segunda-feira, 6 de novembro de 2017

EU, FEMINISTA, SÓ VI A MISOGINIA DE 1984 AGORA

Tive de reler o romance porque um aluno de mestrado está dando duas (excelentes) aulas sobre 1984 (objeto de análise da sua dissertação) numa disciplina minha sobre adaptação fílmica. 
Não sei quando li o livro antes, se foi na minha adolescência (em torno de 1984!) ou aos 20 anos, mas o que me chamou a atenção, relendo-o agora, três décadas depois, é como ele é misógino. (Sei que quase reli o romance novamente em 2002, quando o publicitário Washington Olivetto foi sequestrado durante dois meses e deram 1984 pra ele ler no cativeiro. E eu pensei, na época: existe livro mais deprê e opressivo pra se ler quando está preso do que esse?).
Realmente, o que me assustou mais hoje (além das passagens de tortura, que são o que há de mais marcante), mais do que o regime ditatorial do Grande Irmão, foi a misoginia do protagonista, que diz explicitamente odiar mulheres. Bom, só porque um personagem de um livro ou filme é machista ou racista ou homofóbico, isso não torna a obra necessariamente machista ou racista ou homofóbica. Pode ser uma crítica aos preconceitos, certo? 
Tipo o conto “Meninas em Guerra”, do nigeriano Chinua Achebe. O protagonista Reginald tem uma péssima opinião das mulheres, acha-as aproveitadoras, acha ridícula a vontade delas de participar da guerra de independência do país -– Biafra, no caso –-, acha que elas só pensam em si e são promíscuas e condenáveis. Seu ódio a elas apenas é atenuado pela sua decisão de “salvar” Glagys, a moça que lhe inspira todos esses pensamentos (mulher, fuja do cara que quer te salvar!). Só que, no final, Gladys prova que o protagonista misógino estava totalmente errado. E o último trecho, de Reginald ajoelhado, desesperado, gritando, mostra que ele aprendeu a lição.
A capa mais pulp fiction
 de 1984 já feita
Mas em 1984 (escrito em 1948, e publicado no ano seguinte), durante mais de um terço do livro, Winston é praticamente o único personagem que temos. Somos levados a nos identificar com ele, a torcer para que ele se rebele contra as opressões. Porém, como se identificar com um cara que diz, no primeiro encontro com Julia, que suas impressões iniciais sobre ela eram “Odiava te ver. Queria te estuprar e te matar depois. Duas semanas atrás eu pensei seriamente em esmagar sua cabeça com um paralelepípedo”? (E ela ri! Moça, se um homem te diz isso num primeiro encontro, mesmo que seja pra demonstrar sobre como mudou de opinião a seu respeito, bom, torço para que não haja um segundo encontro).
Suzanna Hamilton como Julia
no filme 1984 de Michael Radford,
lançado em 1984
Antes de conhecê-la intimamente, o protagonista tem “alucinações vívidas e belas” sobre Julia. A narração nos conta as fantasias de Winston: “Ele iria açoitá-la até a morte com um cassetete de borracha. Ele a amarraria nua numa estaca e a encheria de flechas como São Sebastião. Ele a estupraria e a cortaria no momento do orgasmo. Ele notou por que ele a odiava. Ele a odiava porque ela era jovem e bonita e assexuada, porque ele queria ir pra cama com ela e nunca iria, porque ao redor da sua doce e maleável cintura, que parecia pedir para que você a agarrasse com seu braço, havia apenas uma faixa escarlate, um odioso e agressivo símbolo de castidade”.
Eis o nosso protagonista, nosso projeto de herói.
Fui digitar “misogyny in Orwell's 1984” (misoginia no 1984 de Orwell), pensando, com muita ingenuidade, que fosse uma impressão só minha (“Vocês veem machismo em tudo!”), mas não, tá cheio de coisa. E o problema não é só com Winston, mas com Orwell. As descrições são mais ou menos assim: “Era a Sra. Parsons, a mulher do vizinho no mesmo andar”. Quer dizer, a Sra. Parsons é vizinha de Winston, mas o narrador a vê apenas como “a mulher do vizinho” (ela só existe em relação a um homem).
Sei o que você vai dizer. Mas dizer que o romance é um “produto de seu tempo” não é uma boa justificativa. Segundo Noah Berlatsky, que vê Julia como o estereótipo da Manic Pixie Dream Girl, o maravilhoso Langston Hughes também era um “produto de seu tempo”, e ele escrevia contra o racismo. As protagonistas de Charles Dickens eram “doces demais e insossas”, mas as de George Eliot não eram. Quer dizer, Theodore Dreiser também era um “produto de seu tempo”, e ele escreveu o incrível Sister Carrie em 1900, meio século antes de Orwell.
A ideia deste post começou
com uns tuítes
(obrigada a todas as
envolvidxs -- são muitos!)
Segundo Berlatsky, a defesa do “é um produto de seu tempo” implica que somos moralmente muito mais iluminados hoje que antigamente, que preconceitos são coisa do passado, e que as melhorias sociais ocorrem progressiva e naturalmente (uma leitora, quando comentei no Twitter sobre não ter reparado na misoginia de 1984 há três décadas, comentou num tuíte: “Hoje em dia somos muito mais esclarecidas do que antigamente”, o que me lembrou da sentença mais irônica do fantástico conto “The Life You Save May be Your Own”, traduzido pelo meu orientador de doutorado José Roberto O'Shea como “Salve sua própria vida”. Um vagabundo diz que tudo bem dormir dentro de um carro, já que os monges de antigamente dormiam nos seus caixões, e aí uma velhinha caipira e analfabeta responde: “Eles não eram tão avançados como a gente”).
Contexto histórico é importante, lógico. Berlatsky dá um ótimo exemplo: “Seria ridículo dispensar Jane Austen como sexista porque suas personagens mulheres procuram homens para conseguir segurança financeira em vez de aprenderem a se tornar presidentas de empresas. Mas um contexto histórico importante é que desigualdades de raça, gênero e classe (para citar apenas três) têm estado aqui durante muito tempo, e continuam aqui. Quando os criadores tocam nesses temas, bem ou mal, eles estão falando conosco. É mais respeitoso argumentar com eles do que fingir que evoluímos para além da necessidade de ouvi-los”.
Contexto histórico: camiseta bem
misógina referente a 1984 à venda
no século 21: "Faça com Julia"
Para o autor, “Em vez de defender [escritores antigos que foram preconceituosos], o argumento do 'produto de seu tempo' ameaça torná-los irrelevantes. Se, afinal, o passado era tão diferente do presente, se sabemos muito mais hoje do que então, se somos moralmente tão superiores, o que esses escritores podem nos ensinar? Se progredimos tanto além de Orwell na nossa compreensão de igualdade e liberdade e justiça e humanidade, então por que deveríamos ler 1984, que pretende discutir temas como igualdade e liberdade e justiça e humanidade?”
A resposta é que “ainda devemos ler Orwell não apesar do sexismo, mas em parte por causa dele. […] Prestar atenção no sexismo de Orwell é uma forma de prestar atenção no nosso sexismo; faz 1984 mais relevante, não menos”.
Parece que Orwell na sua vida pessoal tinha de fato uma quedinha pela misoginia, e isso evidentemente transparece em sua obra. O escritor britânico (1903-1950) que se definia como “socialista democrático”, costumava dizer, por exemplo: “Uma das provas mais contundentes da genialidade de Joseph Conrad é que as mulheres não gostam de seus livros”. Sem falar que Orwell nunca pronunciou o termo “feminista” sem que fosse em tom jocoso
Em A Vitória de Orwell, livro de Christopher Hitchens, há um capítulo chamado "Orwell e as feministas: dificuldades com as mulheres". Hitchens afirma que não só em 1984, mas em boa parte de sua obra, Orwell descreve as mulheres como incapazes e tediosas, boas apenas para se fazer sexo (e Orwell se ressente da necessidade de ter mulheres). Citando Beddoe, Hitchens concorda que as mulheres nos romances de Orwell são "megeras ou simplórias, vamps ou desmazeladas, ou então (exceto a Julia de 1984) cobiçosas e conformistas”. Esse desdém contra o feminino, lembra Hitchens, atinge até Mimosa, a "égua branca, vaidosa e fútil" da Revolução dos Bichos, que se vende por fitas e torrões de açúcar. 
Voltando a 1984, eu gosto bastante de Julia. Ela é um sopro de ar quando aparece no livro, depois da perspectiva depressiva e derrotista de Winston. Ela é sexualmente independente, é ela quem toma a iniciativa, ela que sabe como burlar o sistema para manter seus encontros sexuais. Imagina quantos homens ela deve ter seduzido ao simplesmente lhes passar um bilhetinho escrito “Eu te amo” (homens são tão fáceis!). 
Winston vê Julia como depravada, e diz a ela: “Quanto mais homens você teve, mais eu te amo. Você entende isso? Odeio pureza, odeio bondade! Não quero que virtude exista em qualquer lugar. Quero que todo mundo seja corrupto até os ossos”. Para o protagonista, Julia precisa sempre servir a um propósito.
Peça teatral
Não sabemos muito sobre Julia, já que a narração, mesmo em terceira pessoa, se centra apenas no que Winston pensa (o que pode ser interessante num sentido: talvez Julia não esteja transando exclusivamente com Winston naquele período?). O narrador não lê os pensamentos de Julia. Sabemos, através do protagonista, que Julia não está interessada em derrubar o sistema, apesar de detestá-lo. Sua rebelião é só para satisfazer seus desejos sexuais. 
Como Winston diz pra ela, “Você só é rebelde da cintura para baixo!” E daí?, você pode perguntar. A revolução sexual não deixa de ser uma revolução, pô!
Dependendo da sua visão, você pode achar que Julia age muito mais que Winston -- que pensa muito, odeia muito, mas faz pouco. Mas não é assim que o romance a vê, e sim como fútil e traidora (quanto tempo ela demorou para "trair" Winston durante a tortura? Só sabemos a versão de O'Brien).
Adoro a parte em que Winston e Julia se encontram com a "resistência", liderada por O'Brien. Até um momento atrás eles nem tinham certeza se existia uma resistência, mas, ao conversar com O'Brien, respondem a uma série de perguntas ridículas (eu estaria fora dessa revolução, sinto muito). Aliás, não são os dois que respondem, é só Winston, que fala por ele e por Julia, ou pelo menos é isso que ele e O'Brien acreditam. 
O'Brien quer saber se eles dariam suas vidas pela resistência, se matariam, se cometeriam atos de sabotagem que poderiam causar a morte de dezenas de inocentes, se encorajariam a prostituição, se disseminariam doenças venéreas, se jogariam ácido no rosto de uma criança, se se suicidariam... E pra tudo Winston responde "Sim", sem pestanejar. Mas quando O'Brien pergunta se eles estariam prontos para se separarem e nunca mais se verem de novo, Julia interrompe e grita "Não!" Winston demora pra responder, e não sabe qual palavra sairá da sua boca. Finalmente ele diz não. Quem ama mais nesse relacionamento?
E olha que bem antes dessa parte, Julia já havia conquistado o coração de Winston ao roubar cosméticos e se maquiar para ele. Ao vê-la maquiada, ele sente que ela ficou muito mais bonita e, “acima de tudo, mais feminina”. E ela diz a ele: “Você sabe o que mais eu vou fazer? Vou conseguir um vestido de uma mulher de verdade de algum lugar e usá-lo em vez dessa porcaria de calça. Vou usar meias de seda e sapatos de salto alto! Neste quarto, eu serei uma mulher, não uma camarada do Partido”.
Ai, ai, Julia... Tudo bem você querer usar vestido e se pintar, mas fazer isso só por um homem? Achar que só mulheres que são “femininas” são de verdade? Esta talvez seja a maior qualidade que Winston (e Orwell) concede a Julia -- ela querer ser feminina e vaidosa para agradar os homens.
Comercial "Repressão" Boticário, 2008
Segundo o carinha de “Seu livro preferido fede” (amei o título, embora não concorde que 1984 sucks), essa presunção de que a maquiagem faz falta no mundo (me lembrou o comercial do Boticário, certamente inspirado em 1984), aliada à certeza de Winston de que a vida era melhor antes, faz gerar uma tese para Orwell:
“Precisamos do capitalismo para fazer o mundo melhor porque o capitalismo permite às mulheres que pintem seus rostos a ponto de não se tornarem reconhecíveis -- e é isso o que as torna realmente desejáveis. Na realidade, é isso que as torna mulheres de verdade”. 
No entanto, Margaret Atwood, que escreveu uma distopia tão boa e talvez ainda mais relevante pros dias atuais do que 1984 (em janeiro, 1984 foi o livro mais vendido na Amazon depois que uma conselheira de Trump utilizou a frase “fatos alternativos”, os conhecidos “fake news” do presidente que nem as piores distopias podiam imaginar, e que se parecem muito com o “newspeak” de Orwell), O Conto da Aia, ama Orwell. 
Ela leu 1984 na adolescência e se identificou com Winston e com seu desejo de manter um diário e escrever secretamente. Mas, quando começou a escrever O Conto da Aia, aos 44 anos, no ano real de 1984, Atwood já tinha reparado que a maioria das distopias haviam sido escritas por homens e mostravam o ponto de vista masculino. E então ela escreveu O Conto da Aia pensando em algo como "O Mundo segundo Julia"! 
Em The Orwell Mystique: A study in male ideology (A mística orwelliana: um estudo em ideologia masculina), a professora e feminista radical Daphne Patai foi uma das primeiras a apontar a misoginia do escritor. Ao observar uma obsessão com a masculinidade na obra dele, Patai pergunta: se a visão de Orwell sobre as mulheres era tão negativa, como ele podia ser um defensor da liberdade? Simples: liberdade pra quem, cara pálida?
Julia no seu momento "dois minutos
de ódio", numa versão teatral
Patai acha o estilo de escrita de Orwell manipulador e dominante. E ela escreveu isso há mais de trinta anos. Ou seja, quando eu li 1984 pela primeira vez, e não me choquei com a misoginia, já tinha feminista falando nisso. E o pior: eu já era feminista! Como deixei de ver o que estava tão nítido diante dos meus olhos? Eu mudei? 1984 mudou? O mundo mudou? Todas as anteriores?

domingo, 5 de novembro de 2017

UMA LONGA ESPERA

Boa sorte a todas as pessoas fazendo o Enem hoje! Apesar de todos os retrocessos, vamos continuar lotando as universidades públicas de gente que ouviu a vida toda que lá não é o seu lugar. 
Vou aproveitar este post para mais uma vez tentar sortear o livro maravilhoso da Rebecca Solnit, Os Homens Explicam Tudo para Mim. A Karen ganhou o último sorteio, mas não me enviou email com seu endereço para que eu possa mandar o livro pra ela. Portanto, vou sortear outra pessoa.
Eu havia esquecido um nome na lista, e a pessoa me alertou. 
Incluí o nome, e a lista de participantes ficou com 35 pessoa (veja aqui). Fui ao Random, que me deu o número 15. 
É a Aiaiai, leitora antiga aqui do blog! Ueba, agora vai! Finalmente um sorteio que deu certo!
Já já anuncio o próximo sorteio. Agora me animei!

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O MACHISMO NÃO POUPA AS ANTIFEMINISTAS

Existem mulheres machistas sim. Anti-feministas, validadoras do machismo, moças que buscam acima de tudo a aprovação masculina. Elas interiorizaram que mulheres são inferiores, que mulher não presta, que mulher é um bicho traiçoeiro mesmo, e querem provar para homens misóginos que obviamente também acreditam nisso que elas são diferentes, que elas sim são decentes e dignas de respeito. 
Como eu já disse algumas vezes, ser anti-feminista não salva mulher alguma de ser alvo do machismo. Para os misóginos, as mulheres machistas são sempre, acima de tudo, vadias. Porque são mulheres. Se bem que é muito comum um misógino se derreter e se apaixonar perdidamente por qualquer mulher que lhe dê atenção, mas isso é outra história.
É terrível que existam mulheres que sejam contra mulheres, mas que las hay, las hay. Vou ilustrar um pouquinho. Eu sequer conhecia a existência dessa mulher, fiquei sabendo através do romance de Sinclair Lewis, It Can't Happen Here. Na primeira metade do século 20, muito antes de Trump e seus trumpminions, já havia quem gritasse "América primeiro!" Uma dessas pessoas se chamava Elizabeth Dilling, intitulada por um jornal nazista de "a Fuhrer fêmea". Dilling odiava negros, comunistas, e judeus. E, pra piorar, ela era contra as mulheres votarem ou participarem da vida política. Como exercer sororidade com uma mulher dessas?
Cartum de 1907 satiriza
mulheres que entregaram
petição contra o sufrágio
feminino: "Salvem-nos de
nós mesmas!"
Não que Dilling fosse a única mulher contra as mulheres na política. Longe disso. No início do século passado, enquanto as feministas e socialistas lutavam por igualdade de gênero e pelo direito ao voto universal, havia mulheres da elite lutando contra. A Associação Nacional Contra o Sufrágio Feminino, por exemplo, data de 1911, e era liderada por "senhoras da sociedade". Ainda hoje há mulheres reaças que pedem, em tudo quanto é eleição, que o voto feminino seja revogado porque mulheres costumam cobrar uma participação maior do Estado (como exigir, por exemplo, creches públicas e gratuitas. Malditas comunas!). A escritora Ann Coulter é uma dessas. 
Sei que é difícil acreditar, mas há mulheres que se detestam tanto que estão dispostas a tudo para fazer parte de grupos machistas. Sério: quanto você tem que se odiar para querer ser aceita por quem te odeia? A quadrilha misógina que me ataca há anos tem sempre duas ou três garotas implorando aprovação. Uma delas começou quando ainda era menor de idade. Neonazista e interessada em pedofilia, ela logo se identificou com o fórum. 
Um resumo da lista de coisas que ela realizou na tentativa desesperada de ser aceita: mandou inúmeros nudes e vídeos pros mascus (num deles, ela enfiava uma cruz na vagina; todas as imagens foram amplamente divulgadas por eles); gravou um vídeo dizendo que havia sido estuprada por um deles -- e gostado; gravou áudio dizendo que havia sido estuprada por um desafeto deles -- e não gostado; fez vídeo dizendo ser minha filha.
Carta de suicídio fake
Em janeiro, ela estava sendo tão perseguida por mascus que simulou o próprio suicídio, com direito à carta de despedida e tudo. Não colou por muito tempo. Ela chegou a pedir ajuda a feministas para denunciar os mascus. Uma professora (também perseguida por mascus) trocou inúmeras mensagens com ela e se ofereceu a pagar-lhe um advogado. A gente enviou o nome e telefone de um agente da Abin que talvez pudesse auxiliá-la. O que a menina fez? Passou tudo pra quadrilha. Foi recompensada: atualmente é moderadora de um chan misógino.
Não desejo nada de mal para essa garota, é óbvio. Torço para que ela sobreviva e faça terapia e amadureça, antes que seja tarde demais (porque creio que está correndo risco quem entra num chan misógino e escreve "Sei que vocês me odeiam, mas estou em Curitiba e não tenho onde passar a noite. Alguém que promete não me matar pode me ceder um quarto?"). Mas minha sororidade com uma moça com tanta vontade de se autodestruir (levando outras mulheres junto) se esgotou faz meses.
Eu não gosto do termo biscoiteira de macho, que é como algumas feministas apelidam mulheres que querem ganhar (simbolicamente falando) aprovação dos homens. Mas todas nós conhecemos essas mulheres. Se bobear, algumas de nós já fomos essas mulheres, antes do feminismo nos libertar.
É muito difícil, eu bem sei, exercer sororidade com quem nos boicota a toda hora e com quem faz alianças com nossos inimigos (que não são os homens, mas os homens misóginos). E mesmo assim eu tento. Quem sabe um dia essas mulheres machistas consigam se orgulhar de serem mulheres? E ainda melhor: mulheres livres?

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O CASO DO PROFESSOR ASSEDIADOR SERIAL NA UFF

Fiquei impressionada ao ler esta excelente reportagem de Tatiana Oliveira para o site ImprenÇa sobre uma série de assédios sexuais ocorridos na Universidade Federal Fluminense, em Campos.
A matéria mostra o que a impunidade pode gerar: um professor que, ano após ano, assedia alunas (e algumas professoras). São vários relatos de estudantes que acabaram deixando a faculdade. Imagine um professor se tornar uma das causas da evasão universitária!
As primeiras denúncias contra o professor de Ciências Sociais (não citarei o nome dele aqui) têm quase três anos, mas já em agosto de 2012, segundo a matéria, foi instaurado um processo administrativo disciplinar para apurar uma denúncia de agressão e ameaça contra uma aluna. 
A moça, estudante de Serviço Social da UFF, teve um relacionamento de um ano com o professor, que não aceitou o fim do namoro. A aluna pediu medida protetiva de urgência. Parece que a transferência do professor para Campos também teve como motivação o fim do relacionamento com outra ex-aluna. 
Diante da demora da UFF em tomar alguma providência em relação às denúncias de 2014 pra cá, algumas alunas procuraram a Polícia Federal, onde foram bem recebidas. O inquérito da PF tem 52 páginas e depoimentos de 16 estudantes, duas professoras e dois professores. Segundo a matéria, as palavra "medo" é citada 24 vezes; "constrangimento", 20 vezes. As vítimas do professor seguem o mesmo perfil: jovens, solteiras, começando a vida acadêmica, vivendo pela primeira vez em outra cidade, longe da casa dos pais. 
Reproduzo do site alguns relatos colhidos pela PF contra o professor:
- Estudantes que relatam incansáveis mensagens de texto, algumas, inclusive, em que ele próprio reconhece estar causando incômodo e desconforto nas alunas. Elogios e críticas ao corpo das estudantes também eram frequentes. Uma das alunas cita um momento cujo professor teria dito que ela estava muito magra. “Ele disse que eu precisava ganhar corpo, enquanto, em outra ocasião, que eu havia engordado, e que por isso estava ‘no ponto’”.
- Estudantes que optaram por atrasar em um semestre a sua graduação, para não ter que cursar a disciplina de ciência política, de caráter obrigatório, cujo professor seria o professor.
- Estudante que pediu transferência para uma faculdade em outro estado, somente para não voltar a encontrá-lo em sala de aula.
- Estudante que, por conta da obsessão do professor, sofreu uma distorção de culpa e passou a mudar a maneira de se vestir nos dias de aula do acusado. Como ele não parou o assédio, a aluna optou por abandonar a disciplina, no ano de 2014.
- Estudante que tentou expor sua orientação homossexual em tentativa de afastar as abordagens do professor mas ele, no entanto, propôs um encontro a três, com a inclusão da namorada da aluna. Disse, ainda, que ela era ‘feminina demais para ser lésbica’ e que sua homossexualidade tinha a ver com o fato dela não ter ‘experimentado um homem de verdade, que soubesse tocá-la’.
- Estudante que desistiu de bolsa de estudos para projeto de extensão porque além do assédio em sala de aula, o professor sugeria reuniões de orientação em um hotel onde ele se hospedava, e no período da noite, após o encerramento das aulas.
- Estudantes que se sentiam vigiadas e cercadas pelos corredores e cantina da universidade, bares da cidade e portaria de suas residências.
- Estudantes que compartilhavam as suas tragédias particulares umas com as outras, entre situações de desconforto, constrangimento e medo.
- Estudantes que relatam piadas maliciosas e comentários sexistas e homofóbicos, além de olhares lascivos e observações sobre o vestuário das alunas em sala de aula, além de tirar fotografias das estudantes e fazer trocadilhos sexuais.
Além disso, uma professora pediu exoneração do cargo porque, quando estava sob o comando do professor, ele a assediou e, como ela não quis nada com ele, ele aumentou sua carga horária. 
O inquérito da PF concluiu que o professor praticou o crime de assédio sexual contra no mínimo oito mulheres identificadas. O delegado pediu a prisão do acusado, já que o tipo penal de assédio prevê detenção de um a dois anos. A juíza, entretanto, negou o pedido de prisão, pois entendeu que "não está configurada a seriedade de ameaça".
Ah sim, apesar de todas as evidências, o professor está processando três das moças que o acusam! (e, como você verá mais abaixo, o advogado dele se encarrega de ameaçar com processo quem divulga as denúncias). 
Foi apenas graças à pressão dxs estudantes, que fizeram protestos, palestras e mesas sobre assédio sexual, e boicotaram em massa as disciplinas ministradas pelo professor, que a UFF finalmente começou a agir. Um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), concluído em outubro de 2015, resultou numa suspensão de um mês para o professor, convertida em multa de 50% da sua remuneração. Em 2016 houve outro PAD (ainda não concluído!) por assédio moral, e uma suspensão de 60 dias. 
Outro processo administrativo foi instaurado apenas em maio deste ano. Agora no final de setembro, uma comissão pediu o indiciamento do professor, que teve dez dias para responder às acusações. O conteúdo é sigiloso. Agora o reitor da UFF está com a documentação e precisa decidir se exonera ou não o professor. 
Denúncias na BA
Eu, como professora universitária, sei como as coisas são lentas. A burocracia impera e, em vários casos, também o corporativismo. Somos concursados, temos estabilidade no emprego (o que é ótimo: já pensou se a cada novo governo os donos do poder despedissem todos os servidores públicos e contratassem seus amigos e familiares?). Por um lado, é bom que os processos administrativos sejam demorados, para que o professor acusado tenha amplo direito de defesa. Por outro lado, é detestável e injustificável essa letargia, ainda mais num caso com tantas denúncias. 
A gente sabe bem como, em inúmeros casos, os processos dão em pizza. Aliás, não são só os docentes que as universidades costumam não punir. Os discentes também. Lembra do caso do estudante de Medicina da USP acusado de três estupros? Ele foi suspenso, mas acabou se formando, apesar dos inúmeros protestos. Lembra do Rodeio de Gordas na Unesp de Araraquara em 2010? Se não fosse o Ministério Público, tudo que os três organizadores receberiam de punição da universidade seriam cinco dias de suspensão. 
A jornalista do ImprenÇa enviou perguntas ao professor da UFF. Seu advogado afirmou que seu cliente não falaria sobre o assunto. O advogado também tratou de escrever: "Posso assegurar que se [a jornalista] realmente teve acesso aos autos do inquérito e realmente pretende fazer alguma 'pauta' sobre aquilo, que não se trata de algo sério. Procure a razão do país estar nessa crise de valores morais na política? Escreva sobre a esquerda falida brasileira. Escreva sobre algo que mereça ser escrito e advirto: caso sejam divulgadas informações inverídicas e prejudiquem meu cliente, serão tomadas todas as medidas cabíveis, afinal de contas, a imprensa tem o dever de informar, mas tem o compromisso com a seriedade e verdade".
Campanha de alunas da UFMG
Num segundo email, o advogado ainda disse acreditar que a jornalista era "mais uma blogueira a ser utilizada para causar rebuliço". Mais uma! Alguém que escreve sobre denúncias estaria sendo usada para "causar rebuliço" e, portanto, merece ser processada. Soa bem familiar (já falei do professor que está pedindo R$ 300 mil de indenização contra mim?). 
Para terminar este post enorme, reproduzo a carta aberta das estudantes e sua advogada, Semírames Mendes Khattar, divulgada há um mês. Toda a força e sororidade para essas mulheres!

A violência quase imperceptível contra o corpo de alunas, o silêncio coletivo das universidades e a reduzida capacidade institucional de proteção de direitos fundamentais. Esse cenário parece estar bem longe, mas foi exatamente o que aconteceu na faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes, gerando prejuízos físicos e psíquicos para mais de vinte mulheres, entre alunas e professoras. 
No ano de 2014, o prof. de Ciência Política, J. H. O., com aparente sutileza, se utilizou da sua posição de autoridade de professor para sistematicamente, no período de dois anos,  abusar moralmente de suas alunas, provocando danos físicos e psíquicos que não são tão facilmente capturados pelas lentes do Direito ou até mesmo da Psicologia. As humilhações cotidianas em sala de aula e fora dela, que foram mascaradas pelo “romantismo”, iam desde mensagens de madrugada e final de semana a perseguições físicas e virtuais, as quais geraram medo e angústia entre todas. Todas as situações estão sendo investigadas pela Polícia Federal, e por isso, o movimento de não viver mais no silêncio se transforma num poder de transformação dessa triste e vexatória realidade.
Campanha de alunas da UFC
contra assédio
Houve abertura de processo administrativo disciplinar em 2016, após a denuncia na ouvidoria. Contudo, pela lentidão da UFF, da burocracia institucional e das artimanhas jurídicas do referido professor, até hoje não houve nenhuma sanção (nem mesmo verbal, advertência, suspensão) e  a permanência dessa situação vem sendo uma afronta a qualquer espírito de justiça e dignidade das alunas abusadas. Nenhuma mulher, nenhuma aluna que entrar em sala de aula, merece conviver com um professor que não se comporta com respeito e consideração para com elas.
Não é um apetite simplesmente de punição, mas para além disso. A exoneração do professor que não respeita o outro seria o mínimo de atitude para reverter o comportamento de quem se aproveita de sua posição para abusar suas alunas. É essa a medida que a UFF Campos não tem coragem de realizar, deixando uma situação de injustiça permanecer. E hoje, mais uma vez, é importante afirmar que não vão calar as dores e sofrimento das alunas e nem vencer pelo cansaço. Abusos não serão mais aceitos, a presença de abusador também não. A cada dia, a força das alunas se materializa para lutar por algo óbvio: respeito e justiça!
Eu, enquanto estudante assediada no primeiro período do curso de Ciências Sociais, me vejo agora, no meu último período da graduação, ainda tendo que reunir forças para lutar contra algo que me acompanhou durante esses quase quatro anos.
Eu, mulher, estudante, me senti mais uma vez vitimada, quando vi que a justiça entende que o que vivi e sofri não é assédio, quando a justiça considera não haver relação de hierarquia entre alunas e professores. 
Ora, se não existe relação de hierarquia, apenas por não se tratar de uma relação laboral, qual o nome que se dá ao tipo de cadeia sistemática onde o professor doutor está no topo e os alunos graduandos estão submetidos a ele? Se a justiça compreende haver assédio apenas em relações laborais, o que nos protege a nós, estudantes, sabendo que existe vasto histórico de assédio por parte de professores em todo o país? 
Precisamos de mudança na legislação ou precisamos de interpretações mais empáticas e sensíveis às muitas situações a que os sujeitos estão submetidos e as particularidades de cada ação? Empatia e sensibilidade essas que encontramos no trabalho da Polícia Federal de Campos, mas que não se estende à Justiça Federal da cidade, e por toda a morosidade com que o assunto tem sido tratado institucionalmente, também não se estende à Universidade Federal Fluminense.
Eu, mulher, estudante de uma das maiores universidades desse país, não mudei toda a minha vida para a cidade de Campos, exclusivamente para fazer UFF, para ser assediada em ambiente institucional, para sentir medo de represálias.
Eu, mulher, estudante, não aceitarei calada.