domingo, 11 de agosto de 2019

PAIS E FILHAS

Em homenagem ao Dia dos Pais, publico hoje o belo e comovente relato de Giovana Gonçalves Pereira, demógrafa e cientista social.

Escrever esse texto tem uma alta carga emocional. Não é novidade para ninguém do meu ciclo de amizades próximas a importância do meu pai em minha vida. E é uma importância constitutiva: não dá para falar de mim sem falar do meu pai. Eu me recusei e continuo me recusando a digitar no Google: Pais e filhas. Eu sei que o outro extremo existe e ele é nojento e repugnante. Por isso, esse texto é antes de mais nada um  Manifesto à Paternidade, porque meu pai está na resistência. É claro que como ele existem muitos homens que não fogem do desafio de criar filhos. Não estou batendo palmas por ele fazer o mínimo. Não, isso ele vai além.
Até porque estar na  resistência  também envolve uma série de conflitos familiares. A maioria dos parentes não o entendem.  Vejam bem: Quando um pai assume mais do que o papel que a sociedade o incumbiu e quer de fato ser um pai, existe uma tensão. Sim, porque não era esse o papel esperado. Não é raro lermos relatos, ouvirmos histórias sobre como a presença ou ausência do pai pode ocasionar uma série de traumas às crianças. Há até mesmo a justificativa dessa “presença-ausência” dada por teorias mirabolantes do  século 19 a.C.  dizendo que a conexão maior e soberana é de mães com seus filhos, o que acaba condicionando a mulher a ver a maternidade como destino já traçado, e se sentir mal caso isso não faça parte dos seus planos. Ainda bem que existe o feminismo, ainda bem que existe a desconstrução, ainda bem que quando a gente está disposta, a gente aprende o que é liberdade.
Mas, retomando: meu pai, como todo ser humano criado e condicionado à história social de seu grupo, tem e já teve sim atitudes machistas. Não estou isentando ninguém. Até porque não foi com Beauvoir ou Bourdieu que aprendi sobre dominação masculina, não foi com Marx que aprendi sobre injustiça social. Quando eu tinha por volta de 10 anos, uma das primeiras grandes lições que meu pai me ensinou foi: "Eu não te criei para você ser submissa e te peço que nunca se cale diante de uma injustiça”. Aí que eu me percebi tanto como alguém que estaria sempre à espreita por relações de dominação (o que não me protegeu de muitas coisas, mas me deu força para sair delas), como um ser social que faz parte de um mundo além de sua própria casa (o que eu só entendi mais de uma década depois).
Lições de vida do Seu Osmar. Anota que é sucesso.
Em relação as minhas escolhas profissionais é inegável a presença do meu pai (diretamente e indiretamente). Aos 6 anos eu estava sendo alfabetizada, e um dos meus maiores traumas era dedilhar o G, justo eu que tenho dois contando o sobrenome. Meu pai, naquela época, trabalhava no turno da noite, chegando em casa pela manhã. Minha aula era no período da tarde, e minha mãe trabalhava durante o dia também, muitas vezes além do expediente, e me ensinou desde pequena minha primeira lição feminista de não depender (emocional e financeiramente) de homem nenhum, mas isso fica pra outro post. 
Resumindo: quem se encarregava de sentar a bunda na cadeira não era só a minha mãe, mas também meu pai. Não à toa que minhas lembranças da vida acadêmica possuem bem nítidas a figura paterna. Era ele que estava lá, pelas manhãs, sentado com seu 1.90 m na minha mesa de girafinhas, enquanto eu chorava por não conseguir desenhar decentemente um G. Algo parecido se seguiu pela faculdade e pós-graduação -- ele continua sendo o leitor e revisor assíduo de toda a minha produção, foi no meu primeiro congresso e deu a cara a tapa junto comigo, me levou para fazer pesquisa de campo, estava lá em cada vestibular que prestei e em cada processo seletivo, pronto pra dar o colo se necessário e o abraço da vitória quando preciso. 
Recado do seu Osmar
(clique para ampliar)
Meu pai me ensinou que  a escrita e a operacionalização são sim solitárias, mas o caminho é sempre acompanhado. E mais importante: que eu faço meu próprio caminho quando tenho pra onde e pra quem voltar.  Aos 17 anos ainda perdida de sair de casa pela primeira vez, ele me deu meu objeto de desejo desde pequena: a bússola, levou escondida na bolsa e me disse:  “Para você sempre saber como voltar”.
O mesmo aconteceu com toda minha  trajetória de relações amorosas e afetivas. Aos 14 anos eu tinha um rolinho com um menino da minha sala, nada sério. A gente ficava eventualmente, até que em uma festa eu fiquei com outro cara. E me senti absurdamente mal, procurei colo, justamente onde eu saberia que a pessoa iria me dizer o que uma adolescente precisava ouvir, mas algo que levaria tempo para processar. Após contar tudo, me responsabilizar por ter ficado com outro, meu pai me disse: “Minha filha, um relacionamento de duas pessoas é sempre responsabilidade de duas pessoas.  Pelo que você me contou, esse menino aí nem te tratava tão bem assim, não é mesmo? Traição é trair seus próprios princípios”. Um tempo depois, eu voltei a me envolver com esse boy e ele terminou comigo. Eu sofri, chorei, me isolei até meu pai se cansar e dizer: “Filha, não vai ser a primeira, nem a última vez, a gente sobrevive. E digo mais:  quando a gente ama, a gente quer ver a pessoa feliz, independente como e com quem.” Daí que eu aprendi que amor não é egoísta, amor não é posse.
Um tempo depois, tive meu primeiro namorado e minha primeira relação sexual. Cheguei em casa e dei de cara com meu pai. A cena foi inesquecível: ele sentado na sala assistindo filme (porque desde sempre sofre com insônia), eu cheguei com aquela cara de quem tinha descoberto a América. Ele me olhou de baixo pra cima e me disse:
- Tá tudo bem, Gi?
- Tá sim, pai.
- Tá mesmo? Sua blusa tá do avesso.
(Constrangimento)
- É pai, aconteceu.
- Foi bom?
- Foi engraçado, mas foi bacana.
- Filha, só uma coisa: nunca se esqueça que você deve ser sempre a sua prioridade.
Com o avançar disso, eu comecei a recuperar uma memória até então escondida dentro de mim que aconteceu quando eu tinha por volta de 5 anos de idade. Eu tinha sido abusada por um amigo próximo pouca coisa mais velho que eu. Precisava falar sobre isso. Sentei com meus pais e contei. O que meu pai me disse:  “A culpa não foi sua, e que isso não passe pela sua cabeça. O que a gente pode fazer, agora, por você?”. Ter a liberdade de contar sobre isso e perceber que a revolta e raiva do meu pai eram direcionadas tanto a um terceiro quanto por sua impotência de não ter percebido antes tornaram todo o processo mais fácil. Este, o que cometeu o abuso, já não faz mais parte do meu ciclo de relações. E meu pai, bom, ele foi um dos principais amigos e pilares para que isso acontecesse, desde mudar de assunto quando parentes falavam seu nome, até mesmo de evitar minha obrigação moral de ir a determinados eventos sociais. Ele me compreendeu, ele entendeu, ele só deu colo e nunca mais voltou ao assunto.
Outra lição foi quando, no auge do meu antigo namoro, comecei a compartilhar de crises de ciúmes –- normais e compreensíveis para o momento -– e decidi jogar fora todas as cartas e coisas que pertenciam ao meu rolo lá da adolescência. Foi uma das poucas vezes que vi o olhar de decepção do meu pai. Vendo o que eu estava fazendo, ele me questionou:  “Por que você tá fazendo isso? É a sua história! A gente não pode abdicar da nossa história por nada, nem por ninguém!". Eu respondi que não tinha sentido ter tudo aquilo, ao que ele me respondeu: “Aham, e eu não te criei pra ver esse tipo de coisa não!”. Recolhi todos os pedaços rasgados e voltei pra minha caixa de memórias.  Hoje eu sei que ninguém pode ser soberano no meu passado, a não ser eu mesma.  
Seu Osmar na livraria
Quando me encantei por uma mulher pela primeira vez foi um momento de muita confusão. Decidi ligar pro meu pai e conversar. Após vários rodeios contei que havia trocado olhares que não eram somente de simpatia. Ele me disse pelo telefone: “Filha, as mulheres são mesmo encantadoras”. Depois disso, comecei a me envolver emocionalmente e sexualmente com mulheres. Ele então, por um momento, pediu que eu desse um tempo, ele precisava processar a informação. Após alguns meses, contei que estava namorando uma mulher. A reação dele foi se envolver mais politicamente nas pautas LGBT+, ler sobre o assunto, trocar ideia com mulheres e homens LGBT+s, inclusive do Coletivo Democracia Corinthiana (CDC), e inclusive me mandar depoimentos e contar sobre seus novos conhecimentos. 
Ele sempre tratou todos meus companheiros muito bem, mas confesso que nunca vi meu pai abraçar alguém tão verdadeiramente como abraça minha namorada. Sei dos meus privilégios nesse campo, mas precisamos começar de algum lugar a revolucionar os afetos, certo? 
Meu pai nunca se intrometeu diretamente em meus relacionamentos, ele sempre foi mais de ouvir do que de falar, nunca o usei de escudo. Meu pai me ensinou que eu preciso lidar com meus próprios monstros e que eles nunca são tão grandes quanto parecem. Meu pai me ensinou que  família a gente não abandona, porque família é quem você está no dia a dia, quem te segura e quem purga junto com você quando necessário.  E para defender os nossos, a gente deve espernear, gritar, esmurrar paredes se necessário. Porque, diante de injustiça a gente nunca se cala. Não à toa, ele me diz que o dia que falhou como pai foi quando prometeu ao meu irmão mais novo que ele sairia do hospital, que o levaria para casa. Não conseguiu, não conseguimos, ninguém conseguiu. E ele me disse que falhou, chorou, pediu colo. Homem também chora e sofre. E eu só conseguia dizer que ele não havia falhado. 
Hugo no show da Luna
Alguns meses antes, meus pais não mediram esforços para levar o Hugo em um show de uma cantora da Disney que ele amava, a Luna. Eles se viraram em trinta para pagar, organizar a logística, e o Hugo poder ficar em frente ao espetáculo. Esse foi o dia mais feliz da minha vida, esse foi o nosso dia de mostrar como família pra nós mesmos que a felicidade é mesmo uma arma quente, já diria Belchior. E nosso suporte vem todos dos afetos diários. 
E tem tantas outras lições pra aprendermos sobre a vida e isso ele também me ensinou: pai não sabe de tudo, pai também perde o controle, pai também se cansa da própria vida, pai e mãe nenhum é santo, mas pai que é pai se responsabiliza pelos filhos e por suas ações até o último dia da existência dos filhos. 
“Não tem essa de dizer que fez tudo o que podia, não foi o necessário. Quando a gente coloca filho no mundo, a gente tem que ser responsável socialmente por ele.”
Agradeço a oportunidade de compartilhar essa história com a Lola. Foi meu pai que apresentou seu blog lá no início da década de 2010. Perguntei a ele se podia mandar este texto para você e a resposta foi: Essa é a Lola que escreve, certo? 

3 comentários:

Denise disse...

Que lindo relato! Abençoados aqueles que tem pais assim. :)

Dacruz Neto disse...

dicas valiosas de como criar melhor nossos filhxs. grato por compartilhar, lola.

Amanda disse...

Que lindo relato. Se todos tivessem um pai assim, o mundo seria muito diferente!