Eu sabia que tinha que publicar alguma coisa sobre o final da sexta temporada da série Game of Thrones.
Mas também sabia que não estou apta para tal tarefa. Gosto da série, embora não guarde o nome de nenhum personagem. Como achei que os dois últimos episódios foram de arrepiar (inclusive feministicamente falando), pedi pras minhas queridas leitoras escreverem sobre a série.
Duas me mandaram excelentes textos. Um eu vou publicar hoje, o outro daqui a uns dias. Tem spoilers, lógico.
Este é de autoria de Ana Carolina Nicolau, criadora e crítica do Take 148. Super obrigada, Ana!
Um ano se passou desde que Sansa Stark foi estuprada pelo marido na quinta temporada de Game of Thrones. O sádico Ramsay Bolton a violenta em sua noite de núpcias, enquanto Theon, psicologicamente destruído, é forçado a assistir o ato. A cena tinha quase tudo de errado, a começar pelo fato de que o personagem mais importante presente no quarto era Theon.
Sansa não era somente roubada de seu corpo, de sua identidade e sua mente; ela estava era roubada de seu protagonismo, se tornando uma coadjuvante em sua própria narrativa. Aquele momento era todo sobre Theon: o tipo de maldade a que Ramsay submetia Theon e como era sofrido para Theon ver alguém, que considerava de sua família, ser machucada. Sansa era só o instrumento de tortura da vez.
O estupro de Sansa deixou transparente algo dito ao longo de seus cinco anos: Game of Thrones tinha um problema com mulheres. A violência era sempre um espetáculo, a prostituição vendida como diversão e os inúmeros peitos eram recebidos com empolgação pela audiência majoritariamente masculina da HBO.
O retrato da mulher como sexo frágil sempre foi justificado pelo argumento de que “na época era assim” -- o que não faz nenhum sentido quando estamos falando de uma série ficcional passada em um universo ficcional com dragões, gente voltando da morte, e viagens no tempo e, mais do que tudo, um universo com poder de reinventar, recontar e recriar todos os aspectos das sociedades que o inspiravam.
Mas algo aconteceu na estreia da sexta temporada que marcava o início da mudança de tom da série. Talvez porque os produtores David Benioff e D. B. Weiss finalmente ouviram as críticas, talvez porque era a primeira vez que a série navegava sem âncora da obra original de George R. R. Martin, talvez porque o ano seria cheio de mimos aos fãs, e isso era o que os fãs queriam.
Nesse episódio, intitulado "The Red Woman", Ellaria Sand enfiou uma adaga no coração de Doran Martell, tomando à força o trono de Dorne. Isso sozinho já significava que as mulheres estavam prontas para atacar e retomar o protagonismo que foi negado a elas nas temporadas anteriores. Mas as ações de Ellaria ainda foram acompanhadas por Brienne destroçando um grupo de capangas para salvar Sansa, Daenerys (fluente em dothraki) recusando-se a casar servir de objeto sexual para Khal Moro e Melisandre -- uma personagem sempre fetichizada -- revelando-se uma senhora com centenas de anos, com um corpo tão velho quanto nu, curvado, enrugado, uma imagem do envelhecimento que a série nunca havia se arriscado antes.
Desse ponto em diante, todas as principais personagens femininas tomaram alguma decisão imprescindível, sem a qual a história não poderia seguir.
Depois de ter passado a temporada inteira recolhida, Cersei libera sua enorme sede de vingança -- calmamente arquitetada -- e explode metade de Porto Real, incluindo seu agressor, o Alto Pardal. Tudo para sentar-se no Trono de Ferro, não por ligações de sangue, mas pelo direito adquirido à força.
As escolhas de Cersei dificilmente seriam consideradas exemplos de caráter, mas são exemplos de coragem e fazem dela um dos personagens mais eloquentes da série. Mesmo na competição entre os vilões, dos quais se destacam seu próprio filho Joffrey e Ramsay Bolton, Cersei é a mais bem construída. Depois de séculos de história de Westeros dominados por machos, é gritante que a única pessoa que teve coragem de colocar o mundo abaixo fosse uma mulher.
Mesmo que Daenerys tenha mantido um posto de liderança consistentemente durante a série, ela também foi estuprada por seu marido no primeiro dia de seu casamento e julgada várias vezes como uma governante incompetente pelo simples fato de ser mulher.
Embora algumas dessas vezes os juízes estivessem certos sobre a competência de Daenerys, principalmente porque sua jornada é uma pela conquista da experiência antes de partir para Westeros, quando a Mãe dos Dragões foi sequestrada novamente pelos Dothraki, ela não era mais a inocente khaleesi da primeira temporada. Não bastava mais ser simplesmente resgatada -- muito menos por dois caras --, era necessário usar seu apetite por fogo para criar um dos momentos mais emblemáticos da série, quando Daenerys transforma os chefes Dothrakis em cinzas e faz o povo jurar lealdade a ela.
E então há Sansa, que talvez tenha sido o ponto de partida de tudo isso, recobrando parte de sua autoconfiança e fazendo de seu agressor comida para cachorro.
Com o enredo de Sansa durante esse ano, Game of Thrones finalmente abordou a violência de forma pertinente, com alguns dos diálogos mais poderosos do roteiro. Quando Ramsay estava prestes a ser comido pelos cachorros, alguns episódios depois de Sansa explicar a Mindinho como ela “ainda podia sentir Ramsay em cada parte de seu corpo”, ele ainda é selvagem o suficiente para anunciar o trágico destino de Sansa: “Você não pode me matar, eu sou parte de você agora”.
Mas até as palavras perversas de Ramsay se tornam mais fáceis de engolir quando percebemos que, mesmo eternamente traumatizada e permanentemente marcada por essa experiência, Sansa é forte o suficiente para reconstruir sua vida e se tornar uma herdeira respeitada do sobrenome Stark, e uma importante peça no tabuleiro político de Winterfell.
Jon Snow foi coroado Rei do Norte, mas só porque Sansa está sentada ao seu lado, depois de ter salvado sua vida na guerra contra Ramsay por causa de suas próprias alianças. E Jon não é só uma criação de Sansa, mas ele não seria mais do que um corpo se não fosse Melisandre para trazê-lo de volta à vida, e não seria mais que um bastardo ignorado se não fosse Lyanna Mormont, a comandante de 10 anos que convence uma sala cheia de homens a confiar o reino a ele.
E a trajetória das mulheres nessa temporada não é só sobre a retomada do poder político, mas também o poder de ser dona de sua própria vontade. Podemos reclamar de como a história de Arya foi desenvolvida em círculos, mas os problemas de narrativa não mudam o fato de que ela é uma adolescente completamente confiante, orgulhosa de sua identidade, que saiu em busca de vingança por sua família -- um papel comumente reservado aos homens -- sabendo manejar uma espada como poucos nos sete reinos.
E Yara Greyjoy, que nunca foi uma personagem amável, surpreendeu a todos ao reivindicar o posto de Rainha das Ilhas de Ferro, ao se aliar com Daenerys para tal, e ainda se assumir lésbica, em pleno controle de seus desejos sexuais, sem qualquer receio de que alguém pudesse questioná-la (é melhor não cruzar seu caminho).
Até a pobre Margaery Tyrell, antes de ser explodida por Cersei, dá um jeito de manipular o Alto Pardal para que ela e seu irmão Loras possam escapar de suas penas. Margaery ainda se mostra muito mais esperta que ele ao perceber, antes de todo mundo, que Cersei planeja não deixar o julgamento acontecer, mesmo que isso não fosse o suficiente para salvar sua vida. E honrando o nome da família, a avó de Margaery, Olenna, agora a única sobrevivente do clã, declara apoio a Daenerys para colocar os Tyrell de volta no mapa do poder.
A sexta temporada de Game of Thrones criou espaço para as mulheres brilharem, e elas fizeram isso sem pedir permissão ou desculpas, o que não significa que elas sejam heroínas perfeitas.
São seres humanos tridimensionais, complicados, cheios de falhas, que erram e tomam decisões ruins. Mas, mais importante, finalmente elas parecem reais. E pelos índices recordistas de audiência desse ano, ninguém pode dizer que histórias protagonizadas por mulheres não dão dinheiro, não atraem público ou não... sei lá... se tornam uma das maiores séries da história da televisão. Afinal, estamos dizendo isso faz só um século, quem poderia imaginar?