terça-feira, 31 de março de 2015

GUEST POST: MINHA DECEPÇÃO COM A UNIVERSIDADE

A P. trabalha como servidora numa das universidades mais conceituadas do país, onde se formou. E ela não está contente, como narra neste relato:

Lola, em primeiro lugar, gostaria de dizer que nos últimos cinco anos tenho aprendido muito lendo seu blog. entendi muitas coisas, conheci outras que nem imaginava que existiam. 
Mas, em vista do que li nos últimos dias, gostaria de compartilhar minha experiência na universidade.
Sou formada em Letras por uma grande universidade pública, sonho que tinha desde que decidi me tornar professora. 
Claro que como aluna, conheci muitas falhas dentro do sistema universitário, mas hoje percebo que não sabia de muita coisa.
Há dois anos deixei de ser professora efetiva do estado, por vários motivos, como salário, falta de condições de trabalho, insegurança... Posso contar em detalhes os porquês um outro dia. Mas, enfim, passei num concurso e hoje faço parte do quadro administrativo da universidade. 
No começo, achei que minha tristeza se resumiria em abandonar a sala de aula. Infelizmente estava errada.
Acontece que percebi o nível de ignorância dos funcionários, especialmente com relação aos preconceitos dos mais variados tipos. E o pior é que a universidade contribui e ajuda para perpetuar essa ignorância.
Me deparei com ela logo de início, quando um aluno morreu durante uma festa e surgiu a discussão da polícia no campus. O que eu ouvi de frases como "universitário é tudo drogado", "se morreu é porque tava devendo" etc etc etc foi chocante. Sério, me deprimiu.
De lá pra cá, tantas coisas ocorreram que até tratamento pra depressão eu estou fazendo. Nunca pensei que a universidade pudesse ser um espaço tão preconceituoso, racista e misógino.
A última ocorreu agora, em março, nas comemorações do Dia Internacional da Mulher. Pra começar, as pessoas não sabem nada do porquê desse dia ser comemorado. Sério.
Exemplo de homenagem equivocada
e alienada
Bom, onde trabalho, há a distribuição de flores ou bombom por causa da data.  Nem adianta dizer que não concordo, mas como dizem por aqui, o que tá ruim sempre pode ser piorado. Temos uma funcionária trans e a grande discussão foi se ela devia ou não receber o bombom.
Não acreditei quando ouvi uma colega revoltada dizer "se esse homem for receber o bombom, eu não quero o meu. Eu tenho útero!"
A discussão sobre o bombom passou a uma discussão sobre identidade de gêneros, eu tentando fazer com que eles me ouvissem e pedindo pra que lessem sobre o assunto. Porque pra eles é tudo igual: gay, trans... fui hostilizada e ameaçaram inclusive o meu emprego.
Mas não acabou por aí. Essa semana me mandaram ler um livro evangélico sobre o casamento, pois ele ensina qual é o lugar da mulher. Disse que não leria esse livro de jeito nenhum e a resposta foi que sou muito feminista e talvez não sirva pra trabalhar lá. 
Acho muito triste que essas coisas aconteçam num lugar que deveria ser de aprendizagem, sem preconceitos, sem machismo. Os coletivos feministas organizados pelas alunas deveriam chegar a todas as funcionárias. 

segunda-feira, 30 de março de 2015

"EU TAMBÉM VOU SER BENEFICIADO COM A QUEDA DO MACHISMO"

Lauro deixou este comentário bastante lúcido (e também cheio de dúvidas). Ele parece ter boas intenções e merece ser ajudado, a meu ver:

Primeiramente queria pedir desculpa por falar em lutar pelo direito dos homens em pleno dia da mulher, mas enfim...
O machismo cria um ideal para ambos os sexos, e por isso ele é problemático para ambos os sexos, entretanto, o ideal masculino no machismo tem o papel de opressor e o ideal feminino (machista) de oprimido.
Dito isso, espero ter deixado claro que no machismo, a mulher é quem mais sofre, indiscutivelmente.
Mas se é para falar dos direitos dos homens vamos ver como o machismo fere os homens, e para isso, vamos pensar em sua lógica no ideal de homem.
O homem deve ser:
Forte e independente e nunca frágil e dependente;
Racional e nunca sentimental;
Ser o pegador e nunca o pega-ninguém;
Gostar de comer a mulher e nunca gostar da mulher;
Todas as mulheres que ele vê ou são da sua família ou são do seu harém, se não são do seu harém é porque ele é um incompetente;
Outros homens são seus rivais no âmbito profissional e na questão de ameaçar o seu harém;
Os amigos homens (bros) vem antes das mulheres (hoes);
Acha que homens e mulheres não conseguem ser apenas amigos;
Escolhe "mulheres de família" para casar, e as outras para trair, afinal homem que é homem não se contenta só com uma;
Tem o DEVER de sustentar sua família, sua mulher não precisa trabalhar, porque ele dá conta;
Se ele é "frouxo" e precisa que sua mulher trabalhe, ela NUNCA deve ganhar mais que ele;
Deve proteger a sua família contra qualquer ameaça.
E como isso tudo se reflete no homem?
Se esse ideal não for seguido, em qualquer desses pontos, o homem é tido como mulher(zinha), e com isso é alvo de chacota e em alguns casos até agressão e morte (exemplo: vide os gays).
Além disso, ao seguir esse padrão, corremos mais riscos, tais como: mortes violentas (não por motivação de gênero), nos preocupamos menos com a saúde (afinal somos fortes sqn), temos uma cultura que diz que é normal o homem ser OBRIGADO a se alistar, enfim, temos de agir como se fossemos indestrutíveis. 
Temos que ter condições para sustentar a família, afinal ela "é nossa posse" (vide o código civil vigente até 2002). Devemos (todos os homens) ser sempre o macho alfa, e a forma de se provar isso é a partir da conquista de mulheres, e nossa capacidade de "trazer a caça" (leia dinheiro) para casa.
Bom, com todo o respeito as mulheres, eu também quero que isso tudo acabe. Eu sei que vocês têm motivos mais sérios que eu, afinal sofrem com estupros, agressões, cantadas, são assassinadas (por motivos ligados ao gênero), e ainda são o lado oprimido... Mas eu também vou ser beneficiado com a queda do machismo, além de ficar mais feliz num lugar onde as mulheres estão bem, porque afinal sinto empatia.
Eu acredito que nós, homens que queremos a queda do machismo, devemos apoiar as mudanças dos movimentos feministas, e no que diz respeito a algum direito delas, nunca querer ser protagonista, apenas apoiar. E ser protagonistas nas nossas lutas, como por exemplo, ser contra o alistamento obrigatório (com todo respeito à instituição do exercito, que tem a importante função de proteger o país, não é essa a questão).
Não sei se isso me faz um feminista, ou talvez um "mascu-pró feminismo" (já que um homem não pode ser feminista). Estudei muito pouco sobre o assunto, se alguém puder me falar onde me encaixo, eu agradeço.
Caso eu tenha falado alguma coisa que chateou/ofendeu alguém, me desculpem, é só minha opinião e se puderem me apontar meus erros eu também sempre agradeço pois estariam me ajudando a melhorar.

Meu breve comentário: Bom, Lauro, primeiro as boas notícias: mascu você não é. Mascu não é de maneira alguma sinônimo de homem. Mascu é uma abreviação que criei de masculinista, que são nada mais nada menos que misóginos organizados que dizem lutar por direitos dos homens, mas que, na verdade, vivem atacando mulheres em geral e feministas em particular. 
Algumas correntes feministas acreditam que homem não pode ser feminista, apenas pró-feminista (também creem que mulheres não podem ser machistas). Eu discordo disso e digo com todas as letras: homens podem -- aliás, devem -- ser feministas. Como você apontou bem, e como pode ser facilmente constatado por qualquer ser pensante, o machismo é péssimo para os homens também
Sim, homens têm uma série de privilégios, mas precisam pagar pedágio para manter esses privilégios. É um preço alto demais. 
Imagine poder ser homem sem todas essas camisas de força impostas. Imagine poder ser livre.

domingo, 29 de março de 2015

GERAÇÃO NEM NEM E OS MIMADOS DE SEMPRE

Só ouvi falar em geração "nem nem" há poucos anos, e relacionada aos europeus. Mas as pessoas entre 15 e 29 anos que nem estudam e nem trabalham são hoje quase dez milhões no Brasil, cerca de um em cada cinco jovens.
70% dos nem nem são mulheres, e muitas são mães (quase 60% desse grupo tem pelo menos um filho) e não têm com quem deixar a criança, já que nosso país carece de creches. Para mulheres de classe baixa, o salário que ela vai receber trabalhando pode não cobrir o pagamento de uma creche para cuidar da criança.
Ficar sem estudar enquanto se está desempregadx é péssimo, porque, sem estudo, a pessoa têm cada vez menos oportunidades de trabalho. E vai se acostumando àquela situação, sem saber como sair dela.
Protesto em Portugal
Nos países europeus e nos EUA a falta de perspectiva toma conta de muitos jovens, que veem que, com seus países submersos numa crise mundial (difícil culpar o comunismo por esta), dificilmente terão o mesmo padrão de vida que seus pais. Embora alguns jovens de classe média no Brasil também pensem assim, o que se vê aqui é diferente. Com a queda da miséria, a situação dos jovens brasileiros, em geral, é melhor que a da geração de seus pais.
Por exemplo, ano passado, pela primeira vez na história, o número de eleitores brasileiros com curso superior (8 milhões) superou o de analfabetos (7,4 milhões). Na penúltima eleição presidencial, em 2010, havia 5,1 milhões de eleitores graduados, contra 8 milhões de pessoas que não sabiam ler ou escrever.
Outro dado: em dez anos, o número de brasileiros com curso superior completo quadruplicou. Continua sendo um número baixíssimo (menos de 14% da população têm um diploma; só 0,83% têm mestrado ou doutorado), mas saltou de 5,5 milhões, em 2002, para 25,5 milhões, em 2012. Todo mundo conhece alguém que é a primeira pessoa da família a cursar uma faculdade (eu tenho um monte de alunxs com esse perfil). 
Com maior escolaridade, a renda aumenta: em 2013, quem tinha entre oito e dez anos de estudo recebia uma média de R$ 1.147; quem tinha mais de 11 anos (nível superior), recebia o dobro -- R$ 2.381 (lógico que as desigualdades seguem fortes: um homem branco ganha o dobro que uma mulher negra). 
Deixa disso, meu jovem
O Brasil e o mundo não estão indo nada bem, mas é inegável que nosso país está melhor hoje do que há quinze ou vinte anos, principalmente aqui no Nordeste. Há pessoas que não reconhecem seus privilégios e odeiam o próprio país, o apelidam de "Bostil", inventam que aqui nada presta e que no exterior é tudo maravilhoso, lamentam ter nascido na "América Latrina" (como reaças chamam nosso continente). Essa gente sempre existiu, independente do governo. 
Não sei se o que falei acima tem muito a ver com o que falarei agora, mas semana passada vi uma notícia curiosa: a de que pais de alunos em faculdades particulares iam à instituição para reclamar das notas que os filhos tiravam, o que a reportagem classificou de "geração mimada".
E ontem fiquei sabendo de um mascu de 32 anos que, quando a namorada terminou com ele, reagiu desta forma:

Nos meus tempos a gente ficava com o disco do Pixinguinha.
E, antes que me esqueça, alguém deixou este comentário no post sobre mães solteiras, no blog mais chorão do país:

"Conheço muitos caras como esses aí [mascus de finanças]. São muito mais comuns do que vocês imaginam. Na maioria são filhinhos de papai que não sabem enfrentar o mundo. Sempre reclamam de tudo. O cara tem um carro e reclama dele. Mora em um apartamento e reclama dele. Mora em um bairro e reclama dele e assim por diante. Basta ver o exemplo desse cara aí do blog: ganha 6 mil por mês, tem 200 mil no banco, mora com os pais e se acha um pobretão sofredor injustiçado pela sociedade.
Creio que isso tenha algo haver com a criação. Um colega meu tem 27 anos, cabeça de 15, só joga videogame, vive contando mentiras e dá chiliques quando é contrariado. Mora na casa dos pais e não tem que pagar conta nenhuma. Isso afeta o psicológico dos homens de hoje em dia. São como crianças que choram e esperneiam para ganhar a mamadeira. Isso é bem comum nos países do Sul da Europa (todos falidos, diga-se de passagem) e parece que refletiu aqui no Brasil. O típico falastrão cheio de pose, mas que na hora do vamos ver, não sabe fazer nada."

sábado, 28 de março de 2015

GUEST POST: AZMINAS NO FEMINISMO

Atenção: duras críticas para todos os lados

Semana passada, publiquei um texto da Karina e Paola sobre "Uzomi na esquerda". Agora publico este segundo texto, complementar, e um pouquinho encurtado. Para ler o post na íntegra, veja aqui

Constantemente o feminismo torna-se alvo de ataques, à direita e à esquerda. Então é sempre necessário enfatizar a necessidade ainda atual do feminismo para superar as desigualdades de gênero (e o próprio gênero) e contribuir na conquista da emancipação das mulheres.
O feminismo defendido e reivindicado neste texto orienta-se na busca por transformações profundas, tanto nas relações de gênero quando na totalidade da sociedade em oposição ao reformismo dentro do feminismo que não questiona as relações capitalistas e preocupa-se somente com o gênero de quem está nos cargos de poder. Desta forma, as relações de dominação e exploração não são tratadas como problemas e sim a ausência da mulher nestes postos de comando.
Assim, esse feminismo que entendemos enquanto reformista pauta-se na luta por maiores cargos de comando às mulheres, reduzindo a posição subordinada da mulher a não ocupação de cargos de comando por elas e abstraindo os interesses de classe. Este tipo de feminismo defende o voto em mulheres, de preferência feministas, mas não necessariamente, já que se considera que a ocupação destes cargos pela mulher já traz benefícios em si. De forma que não questiona-se a ordem, mas quem ordena.  
“O apoio indiscriminado ao governo Dilma, por ser ela mulher, tal como o apoio indiscriminado ao governo Obama, por ser ele negro, compõe um dos indícios do quão assimiladas foram as bandeiras feminista e negra, ou, o que dá na mesma, indica o quão competentes foram os governos em sua prática de recuperação e assimilação de bandeiras históricas da luta da classe trabalhadora contra a opressão, dominação e exploração, seja em seus componentes de gênero, raça ou classe.
Assim por meio da recuperação e assimilação pelo Estado das bandeiras feministas, esvazia-se de qualquer conteúdo revolucionário parte do movimento feminista, tornando-o inclusive um propulsor do capitalismo, ao renovar suas relações. Dessa forma, ao invés da busca por um movimento de base popular, este tipo de feminismo irá buscar somente eleger representantes femininas (fortalecendo a política de representação), formular políticas públicas e ocupar cargos de secretarias. De maneira que o próprio Estado passa a pautar o movimento, e que ao invés de empoderar mulheres, “empodera-se” o próprio Estado e as relações capitalistas. Na prática, por entender que não há mulheres em abstrato, o que tal feminismo faz é atuar em defesa de uma mulher bem específica, a mulher burguesa (branca, hétero, cis).
Como tal feminismo perde qualquer visão de transformação e, por conseguinte de totalidade, as relações sociais são limitadas a relações de gênero e um problema estrutural é reduzido na prática a uma luta dos sexos. Com isto, acarretam-se análises cegas em qualquer outra relação que não a de gênero e na misandria enquanto tática política.
A partir de tais perspectivas pauta-se uma luta entre homens e mulheres, tratando-os enquanto classes antagônicas, portanto, com interesses opostos e irreconciliáveis. 
Sendo assim não há qualquer lugar para o homem no feminismo, pois este é e sempre será um opressor. O que não raro recai em uma transfobia em que não se reconhece mulheres trans enquanto mulheres, alegando que sua vivência é a de um homem e reduzindo sua expressão de gênero a performances. Tal perspectiva é marcada por uma incoerência profunda, pois se por um lado defende que a mulher ainda que criada para o âmbito privado, ensinada a reprimir a própria sexualidade, entre outras questões, pode por meio de novas relações sociais, superar tais comportamentos, o homem é visto como estagnado.   
Em discussões, os argumentos passam a ser legitimados não a partir de suas consistências, mas unicamente do sujeito. Se é homem, nem se discute. Ele, independente de qualquer vivência ou experiência militante, em absolutamente nada pode contribuir ao movimento. E se a verdade está no próprio sujeito e se dá por meio de vivência, a fala da mulher torna-se absoluta e qualquer questionamento, independente do conteúdo, é acusado de deslegitimar tal fala, o que facilita a apropriação por organizações oportunistas destas acusações a fim de anular inimigos políticos. E ao invés de criar um movimento social, criam-se guetos com uma linguagem e identidade própria que não dialogam com quem não faz parte e nem se identifica com tal gueto, fazendo com que este feminismo se feche em si mesmo e se caracterize pela intolerância e autoritarismo.
Tal irracionalismo é fortalecido com discursos anti-intelectuais, em que tentativas de análises históricas e estruturais são reduzidas a elitismo, academicismo, coisa de macho de classe-média, não se diferenciando conhecimento de academia, e tornando este feminismo incapaz de renovar-se, de fazer análises consistentes sobre a luta, portanto, incapaz de traçar estratégias a longo prazo, morrendo no imediatismo. O que também faz com que a produção científica do feminismo (majoritariamente composta por mulheres) seja desvalorizada.
A questão dos privilégios e do local de fala, se a principio pode ser usada no sentido de evidenciar as relações sociais desiguais na sociedade e também dentro dos movimentos, às vezes são usados por algumas feministas para culpabilização e cerceamento. Culpabiliza o sujeito por pertencer a um grupo detentor de mais direitos e privilégios, como se ele desejasse e fosse de alguma maneira responsável por isto, cabendo a ele o silenciamento total e concordância absoluta com o movimento ainda que este não seja homogêneo. O debate de ideias deixa de existir.
De forma semelhante acontece com o protagonismo das mulheres no feminismo, que consideramos tão necessário para uma real emancipação feminina e é por algumas feministas, deturpado, pois se usa disso para deslegitimar toda fala masculina, independente de seu conteúdo e contexto, acusando-o de estar tentando roubar protagonismo. Assim, o protagonismo tão necessário para o empoderamento da mulher, para a superação da dicotomia privado e publico, passa a ser usado na prática para evitar debates e cercear criticas.
Entendemos que aquelx que vivencia a opressão consegue ter uma apreensão da totalidade de forma mais qualificada do que quem não vivencia, mas uma luta por emancipação não deve ser feita unicamente por quem seria beneficiado prioritariamente por ela. 
A participação dos mais diversos grupos em lutas contra a opressão requer uma certa abertura para isso, o que é impossibilitado em lugares onde o debate é cortado. Denunciar opressões sempre que elas aparecem é necessário, mas a forma de combater argumentos e comportamentos machistas não pode ser entendida como simplesmente apontar que o emissor é um homem. O problema está na manutenção de lugares sociais que fazem com que grupos de pessoas sejam oprimidos enquanto outros possam ter seus direitos e privilégios assegurados.
Uma análise semelhante pode ser feita sobre a sororidade. Aqui vale um parênteses que não temos acordo entre nós sobre o conceito em si. Diante de criticas públicas a determinadas práticas ou grupos, se feitas por homens, eles são de imediato hostilizados por determinadas feministas; se feitas por mulheres, são de imediato acusadas de anti-sororidade, de estar enfraquecendo um movimento já tão criticado; ou se diz que as críticas até poderiam ser feitas, mas internamente. O que na prática reduz um movimento social a grupo de amigas em que não há espaços para críticas, que silencia mulheres, impede debates públicos tão necessários ao avanço de qualquer luta e por fim, hostiliza a autora das criticas. 
Em seu limite, o que se vê na insistência da crítica e do desacordo é uma sororidade seletiva. A autora da crítica torna-se uma inimiga digna de ofensas e afirma-se que ela não é feminista, isso quando não se afirma que determinado comportamento ou defesa é devido ao pouco conhecimento sobre feminismo ou mesmo que ela é “amiga duzomi”. Assim, reproduz-se autoritarismo, cria-se uma hierarquia dentro do movimento (a que sabe e a que não sabe, a feminista e a mais feminista) e dá-se carteirada de feminista (quem é feminista de verdade e quem não é).
Se entender enquanto solidária na luta contra o machismo pressupõe cuidar, ouvir, criticar e problematizar as atitudes de companheiras de luta. Isso não é trair o feminismo, é impedir que se acredite numa igualdade abstrata entre as mulheres que ignora marcadores sociais que definem a materialidade da vida de todas elas, de todas nós.
Há por parte de certas feministas uma lógica completamente punitivista. Se defendemos no outro texto o uso de escracho, afastamento e denuncia pública em determinados casos, também achamos que tais táticas são fetichizadas por algumas feministas, como se fosse a resposta adequada para qualquer caso. Recaem em uma individualização e demonização do agressor. Reduz-se o machismo não a práticas sociais de submissão e controle sobre mulheres, mas a um ser machista, de forma que não se tem práticas machistas, se é machista. 
E se o sujeito é machista, logo, o problema está nele próprio e não em suas práticas, fazendo com que ele seja combatido, chegando por vezes a exposições públicas desnecessárias. Este tipo de feminismo, além de ser incapaz de atuar efetivamente no combate ao machismo por reduzi-lo à questão individual, em seu extremo pode justificar comportamentos bárbaros. Infelizmente, a oprimida pode sim reproduzir a lógica do opressor.
Por vezes recai no pedido de recrudescimento de medidas penais, fortalecendo o Estado Penal, tão caro à classe trabalhadora, sobretudo, os negros e mesmo as mulheres, resultando em uma maior atenção ao agressor do que a(s) vítima(s) e a violência, que se repete para muito além daquele caso.
Para estas, a pedagogia da luta, tão debatida e importante nos movimentos sociais, não existe no feminismo. É somente por meio de medidas punitivas e imposição de suas opiniões que se consegue avanços.
Tais problemas apontados também podem se fazer presentes em espaços exclusivos para mulheres. Em grupos exclusivos pode ocorrer a reprodução dos mesmos comportamentos criticados em grupos mistos -– gritos, autoritarismo, intimidação, protagonismo, hierarquia informal, dentre outros. No entanto, entendemos que tais riscos não deslegitimam a proposta de espaços exclusivos, mas que devem ser amplamente debatido com a totalidade dos envolvidos e não deve ser isento a críticas e questionamentos.
É importante compreender a presença de problemas também em um feminismo que se propõe revolucionário. Dada a constante tensão que se coloca nas organizações entre as questões de classe e as de gênero, não raro, perde-se o feminismo e a luta se resume à questão de classe, ainda que tal posicionamento não seja declarado. Este feminismo está longe de dar conta das questões da emancipação feminina e quando consegue avançar, mostra-se incapaz de sair do âmbito econômico. Sob tensão com a organização, recai quase sempre na decisão de privilegiar a organização e a classe, ignorando, abafando o feminismo e amenizando a gravidade de práticas opressoras. 
Esta totalidade de comportamentos cria certo feminismo estéril, incapaz de ampliar sua base, limitando-se a um âmbito acadêmico, incapaz de se renovar e de estabelecer diálogos com outros movimentos sociais, tornando-se um fim em si.
Por entendermos a força e o potencial de mudança do feminismo é que reconhecemos que ele não deve ocupar um lugar de isolamento ou suspensão, isento de ser tocado ou pensado e analisamos que boa parte do mesmo têm caminhado para isto. Ideias sobre as quais não permite-se a possibilidade de serem debatidas tornam-se fundamentalistas no nível conceitual da palavra.
É fundamental que o feminismo seja tratado enquanto uma questão política que implica organização e diálogo com outros movimentos, caso contrário iremos nos isolar em guetos e nossa emancipação será algo cada vez mais distante. O feminismo representa uma luta que permeia os nossos cotidianos e pode ser utilizado como a nossa ferramenta pra ultrapassar os limites impostos ao nosso ser social, considerado secundário, permitindo a superação de mecanismos de opressão que nos tornam menores e incapazes, por cercear nossas possibilidades de pensamento, criação e ação no mundo. 
O feminismo é vivo, tem movimento. Ele não pode ser estagnado em cima de verdades absolutas. Devendo, acima de tudo, ser construído e utilizado na superação de realidades de opressão e exploração que nos violentam e desumanizam cotidianamente. Para isto, é fundamental que estejamos abertas ao debate e que busquemos meios de combate à opressão. Devemos buscar não novas relações capitalistas e estatais, mas a superação destas e a superação do próprio gênero e então teremos um feminismo de fato emancipatório.
Entendemos que a discordância de pontos de vista e o choque de opiniões diferem ou ao menos deveriam diferir de “choques de ego e vaidades”. A luta contra a opressão de gênero diz sobre uma violência sofrida por nós, nossas mães, avós, vizinhas, a mulher do outro lado da rua e a que está do outro lado do mundo. Ela, necessariamente, deve ser entendida para que nenhuma mulher (cis ou trans), pessoa não binária ou homem tenha sua expressão de gênero cerceada ou ferida por construções históricas que definem papeis específicos e enrijecidos para cada uma/um de nós. 
Mesmo que seja possível alterar a nossa realidade imediata não seremos livres enquanto há outrxs sendo oprimidxs e exploradxs. Caminhar para a revolução não é ignorar as caixinhas que ainda nos tornam prisioneirxs, nem negar nossas limitações e contradições, muito pelo contrário. Somente superando esse cenário atual de reprodução de opressão de um lado e a fragmentação por outro, com comportamentos problemáticos que se retroalimentam, é que conseguiremos verdadeiramente travar um diálogo, ao invés de incansáveis monólogos, e por fim, superarmos essas barreiras que tanto enfraquecem a construção de uma nova sociedade.