos que um navio americano não era tomado por piratas?
Vale lembrar que esta deve ser a segunda vez que o cinema americano fala da Somália numa superprodução. A primeira vez foi em 2001. O filme era Falcão Negro em Perigo, que também retratava uma situação “real”: uma missão militar americana em que um helicóptero é abatido, resultando na morte de 19 soldados americanos. 
Triste, certo? Sem dúvida. Porém, pra resgatar alguns soldados, o exército americano matou mil (1,000) civis somalis. Nenhum deles têm voz ou rosto no filme. Em compensação, os créditos finais trazem os nomes de cada um dos 19 soldados americanos, deixando bem claro quais vidas têm mais valor. 
Enfim, não é que eu não tenha gostado de Capitão Philips. É só que, ideologicamente falando, o filme é bem podre.
E a competência bélica americana não me convenceu. Sem querer spoilear nada pra vocês, vou apenas dizer que há uma cena em que temos apenas quatro piratas e um capitão Philips num bote, cápsula salva-vidas, sei lá como se chama o troço, e dois desses homens estão no mar. Aí os fuzileiros navais veem a ação de longe, e concluem: “Há pelo menos um pirata no mar”. Hã, dããã! Quem mais poderia estar na água? Gênios estrategistas, esses caras!

Dois dias depois eu vi Sequestro (Kapringen, ou A Hijacking, em inglês -- veja trailer), filme dinamarquês de 2012 também inspirado numa história real de piratas. 
Gostei mais de Sequestro que de Capitão. Ambos têm um ritmo excelente e seguram a tensão, mas Sequestro, como se poderia esperar, é bem menos heroico e mais humano. 
Ele se centra principalmente no cozinheiro do navio e, lá longe, no dono da empresa que tem o navio, que é quem vai negociar o resgate dos sete tripulantes com os piratas. 
No início, o pirata negociador (que nega ser pirata, e se diz apenas um tradutor) pede 15 milhões de dólares. Há um especialista em sequestro que diz que nunca, jamais, se pode pagar um resgate sem negociar, porque senão os caras simplesmente aumentarão o valor. 
Isso não me convenceu muito, porque sabe a primeira contraproposta que o dono do navio faz? 250 mil dólares! Quer dizer, olha a distância: de 15 milhões pra 250 mil! As negociações duram meses, e você fica pensando se eles não podem chegar num meio termo mais rápido. Como eles são dinamarqueses, não americanos, não há a menor chance de fuzileiros navais invadirem o navio e metralharem todos os vilões.
Em Sequestro, existe também o racismo de ser basicamente um filme de vilões negros contra mocinhos brancos. Só que alguns dos tripulantes dinamarqueses são negros. Além do mais, como marinheiros e piratas passam um tempão juntos, há muito mais contato entre os dois grupos. 
Numa sequência, alguns pescam, com varas de pescar, e todos beijam o peixão fisgado. É tudo muito realista, sem trilha sonora, bem ao estilo Dogma
O final, arrebatador (não se preocupe que vou me controlar pra não entregar nada), é uma série de erros que não podiam ter acontecido de jeito nenhum. 
Eu ainda vi um terceiro filme que se passa inteirinho no mar: Até o Fim (que, em inglês, chama-se All Is Lost, ou Tudo Está Perdido, o que é bem diferente do título em português -- veja trailer). 
Imaginava-se que, assim como Capitão renderia uma indicação ao Oscar de melhor ator pro Tom Hanks, Fim renderia uma pro Robert Redford. Mas não aconteceu. A competição foi árdua em 2013. Muitos bons papéis pra atores. 
Redford está com 77 anos. O mais divertido foi ler um crítico americano dizendo que o ator aparenta a idade que tem. Meu, não sei com que pessoas de 77 anos esse crítico anda, mas pelamor. Se me dissessem que Redford tem 60 anos, eu nem hesitaria em acreditar. 
Bom, o interessante de Até o Fim é que só tem ele de personagem, mais ninguém, e não sabemos praticamente nada sobre ele. Não sabemos seu nome, quanto tempo ele está lá, o que ele está fazendo navegando sozinho num iate (não é um iate luxuoso como o visto em Lobo de Wall Street; li que este tipo de iate de Até o Fim custa uns 20 mil dólares; vi também que o filme “sacrificou” três embarcações, se bem que a maior parte das cenas foi feita em tanques). 
Sabemos que “não deu”, porque o filme começa assim, com uma voz em off lendo uma breve carta pedindo desculpas e dizendo que lutou até o fim. O resto do filme é o que o leva até esta situação –- bater sem querer num contêiner, no meio do oceano, e algumas tempestades terríveis. 
Como o protagonista não fala sozinho e nem há uma bola do vôlei pra ele chamar de sua (alguns de vocês devem lembrar do Tom Hanks e seu Wilson em Náufrago), praticamente não há falas (acho que todas as linhas aparecem no trailer). Um filme sem diálogos, com um só ator, sem tigre pra dividir o bote (ao contrário de As Aventuras de Pi), e sem que a gente saiba nada sobre o personagem -– vamos admitir que nada disso é muito comum, o que já constitui um bom motivo pra ver Até o Fim
Eu fiquei totalmente engajada pelo filme, mas sabe quando eu velejaria sozinha? Nunca. Aliás, os planos de fazer um cruzeiro marítimo (quem nunca quis?) foram adiados por tempo indeterminado após esses três filmes. 

Duas coisinhas pra você fazer hoje: participar do meu tradicional bolão do Oscar (tem o grátis e o pago), e comprar meu livro de crônicas de cinema. Obrigada!

19 comentários:

Anônimo disse...

Lola cupabilizando a vitima e não o agressor.

Anônimo disse...

Lola o governo somalianos foi comunista ate 1990,e a guerra civil dos anos 90, assim como o usa da fome como arma de guerra, foi fruto de grupos de esquerda somalianos, isto e um fato histórico.

Patty Kirsche disse...

Parecem ser filmes bastante incômodos...

lola aronovich disse...

Caso o link pra este documentário de 23 minutos (falado em espanhol) tenha ficado escondido no texto, recomendo muito que todos o assistam. Ele levanta a questão sobre quem são os verdadeiros piratas dos mares: esses somalis pé-rapados (mostrados em Capitão Philips e Sequestro), ou corporações de países ricos que vão para a costa somali pescar ilegalmente e jogar lá lixo tóxico e nuclear? Sem que a ONU faça absolutamente nada.
O doc traz um dado assustador: até 2048 (durante a vida de vcs, e talvez a minha também) não haverá mais a atividade da pesca. A pesca predatória terá acabado com os lugares pra pescar em todo o mundo. E essa pesca predatória não é realizada pelos países pobres.
Será que algum dia os EUA farão um filme sobre os piratas brancos e bem alimentados que vão roubar recursos alheios de países miseráveis?

RAQUEL LINK - me falaram que ia ter bolo disse...

Novidade hollywood deturpando a história pra fazer filme. Ou glorificam alguém apenas pra justificar o fato de fazer um filme sobre a pessoa. Lembra do o aviador? entre tantos outros.

Porque é difícil fazer um biografia sem tentar endeusar o biografado?

Marcos disse...

Olá Lola.
Acompanho o seu blog a bastante tempo mas nuca comentei (é disparado o melhor blog sobre emancipação da mulher em Português). Só estou comentando porque o seu texto passou a impressão (que é tão comum em varios meios de esquerda, mas que eu não tinha percebido aqui) bastante "ruim".
Deixa eu explicar melhor. É bastante comum em determinadas correntes de esquerda transformar sexismo, racismo e crimes em discursos edificantes de esquerda.
Eu tive a sensação ao ler o seu texto que ele tem o mesmo problema de um certo video da "Sherazade" que meio que viralizou esses dias onde fizeram algumas montagens, ela é mostrada como homofobica, racista, etc.(o que é verdadeiro) mas o interessante é a solução do problema: é falta de pau na bunda, ela é assim porque é mal comida.Ou seja, transforma-se um conceito sexista em um discurso edificante de esquerda ou humanista.
Eu posso estar errado, mas fiquei com a impressão que você fez o mesmo com o filme, desqualificando o filme porque a vitima é branca e o vilão é negro.
Eu sei dos problemas daquele povo (que são muitos), o que a "mafia" fez com o seu litoral se enquadra facilmente como crime contra a humanidade. Mas eu não tenho certeza se por causa disso eles devem ganhar carta branca para cometer sequestros, assassinatos, etc.Pode ser falta de sorte o que aconteceu com o cara, pode até servir para inviabilizar o debate dos verdadeiros problemas, mas aconteceu. Pode parecer exagero, mas eu pensei em alguns momentos que você iria invocar o conceito do revolucionario primitivo.

O mundo precisa de novos olhares e novas opiniões sobre este tema, desqualificar o relato do Sr. Phillips não é o caminho, o que se precisa é que novas vozes sejam acrescentadas e é aí que nós estamos falhando miseravelvente.

Eu já de cara peço desculpas, provavelmente eu estou reclamando da sua critica quando o que realmente me deixou mal foi o video da Sherazade e meu cerebro associou a sua critica ao video (é um fato conhecido que o nosso cerebro faz associações equivocadas).

Ana Carolina disse...

Capitão Phillips foi um desses filmes que já vi o trailer e pensei "xiiii". Tive uma reação parecida com Histórias Cruzadas, só do trailer já vi onde a coisa iria dar e perdi a vontade de ver.

Anônimo disse...

Lola, existe um diálogo dos somálios com o capitão, que faz referência às mazelas sociais na Somália. Muito raso, infelizmente! Concordo contigo, o Tom Hanks está perfeito na cena que ele interpreta um indivíduo com transtorno de estresse agudo. Acho que vale a pena o filme para quem deseja trabalhar com esse tipo de demanda ou até pela mera curiosidade.
bj grande

Sacerdotisa de JAH disse...

Cansei desses mascus que meu irmão tinha falado, eles são MUITO BURRO, Lola, sério, eles são muito burro, tenho pena dos filhos que eles terão, imagina uns pais desses. Se o Yakult aumentar, para eles a culpa é das feministas.
Mas também que se dane meu irmão, ele me traiu antes e agora vem chorar porque ficou corno e quer culpar as mulheres. ¬¬

Só fico triste que o pessoal que quer conseguir as coisa certinha, como meu primo que estudou a vida toda para dar aula pra criancinha e não consegue, fique na mão desses paspalhos.



Lola, você agora faz review de filmes? Me indica ai algum desenho ("animação") feminista para eu ver? *-*

Anônimo disse...

Ridículas suas reclamações sobre os antagonistas serem negros. Há MUITO mais vilões homens que mulheres, será que isso é sinal de misandria? É muita burrice, mesmo...

Anônimo disse...

"Lola, você agora faz review de filmes? Me indica ai algum desenho ("animação") feminista para eu ver? *-*"

O que você quer dizer com "agora"? Ela faz isso há séculos, quase literalmente.

Mirella disse...

a necessidade de fazer mais um filme "white guy saves the day" é, para mim, análoga à necessidade de fazer aquele filme "A Caça". resumindo: ambos desnecessários.

Guilherme disse...

"É verdade, mas fatos verídicos, numas. O capitão Philips da vida real era (é ainda) autoritário e mais preocupado em economizar que na segurança de sua tripulação, que lhe pediu para não navegar tão próximo à costa somali, onde poderiam ser alvos de piratas. "

Três palavras, apenas três palavras:
"Culpabilização da vítima."

Guilherme disse...

Ao anônimo de 13:10:

Se o agressor for "minoria", então pode.

"Minorias" can do no wrong.

Pikashu O honesto O temivel Dando o ar de sua graça disse...

Mesmo que os fatos correspondessem 100% à realidade, o que está longe de ser o caso, há que se pensar na escolha de fazer um filme em que negros são vilões. Não é como se a gente tivesse milhares de produções em que negros são heróis. É preciso ver o contexto histórico pra entender como negros (e índios, e homossexuais, e mulheres) têm sido tratados por Hollywood. Qual a responsabilidade em se filmar ...

Depois elogia o filme do lobo de wall e nao quer feminismo ser chamado de incoerente.

Por isso fico aqui sem policiar nada,direito de expressao e continuando,sem culpa alguma, a gostar de american pie e outros filmes que as feministas condenam

Unknown disse...

Oi Lolinha assisti Capitão Phillips e essas reflexões também me ocorreram. Gostei muito da cena onde o prsonagem Muse fala justamente sobre essa questão da pesca predatória e das condições em que eles vivem na Somália, sem recurso nenhum.

O ator somali Barkhad Abdi que fez o personagem Abduwali Muse está concorrendo ao Oscar como ator coadjuvante, você não está torcendo por ele? Eu achei a atuação dele incrível!

Anônimo disse...

Concordo com cada linha que o Marcos escreveu, e digo mais é mentira que os negros no cinema americano são sempre retratados como vilões, isso não corresponde à realidade, muito ao contrário, vire e mexe está o Morgan Freeman lá fazendo o Presidente Americano, fora outros atores em papeis de destaque, francamente, essa não é a realidade das produções estadunidenses, outra coisa, o FATO é que somalis em sua maioria são negros, e o FATO é que sequestraram um navio, com brancos,e pobres e negros TAMBÉM fazem escolhas morais.

Mila disse...

Eu gostei de Capitão, ritmo interessante, boas atuações. E também li que a irresponsabilidade foi do capitão, que queria entregar a mercadoria de maneira rápida.
Entendo que o roteiro foi construído mesmo para tornar o Philips um herói.
Pra mim, o filme ficou devendo em alguns aspectos. Num diálogo entre Philips e o líder somali, nota-se que os piratas são peões perto de uma coisa que é maior que eles.

Anônimo disse...

Alguém notou que um dos "chefes" da marinha americana tinha algo estranho? A câmera focava no seu olhar indiferente diversas vezes... Não sei se é "viagem" da minha cabeça mas talvez ele pudesse ser um dos "cabeças" da máfia da pirataria... Já que os piratas em si, no filme, não passam de vítimas de um sistema opressor.