terça-feira, 25 de janeiro de 2011

PADRONIZAR É IGUALAR AS PERDAS

Descobri um dado que é interessante pra quem acha que média é algo necessariamente positivo. A palavra average (média, em inglês) vem do árabe awar, que significa mácula ou defeito. Isso se tornou awariyah, que quer dizer mercadoria defeituosa. No português e no italiano isso virou avaria, mas foi para o francês como avarie, querendo dizer dano no envio. No contexto da época, era o dinheiro que se jogava fora quando um produto era danificado ou perdido durante uma viagem de barco. Essas perdas eram compartilhadas em partes iguais por todos que tinham dinheiro investido na viagem. É dessa ideia de igualar a perda que vem a média. Avarie, com essa mesma noção, tornou-se average em inglês.
Dois anos atrás escrevi um texto chamado “Quando a média se tornou o ideal”, em que eu falava da Patrulha da Normalidade, que a cada desvio do que é considerado padrão, vem com suas luzes e seu barulhão uó, uó, uó, pra nos trazer de volta à média, de onde não deveríamos nunca ter saído. Alguns exemplos: você não tem carro e nem quer ter? Pô, isso é seríssimo, todo mundo (que não seja pobre) deve ter como prioridade máxima um carro, e se você não quer está mentindo, você quer mais que nada no mundo, só está dizendo que não por não poder comprar. Você está fora do padrão de beleza e é feliz? Opa, não pode não, no mínimo você precisa sentir-se miserável e fazer o possível e o impossível para entrar na linha. Naquela linha pontilhada lá, viu.
No doutorado tive a oportunidade de ler um excelente artigo chamado “Constructing Normalcy” (“Construindo a Normalidade”; faça o download aqui). Seu autor, Lennard J. Davis, diz que certas palavras como média e normalentraram no vocabulário das línguas europeias em 1840, substituindo o ideal. O normal, a média, pegou o lugar do ideal. Isso não é fascinante? Acontece que o padrão é muito mais danoso que o ideal, já que o ideal carrega a aura de inatingível. Perder quinze quilos seria o ideal praquela mocinha, mas, como é impossível, se perder sete já entra no normal. Mas se ela não perder esses sete, ihhh, cuidado, porque aí ela tá fora da média, e isso não iremos permitir.
Assim como a média substituiu o ideal, a origem dessa palavra vem de avaria. E não apareceu para equiparar os ganhos, mas as perdas. Acho que isso já diz bastante sobre essa normalidade, esse padrão, que queremos alcançar a qualquer custo.

23 comentários:

Novas Descobertas disse...

Nossa, existem milhares de coisas que não conhecemos, e muitas que vem do oriente mesmo que roubamos desde a época das cruzadas e utilizámos como se fosse nosso, e o pior é que moldamos a nossa maneira, descaracterizando o original. Isso para mim é plagio, roubo e muita sacanagem.

Elias Mendes disse...

Nossa e isso se aplica a tantas coisas .... As pessoas gostam de "deixar tudo como está". querem conservar, manter, se agarram a um padrão limitado. Em suma, se mantém a todo custo na média, apavoradas com a possibilidade da perda total. Preferem afundar o navio e compartilhar as "perdas". Fazem isso evitando mudanças e se mantendo sempre onde estão, no nível em que estão. Porque não existe somente a média "do mundo"

parece que criamos médias pessoais. Traçamos uma média do que é a nossa vida e nos esforçamos ferrenhamente pra jamais sair dela.

Anônimo disse...

Deste post, cheguei ao seu comentário sobre Trainspotting. Engraçado, vi o filme e nao gostei, mas acho que pelo visto nao vi direito. Nao lembrava da fala final, mas ela me fez pensar numa música do Radiohead (na verdade, um conjunto de son e uma fala robótica). Impressionante a semelhança (a do Radiohead vem depois):

Fitter happier

Fitter, happier, more productive,
comfortable,
not drinking too much,
regular exercise at the gym
(3 days a week),
getting on better with your associate employee contemporaries ,
at ease,
eating well
(no more microwave dinners and saturated fats),
a patient better driver,
a safer car
(baby smiling in back seat),
sleeping well
(no bad dreams),
no paranoia,
careful to all animals
(never washing spiders down the plughole),
keep in contact with old friends
(enjoy a drink now and then),
will frequently check credit at
(moral) bank (hole in the wall),
favors for favors,
fond but not in love,
charity standing orders,
on Sundays ring road supermarket
(no killing moths or putting boiling water on the ants),
car wash
(also on Sundays),
no longer afraid of the dark or midday shadows
nothing so ridiculously teenage and desperate,
nothing so childish - at a better pace,
slower and more calculated,
no chance of escape,
now self-employed,
concerned (but powerless),
an empowered and informed member of society
(pragmatism not idealism),
will not cry in public,
less chance of illness,
tires that grip in the wet
(shot of baby strapped in back seat),
a good memory,
still cries at a good film,
still kisses with saliva,
no longer empty and frantic
like a cat
tied to a stick,
that's driven into
frozen winter shit
(the ability to laugh at weakness),
calm,
fitter,
healthier and more productive
a pig
in a cage
on antibiotics.

Abs,

Bruno

aiaiai disse...

Manter-se na média, dentro do padrão, igual a todo mundo é o sonho adolescente que o mundo ocidental consumista incorporou à vida adulta.

Anônimo disse...

Típico papinho de perdedor.

Larissa disse...

Adorei Lola! Acho que o importante é a gente sempre ter a consciência e refletir se estamos fazendo as coisas para estar na "média" e assim sermos aceitos, ou se estamos fazendo o que nos faz felizes e nos conecta com nossa essência. Não tem nada de religioso nisso, até porque eu não tenho religião, mas é importante a gente questionar as próprias atitudes sempre. Mas sabe uma coisa que andei pensando tbm? Às vezes me irrito um pouco com quem sempre quer mostrar que é ousado e diferente, e aí fica forçando pra mostrar que não é igual a todo mundo. Conheço algumas pessoas assim e vou dizer que enche muito o saco: a pessoa não quer ouvir música que seja conhecida, ver filme que seja americano, ler livros que sejam best-sellers.. dá uma preguiiiça.. quantas vezes já ouvi as pessoas dizerem que não querem alguma coisa porque "já virou modinha" ou todo mundo tem? Já trabalhei num lugar (uma editora super grande e conhecida) onde jamais vc podia mostrar que gostava de qualquer coisa popular, e o pior é que vc via que todo mundo estava forçando pra parecer cult e descolado.. mas ninguém percebeu que aos poucos o jogo se inverteu, e aí o "igual" passa a ser exatamente o tentar ser diferente.

Bruno S disse...

O problema não é ter um "normal" como referência, mas a obrigação de seguir o "normal".

mai disse...

ofensas em ANÔNIMO: típico comentário de perdedor

Jiquilin disse...

Pela língua denunciamos nossa ideologia:
"Típico papinho de perdedor".

Também costumamos dizer: "Típico papinho de reacinha"

Jáder disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jáder disse...

Deletei meu comentário anterior pra postar esse com algumas correções:

Uma vez, na faculdade, a professora e os alunos estavam discutindo os padrões da "ditadura da beleza", oriunda da industria da moda. Sabe, aqueles que determinam que mulher bonita é mulher magra como uma múmia.

No que eu comentei que são padrões de beleza que nem os homens mesmo apreciam (expliquei que os homens preferem as mais cheinhas e com curvas), adivinha: fui chamado de machista.

Então quer dizer que seguir um padrão de beleza que de bonito não tem nada, que pode matar uma mulher de inanição antes mesmo que ela atinja esse tal padrão ideal de beleza feminina é melhor do que seguir um padrão de beleza "machista"?! Tudo bem, vão em frente!

Carolina disse...

Isso vai tão longe e em coisas tão simples do cotidiano. Meu pai, por exemplo, me torra a paciência todo o santo ano pra ir pra praia com a família como se isso fosse uma obrigação de férias e as minhas férias só pudessem ser satisfatórias se eu for para a praia! Isso tudo, lógico, com a melhor das intenções, afinal é o meu pai. Pra citar um exemplo banal... nem vou entrar na questão de outros padrões pq eu sempre fui gordinha e nunca me comportei como a lady que a sociedade exige que eu seja e talvez por ser branca, classe média e de inteligência um pouco maior que o "normal" das pessoas com quem convivo, sempre foi fácil mandar pastar quem tentava me incluir em algum desses padrões para os quais não dou a mínima.

Pachi disse...

Podemos dizer que eu sou fui meio "alérgica" ao padrão. Não que eu tenha estendido uma bandeira dizendo "Sou diferentes de todos!", mas só não via sentido em gostar de algo SÓ porque todos gostam ou deveriam gostar, que é padrão. Sempre fui do tipo que faz as próprias escolhas sem ligar se as conseqüências delas serão algo padrão ou não, então é claro que eu já ouvi mil e um absurdos vindo de colegas, da familia e até dos meus amigos.

Sim, porque mesmos adolescentes 'diferentes' tem padrões - mesmo que estes sejam diferentes do padrão geral -, e eu nunca me importei em segui-los ou não.


Só que a 'polícia' está 24 horas por dia, 7 dias por semana, pronta pra me "multar" por não me importar com o tal padrão. Já ganhei alguns anos de bullying por isso.

Koppe disse...

Muita gente me considera esquisito porque não tenho carro e nem tenho como meta de vida ter um; nem está nos meus planos a médio prazo tirar carteira de motorista. Quando digo que não assisto TV, devem ficar pensando que sou caso de internação. Mas não deixo de gostar de alguma coisa só porque faz sucesso, e acho que quem usa isso como critério principal pra gostar ou desgostar de alguma coisa é no mínimo imbecil.

O comentário da Larissa é mesmo muito pertinente, também existem aqueles que são o contrário, que querem ser undergrounds a qualquer custo e em todos os detalhes, acabam sendo tão chatos quanto a patrulha do normal. Na minha opinião, os dois casos são problema de quem se preocupa demais com o que os outros pensam.

Aqui tem um texto interessante sobre essa mania que muitos têm de parecer "alternativos" e idolatram certas coisas só porque os outros consideram "cult"(detesto essa palavra). Aliás, "Underground" também é o nome de um dos filmes mais machistas de todos os tempos.

karina disse...

Ah.... o comentário sobre carros me tocou. Tenho carro, sou motorista diariamente, mas não para todos os lugares. Morro de medo de carro. Muito medo mesmo. O trânsito é um dos 'lugares' mais agressivos e perigosos do mundo (bem, ao menos é assim que eu sinto). Até aí, tudo bem. Vou para o trabalho de carro, levo meu filho a escola e busco, faço compras, etc. Mas simplesmente não consigo 'pegar estrada', nem guiar no centro caótico de BH. E, também simplesmente, as pessoas parecem não se conformar com isso. é uma loucura, sempre que chego em qualquer lugar, as pessoas me perguntam como cheguei até lá. Minha resposta tem sido: "voando, é claro."

Eu nunca vou entender o tempo que muita gente gasta pensando em carros.

aiaiai, seus comentários são sempre ótimos.

Fabio Burch Salvador disse...

KARINA,
sobre ter gente que gasta tempo falando de carros...

posso falar em nome dessa classe.

Mas, de fato, a fascinação por carros pode se dar pelo aspecto "status" dos modelos, ou por nostalgia ou, como no meu caso, pelo gosto muito acentuado por máquinas em geral.

Não dá para explicar.

Agora, carro, eu tenho, adoro, discuto, escrevo sobre eles, faço fotos de modelos antigos... mas rodo bem pouco, na verdade. Só na estrada para viajar ou em dias de temporal muito forte, para levar minha filha á escola.

No mais, prefiro caminhar e pegar ônibus. Principalmente caminhar, por questões de saúde.

Fabio Burch Salvador disse...

Haha! RINDO ALTO sobre o que falaram aqui, de lugares onde ser cult, diferente, alternativo e "fora do padrão" É UM PADRÃO!

Fiz faculdade de comunicação social. O prédio era formado 85% só por cult-bundões.

Aliás, escrevi um tratado sobre a cult-bundice:

http://www.fabiosalvador.com.br/index.php?mat=86

Amana disse...

Lola, se as pessoas se dessem conta dos bastidores da construção do normal ficariam horripiladas. Na Psicologia, área em que atuo e pesquiso, isso envolve guerras e padronização de comportamento para matar mais e sobreviver mais; educação como modo de exclusão de quem pensa ou age milimetricamente fora dos padrões exigidos pela indústria ou mercado de trabalho. E por aí vai. É feio...
Procurei o artigo que vc comentou e não encontrei. Vc teria digitalizado, ou poderia dar a ref. completa??
Obrigada!!!
bjss

Amana disse...

Opa! Achei no gigapedia o livro em que está o artigo. Pra quem quiser: http://ifile.it/dcbwf2i
Lola, obrigada pelo post. O tema me interessa muito!
bjs

lola aronovich disse...

Uau, Amana, que maravilha vc ter encontrado o artigo! Vou colocar o link p/mais pessoas fazerem o download, se quiserem. O artigo é ótimo mesmo.
Eu acho tudo muito estranho, sabe? Porque a maior parte das pessoas dá enorme importância pra normalidade, quer ser normal, anormal é palavrão, faz patrulha pra enquadrar todas as pessoas num mesmo padrão... e, ao mesmo tempo, essas pessoas se consideram únicas, especiais, diferentes, verdadeiros indivíduos!
Ah, como vc se interessa pelo assunto, não quer escrever um guest post pro blog sobre o que vc citou? Eu adoraria!

Amana disse...

Oi Lola!
Será um prazer escrever, sim. Estou terminando - entrego dia 4 de fevereiro - minha tese de doutorado, o título é "Liberdade, um problema do nosso tempo: Os sentidos de liberdade para os jovens no contemporâneo". Posso contar um pouco da questão que trato, das oficinas que fiz com jovens... Tem tudo, tudo a ver com essa questão de "ser normal" X "ter personalidade"... Deixa só eu entregar, daí eu escrevo e te mando!
beijos

lola aronovich disse...

Eu iria adorar, Amana! Manda sim, que esse é um assunto muito importante. Vc sabe meu email, né? lolaescreva@gmail.com
Muito obrigada! Fico no aguardo.

Camila Fernandes disse...

EXCELENTE post, Lola. Me espantei por sintetizar tão bem coisas que eu mesma sempre penso e defendo... até onde minha sanidade permite. :-P