sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

CRÍTICA: JOGOS DO PODER / De guerreiros da liberdade a terroristas

Lembrado pelo Globo de Ouro e desprezado pelo Oscar, “Jogos do Poder”, que no original leva o título mais singelo de “A Guerra de Charlie Wilson”, foi a única produção a lidar com o Oriente Médio que não fracassou 100% na bilheteria. Isso por causa do apelo do Tom Hanks e Julia Roberts. E a realidade é que é um filme ágil e agradável, que transforma História em comédia. Pena que a ideologia seja de doer. Começando pelo início, Charlie (interpretado por um Tom Hanks muito à vontade) é um político texano que consegue, na década de 80, sem estardalhaço, aumentar um orçamento pífio de 5 milhões de dólares - pra ajudar guerreiros afegãos a derrotar os soviéticos – para um bilhão (agora a conta da Guerra do Iraque já ultrapassou um trilhão. Nos anos 80 era mais barato). O Afeganistão foi o Vietnã dos soviéticos, isso todo mundo sabe. Quer dizer, quem sabe o que foi o Vietnã e a União Soviética (por aqui os americanos no colegial acham que a Segunda Guerra foi entre EUA e Rússia. Hitler era comunista, você não sabia?).

Charlie adora mulheres e bebida. Todas as secretárias dele são gostosonas. Alguém pergunta o porquê disso e uma delas responde, orgulhosa: “Ele sempre diz que dá pra ensinar uma mulher a datilografar, mas não dá pra ensiná-la a fazer crescer os peitos”. Pois é, um gigante intelectual, esse Charlie. E tão a favor das liberdades! Pra gente não pensar que tudo é festa, numa cena ele relata um fato da sua infância. Um vizinho político matou o cachorro dele, e Charlie, aos 13 anos, foi a um bairro negro onde as pessoas nunca votaram, recrutou vários eleitores, os levou até as urnas, e disse “Não quero influenciar vocês, mas esse cara matou meu cão”. O adversário então ganhou por 16 votos, e foi aí que Charlie passou a amar a América. Hmm... Vejamos quantas coisas erradas há nessa anedota. Primeiro, mostra que é bem facinho manipular eleitores, ainda mais negros pobres. Segundo, tudo bem, eu não votaria de jeito nenhum em alguém que mata cachorro, mas nem por isso votaria no adversário, sem saber o passado (político, de preferência) desse candidato. E no entanto, esse é o tipo de recado simplista que “Jogos” tenta passar.

O filme não deixa claro por que Charlie se comove com a desgraça afegã. Ele vê na TV mulheres e crianças bombardeadas e pimba, vai ao Congresso pedir dinheiro. Pouco depois ele se envolve com uma Julia Roberts de peruca loira interpretando uma membra da direita cristã que aproveita qualquer guerra pra converter muçulmanos a Jesus. Dá pra vê-la de bíquini (e o bumbum do Tom) por uns 2 segundos. Juro que o estúdio usa esses segundos pra vender ingressos. Porém, pra ser justa com a Julia, a cena em que ela usa uma agulha pra ajeitar os cílios é mais horrorizante que qualquer filme de terror (eu tive que fechar os olhos). Enfim, “Jogos” evita dizer se o nobre Charlie é democrata ou republicano, o que indica bem o quanto esses dois partidos são parecidos. E o filme também faz propaganda da CIA. Mesmo que eles sejam um bando de burocratas, há um agente lá, o Philip Seymour Hoffman (no melhor papel), que faz a coisa certa. E outras pessoas que trabalham na CIA são geniais. Como sabemos? Porque conseguem jogar xadrez a cegas! E ainda simultaneamente com quatro tabuleiros! Ahn, eu conheço vários enxadristas, incluindo o maridão, que podem fazer o mesmo e nem por isso são gênios. Inclusive, no caso do maridão, não mesmo.

“Jogos” fica didático no final, mostrando como o dinheiro do contribuinte foi bem empregado, enchendo a tela de números pra indicar quantos helicópteros soviéticos foram derrubados e tal, e termina com Charlie sendo aplaudido de pé. Entre vários tapinhas nas costas, alguém diz que os americanos fizeram tudo certo, foi uma época gloriosa, só erraram no final do jogo. Claro, claro. A mensagem é: “Puxa, nós americanos somos tão bonzinhos, estamos sempre do lado do bem, salvamos criancinhas afegãs sem querer nada em troca, só pelo amor no coração, e ainda assim esses fdp nos sacaneiam”. Os “guerreiros pela liberdade” afegãos, freedom fighters, viraram terroristas que ajudaram a bombardear Nova York. É uma questão semântica: quando eles lutavam contra os comunistas, a favor dos interesses dos EUA, eram guerreiros. Quando lutam contra os americanos (em qualquer lugar, mesmo que seja no Iraque), são terroristas. O filme também se esquece de dizer que os freedom fighters afegãos se rebelaram contra o governo apoiado pelos soviéticos porque ele permitiu que meninas frequentassem escolas rurais. Pois é, liberdade é algo tão relativo...

E quem diria que 15 anos depois os EUA arrasariam seu antigo aliado, o Afeganistão, transformando-o num estacionamento? Mas certamente dessa vez eles não mataram mulheres e crianças - só terroristas e, talvez, algum camelo.

Julia Roberts antes de retocar os cílios com uma agulha, enquanto Tom Hanks descansa na banheira (a essa altura você deve ter reparado que o Tom passa boa parte do filme em banheiras). Vida de homem é tão difícil!

9 comentários:

lola aronovich disse...

Mas que catzo, ninguém vai ver esse filme e comentar alguma coisa aqui?! Chuifzinho.

Suzana Elvas disse...

Ver o filme não sei se vou conseguir, mas só de ler a sua resenha fiquei muito decepcionada - porque sou fã incondicional de Aaron Sorkin, depois de "The West Wing" e "Studio 60 on the Sunset Strip". Tudo bem que ele adaptou o livro, mas... Sei lá. Sacudiu o pedestal... :op

lola aronovich disse...

Bom, essa foi apenas a minha visão do filme, Suzana. Pode ter gente que veja o filme como crítico à intervenção americana (não sei como, mas...). Nunca vi "The West Wing", porque odeio produções que mostrem presidente americano (99% das vezes como herói, o que me deixa com ânsia). É bom?

Suzana Elvas disse...

É muito, muito, muito bom, Lola. Tem a marca do Sorkin - diálogos ágeis, cortantes. Muito bom. O presidente é democrata, vencedor de um Nobel em economia, e a cada capítulo tem uma bananosa pra resolver e a solução quase sempre vai contra ao que ele acredita - mas, no fim, é o que tem que ser feito. O ápice da série é quando se descobre que ele tem uma doença degenerativa - e escondeu isso do público quando se candidatou.

Tem participações especiais muito boas, como Matthew Perry (o procurador republicano que descobre que o presidente mentiu sobre a doença - e, detalhe, ele trabalha para a Casa Branca).

Vitor Ferreira disse...

Eu achei esse filme bem pior do que você relata. E achei a Julia tenebrosa fazendo esse projeto de Dolly Parton.

lola aronovich disse...

Ai, Su, nao me convenceu a ver West Wing... Mas isso da doenca degenerativa eh muito interessante moralmente.
Serio que vc detestou o filme, Vitor? Eu achei divertido. Nao concordo em nada com a ideologia, mas tem um bom ritmo. E achei que a Julia ta bem. O personagem nao ajuda, aparece pouco, eh falso. Talvez o problema seja terem colocado uma estrela num papel coadjuvante. Frustra as expectativas!

Suzana Elvas disse...

Deixa de preguiça, baixa um episódio e me diz se não é bom!

Vitor Ferreira disse...

Achei monotono. Deve ter sido porque vi logo depois de ver Encantada ahahahahha. Mas achei chato e nao concordei com a ideologia, assim como vc. E achei o personagem da Julia caricato demais. Mais uma nova versao da mulher independente e decidida que ela faz em todo filme dela. So gostei da Emily Blunt descendo as escadas.

Anônimo disse...

“Hitler era comunista, você não sabia?”

Não era, mas o partido dele era autodenominado socialista e foi aliado efetivo de Stalin de 1939 até 1941: http://en.wikipedia.org/wiki/Hitler-Stalin_Pact