quarta-feira, 30 de maio de 2018

VAI PARECER UM PÔR DO SOL

Uma leitora querida do blog, Ana Júlia, traduziu e me enviou um artigo de 2014 de Kelly Sundberg que permanece muito atual. Ele fala da violência doméstica num relacionamento abusivo, e ajuda a entender por que as vítimas às vezes demoram para sair. É um pouco longo, mas vale muito a leitura. Obrigada, Ana Júlia!

Eu tinha 26 anos de idade, tendo passado a maior parte dos meus 20 adiando a vida adulta, e ele tinha 24 e aproveitado sua reputação de festeiro. A gravidez foi uma surpresa, e nós nos casamos quatro meses depois.
Enquanto minha barriga crescia com o aperto do bebê, meus membros foram ficando cada vez mais pesados. Eu cochilava constantemente em um longo sofá de segunda mão, o calor do verão me dando pesadelos. Eu sonhei com uma mulher flutuando em um canto olhando para mim e acordei com o coração acelerado. 
Numa tarde, um beija-flor voou pela porta aberta do apartamento até a janela no canto e bateu no vidro. Ele estava em pânico, tentando transformar o vidro em céu. Eu coloquei minhas mãos ao redor dele, o coração do beija-flor pulsando contra minhas palmas, e depois o soltei na varanda.
Dizem que um pássaro na casa é um presságio. Pode significar gravidez. Ou morte. Ou ambos
*
Oito anos depois, a polícia chegou à nossa porta. Quando o policial mais novo perguntou sobre o meu pé, eu disse que não doía. Eu disse a ele que não era grande coisa, mas quando ele pediu minha carteira de motorista, eu me levantei e descobri que não conseguia andar, que meu pé estava do tamanho de uma bola de futebol e que estava sangrando. A tigela que Caleb havia quebrado nele não era uma pequena, como eu havia descrito. Era uma tigela de cerâmica pesada, e eu precisaria usar uma bota por um mês e tomar uma dose de antitetânica, e sempre haveria uma cicatriz no topo do meu pé como uma estrela vermelha.
*
No início do nosso relacionamento, eu dormi em sua cabana na floresta e lá não havia encanamento interno. Eu tive que fazer xixi, então saí da casa. O chão estava frio e coberto de neve e eu não estava com vontade de andar até o banheiro externo, então fui até a lateral e me agachei ao luar. A lua transformou a neve em um milhão de estrelas, enquanto meu amante gentil dormia no calor -- quanta felicidade.
*
Nós não queríamos um casamento na igreja, mas nossas famílias insistiram. Fé era o que tornava o casamento sagrado. Fé era o que mantinha as pessoas juntas.
Eu tinha dúvidas em me casar com ele tão cedo. Às vezes, ele desaparecia por uma semana e voltava pedindo desculpas, cheirando a álcool. Seus amigos trocavam olhares que diziam que sabiam algo que eu não sabia. Um amigo disse em tom de brincadeira: "O que Caleb fez para você sair com ele?" Vindo de um amigo, a pergunta parecia estranha, mas eu pensei que era apenas o modo como eles brincavam.
Quando eu o conheci, ele me encantou. Minha melhor amiga me disse: “Você vai amar o Caleb. Ele mora em uma cabana na floresta que ele construiu sozinho”. Como uma ex-guarda florestal, eu me sentia atraída pela robustez e solidão. Caleb era escritor e ele era engraçado. Um dia, ele brincou na cama sobre quais seriam nossos nomes de rapper. Eu disse que o meu seria "Awesome Possum" [gambá incrível]. Ele improvisou uma música de rap intitulada "Get in My Pouch!" [entre na minha bolsa]Eu não conseguia parar de rir. Eu nunca conheci um homem que pudesse me fazer rir como ele podia.
Meu amor por ele era real e eu não queria ser mãe solteira.
*
O jovem policial disse a Caleb: “Vá ficar com seus pais. Fique fora por alguns dias. Apenas deixe as coisas se acalmarem.”
O jovem policial me disse: "Tudo bem. Minha esposa e eu brigamos. As coisas ficam loucas. Às vezes você só precisa de um tempo separado.” Eu balancei a cabeça em concordância, mas eu queria perguntar: “Você também bate na sua esposa?”
*
Antes do nosso filho fazer dois anos de idade, nós nos mudamos para o estado natal de Caleb, West Virginia. Ele queria ficar mais perto de sua família. Haveria oportunidades de trabalho lá. Seus pais tinham uma casa de aluguel que eles venderiam para nós. Havia muitas razões convincentes para a mudança, mas uma vez lá, ele era o único amigo que eu tinha. A solidão era inescapável. Isso é comum, eu disse para mim mesma. Meus pais foram casados por mais de trinta anos e eu não me lembro do meu pai ter tido um amigo próximo. Eu disse a mim mesma que Caleb era suficiente para mim.
*
Quando o policial mais velho viu o inchaço, o preto e o azul, os dedos parecendo pequenas salsichas, sua expressão se tornou abatida. “Isso está ruim. Parece quebrado,” ele disse. “Senhora, o seu marido tem um número de celular para que possamos entrar em contato? Nós precisamos que ele volte pra cá.”
Eles esperaram fora de casa, e eu liguei para Caleb. “Eu sinto muito,” Eu disse. “Eles vão te prender.”
Ele disse que já sabia.
Ele deixou o telefone ligado enquanto o prendiam para que eu escutasse. Eu não queria, mas não consegui me conter. “Ela bateu em você?” perguntou um dos policiais. "Porque nós podemos prendê-la também."
Caleb respondeu honestamente. Ele disse não.
*
Nós ficamos juntos por quase dois anos antes de ele ser violento comigo. Primeiro ele me empurrou contra uma parede. Se passaram mais dois anos antes de ele me bater, e mais um ano até que ele me batesse de novo. Aconteceu tão devagar, e de repente tão rápido.
*
Enquanto o policial mais velho prendia Caleb, o mais novo esperou os paramédicos chegarem. “Ele vai perder o emprego?” eu perguntei.
“Não, provavelmente não,” ele disse.
“Ele vai me deixar?” eu perguntei.
“Você não fez nada de errado,” ele disse.
Eu queria que ele me abraçasse para que eu pudesse esconder meu rosto no seu uniforme preto. Ao invés disso, me encolhi na cadeira de balanço.
“Ele vai me deixar,” eu disse.
*
Quando nossa vizinha idosa desenvolveu demência e, uma noite, achava que tinha um menino se escondendo embaixo de sua cama, Caleb ficou com ela. Quando o filho de um assistente do departamento de Caleb precisou de um transplante de coração, Caleb foi até sua casa e o ajudou a colocar piso de madeira no porão para criar um quarto de brincar para o menino. Quando meu pai precisou de ajuda para instalar novas janelas na casa, ou cortar o gramado, ou cortar madeira, Caleb estava sempre pronto para ajudar. Eu era tão agradecida por ter me casado com alguém tão generoso com seu tempo, tão amoroso.
*
O policial jovem chamou uma ambulância. Os paramédicos viram meu pé. Eles não perguntaram o que aconteceu. Eles apenas me disseram que parecia mal, que talvez estivesse quebrado. Eles me perguntaram se eu queria ir para a emergência, mas eu recusei, e eles me instruíram a procurar um médico e me fizeram assinar um termo que eles não eram responsáveis se eu não tomasse os devidos cuidados. E então eu estava sozinha em nossa casa.
*
Campanha contra a violência
doméstica: "Quando ele parou
de te tratar como uma princesa?"
Dois anos depois que nos mudamos, eu comecei a pós-graduação e finalmente fiz alguns amigos, mas era difícil passar tempo com eles. Eu tinha que mentir: eu prendi meu braço na porta. Eu tropecei em um tapete e bati meu rosto na mesa. Eu não sei de onde veio esse roxo. Eu acho que fiz isso enquanto dormia. Eu acho que devo ter anemia. Eu apenas me machuco tão facilmente.
Certa vez, Caleb me disse: “Você provavelmente gostaria que alguém descobrisse de onde vêm esses hematomas. Você provavelmente gostaria que alguém soubesse, para que as coisas pudessem mudar.” Ele disse isso com tanta tristeza.
*
Depois da prisão, eu permaneci em negação por alguns dias até que um amigo preocupado me forçou a ir examinar meu pé.
Eu sentia vergonha no centro de atendimento. Eu disse à enfermeira: "Está tudo bem. Ele já foi preso. Eu não preciso de nada. Estou segura", mas ela não parecia acreditar em mim. A enfermeira me colocou em uma cadeira de rodas, embora eu insistisse que eu poderia andar, e o médico tocou e girou meu pé com tanto cuidado que, por algum tipo de impulso equivocado, quase soltei: “Mãe!” Mas eu tinha 34 anos, e na distância entre minha mãe e eu havia tantas montanhas que ela não poderia ter me salvado.
*
Caleb queria mudar. Ele foi na terapia. Ele foi no controle de raiva. Ele fez tudo certo. Nós éramos aliados. Juntos, nós resolveríamos esse problema.
Ele começou a tomar medicação logo após nosso sexto aniversário. Toda vez que ele era violento comigo, ele ia a um psiquiatra que aumentava sua dose. Eu pensei que o psiquiatra poderia curá-lo.
Ele não deveria beber com a medicação, mas ele bebia.
Uma noite, ele estava em um estado de estupor e olhava fixamente para alguma coisa. "O que você está olhando?" eu perguntei.
"Eu mesmo", disse ele. "Sou eu sentado naquela cadeira." Ele apontou para uma cadeira vazia do outro lado da sala. "Aquele sou eu rindo de mim." Seus olhos estavam confusos, tristes.
"Você está me manipulando?" eu perguntei, preocupada.
"Não sou eu quem manipula você", disse ele. Ele gesticulou em direção à cadeira novamente, sua voz acelerada, sincera quase. “Ele é o único que manipula você. Não sou eu." 
Eu estava tão cansada. Eu não sabia o que dizer. "Você deveria ir para a cama." 
Seus olhos passaram da tristeza para a raiva. Ele se levantou e foi para as escadas, depois se virou para mim e disse: "Espero que você pegue clamídia e morra".
*
Pouco antes de deixá-lo, contei a uma conselheira que meu marido estava me batendo e mostrei para ela as contusões. Ela me abraçou enquanto eu chorava em seus braços. Eu então disse a uma amiga próxima que ele tinha gritado comigo e me xingado, mas eu ainda não tinha dito a ela que ele estava me batendo.
Minha conselheira disse: “Você está tomando pra si tudo o que ele diz e repetindo várias vezes. Você tem que parar a fita.”
Mas eu não conseguia parar a fita. Eu ouvia mais e mais:
Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia. Você é uma vadia.
E então sua voz se tornou minha voz:
Eu sou uma vadia.
*
“Você não pode usar o que eu te falo quando estou bravo contra mim,” ele disse. “Isso não é justo. Essas palavras não são o que eu quero dizer.”
*
Hematoma de violência
No atendimento de emergência, o médico disse: “Isso levará muito tempo para cicatrizar. Vai mudar de cor com o tempo. Vai parecer um pôr do sol.” Enquanto dirigia para casa, ouvia as palavras repetidas vezes:
Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol. Vai parecer um pôr do sol.
*
Ele vai fazer de novo
Eu nunca conseguia ir embora. Em vez disso, eu era uma cliente regular no Travelodge [rede de hotéis]. Eu sempre voltava para casa antes do amanhecer, mantendo a chave do hotel no bolso apenas por precaução, então subia na cama e envolvia meus braços nas costas de Caleb. Todos os suspeitos de sempre me atraíam de volta -- preocupações com nosso filho de seis anos, dinheiro, onde nós moraríamos e o amor. Eu ainda o amava. Eu disse a mim mesma que ele iria melhorar.
Na saúde e na doença. Aqueles tinham sido meus votos naquela pequena igreja em Idaho, onde ficamos de mãos dadas enquanto a luz do sol se filtrava através dos vitrais e os lilases da primavera floresciam do lado de fora. Caleb estava doente.
*
Ele me bateu no rosto apenas uma vez. Um hematoma vermelho apareceu em minha bochecha, um olho estava machucado e escorrendo. Depois, nós dois nos sentamos no chão do banheiro, exaustos. "Você me fez bater na sua cara", ele disse tristemente. "Agora todo mundo vai saber."
*
Cerca de um mês antes de sua prisão, achei que estava perdendo meu cabelo devido ao estresse. No chuveiro, fios vermelhos nadavam na água pelos meus pés. Tufos estavam presos aos meus dedos. Não importava. Eu não me sentia bonita há anos.
Quando esfreguei o xampu no couro cabeludo, a pele estava macia e percebi que não estava perdendo meu cabelo. Ele tinha arrancado, e eu nem havia sentido.
Eu entrava em uma caverna quando ele me batia. Eu me enrolava em meu próprio corpo como uma lesma, então viajava para uma escuridão profunda onde eu não sentia nada. Eu ouvia sua voz, seus punhos, as explosões em meus ouvidos dos golpes ao lado da minha cabeça. Eu ouvia meus próprios gritos.
No fundo daquela caverna, não era real, mesmo quando estava acontecendo.
O que era real era quando nos deitávamos na cama, nosso filho entre nós -- minha cabeça no ombro do meu marido, sua cabeça apoiada na minha -- e nosso filho dizia: “Toda a família está abraçada”.
*
“Eu não sou o tipo de pessoa que bate em mulher,” ele disse. “Então deve ser culpa sua. Você é quem traz isso em mim. Eu não seria assim se eu estivesse com outra mulher.”
*
Na mesma noite em que Caleb arrancou meu cabelo, ele me deu um soco na espinha com tanta força que meu corpo se arqueou para trás como se tivesse tomado um choque elétrico. Eu fui sacudida para fora da minha caverna. Ele bateu de novo. "Não", eu gritei. Eu não conseguia me proteger.
Minha única proteção era a escuridão -- a dissociação. Eu não o senti arrancando o cabelo, mas quando ele me bateu na espinha, a dor era muito intensa. Essa parte do meu corpo estava muito vulnerável. Eu não consegui me enrolar. Eu não pude envolver meus braços em volta do meu corpo.
Eu estava presente naquele momento em que estava acontecendo. Eu parei de respirar. Ele fez uma pausa.
Era como se ele também sentisse que eu estava presente e ele parou.
Eu não poderia ter sido humana para ele nesses momentos.
*
Ele nunca me estuprou, pelo menos isso.
*
Eu o deixei dois dias depois que ele foi preso, mas eu não estava pronta. Eu ainda não estava pronta.
*
Nós éramos um desses casais que os outros gostavam de ter por perto.
Nós ríamos muito, respeitávamos um ao outro e apoiávamos o trabalho um do outro. Nós amávamos as mesmas coisas: cozinhar comida tailandesa, festas improvisadas na sala de estar, maratonas de [série de TV] Friday Night Lights. Nós sempre achamos tempo para jantares românticos. Tiramos férias na Grécia, em Nova York e no Glacier National Park. Nós mandávamos um ao outro vídeos bobos durante o dia em que estávamos no trabalho. Ele me ligava do carro, cinco minutos depois de sair de casa, só para conversar.
*
No dia em que o deixei, liguei para Rebecca, uma amiga amável e receptiva que eu sabia que me ajudaria. Não foi uma ligação fácil de se fazer.
Ela morava com seu parceiro e eles deixaram meu filho e eu ficar com eles por um mês até que tivéssemos nosso próprio lugar. 
Ela e eu só nos conhecíamos havia pouco mais de um ano. Eu contei a ela sobre as surras, como Caleb quebrou meu telefone quando eu tentei pedir ajuda, como ele me tirou de debaixo da cama pelos meus tornozelos, como eu me escondi tremendo no armário enquanto ele se enfurecia, como ele sempre me encontrava, como não havia lugar seguro para mim.
Quando eu vi o medo nos olhos dela, eu entendi a magnitude do que estava acontecendo.
*
De todos que eu namorei, ele era o mais gentil. Eu amava suas mãos suaves, seus abraços, seu bom coração.
Ele me escrevia cartas de amor, fazia massagens nos meus pés, me levava para almoçar, levantava de manhã logo que nosso filho acordava, para que eu pudesse dormir. Ele cuidou de mim. Ele era mais gentil comigo do que cruel.
Às vezes, quando estou cozinhando o jantar sozinha, eu consigo sentir o jeito que ele colocava a cabeça no meu ombro enquanto eu mexia a panela, o jeito que ele me virava e me beijava, me dizia o quanto ele amava minha comida, como eu era linda, que sorte ele tinha.
*
No Dia de Ação de Graças, Caleb levou nosso filho para o jantar anual da família dele.
Enquanto comiam peru ao redor da mesa de carvalho em que eu mesma já havia comido tantas vezes antes, voltei para minha casa com Rebecca e peguei tudo o que consegui colocar em cestos de roupa suja, depois os enfiei no banco de trás do meu carro. Eu peguei os Legos do meu filho, cobertores suficientes para dormirmos no chão e minhas roupas de trabalho, mas deixei para trás qualquer coisa sentimental. Nossa foto do casamento estava em uma mesa, o vidro quebrado. Eu a tinha jogado no chão.
Depois de fazer as malas, Rebecca e eu comemos em um restaurante chinês ligado a um cassino porque era o único lugar aberto em três condados. O futuro apareceu diante de mim como um bufê cheio de pessoas famintas e solitárias.
*
Minha foto favorita de Caleb e eu é um autorretrato tirado em uma praia no Ecola State Park, na costa de Oregon. Nós tínhamos descido uma trilha íngreme, parando para almoçar salmão defumado e rosquinhas, e acabamos em uma praia. A maré estava baixa e bolachas do mar pontilhavam toda a costa. Nós as pegamos como prêmios. Nós corremos para surfar. Nós nos abraçamos. Na foto, estamos ambos sorrindo, nossas cabeças pressionadas juntas.
Quando olho para essa foto agora, me pergunto: “Onde estão essas pessoas? Para onde elas foram?"
Logo à nossa direita havia uma caverna. Eu queria entrar, mas a maré estava chegando, e eu fiquei com medo de ficar presa e me afogar.
*
Seis meses depois que deixei Caleb, fui para casa, em Idaho, no verão. Depois disso, eu mudaria para outro estado. Tinha acabado. A conselheira do abrigo de violência doméstica estava orgulhosa de mim. Tantas mulheres nunca partem. Eu não me sentia orgulhosa. Eu não queria partir. Eu queria continuar dançando com o Caleb, continuar enviando e-mails engraçados, ficar abraçada com o nosso filho entre nós.
*
Ainda há dias em que eu gostaria que ele me implorasse para aceitá-lo de volta, prometesse mudar, realmente mudar. Isso nunca vai acontecer. Mesmo que ele nunca mais me bata, meu corpo sempre se lembrará daquele punho nas minhas costas.
*
Em Idaho, o estado onde Caleb e eu nos conhecemos, onde tivemos nosso filho, eu dirigi pelas ruas banhadas de sol. Havia o apartamento onde Caleb se sentou ao meu lado no sofá, limpou a testa com nervosismo e disse com uma voz hesitante: "Kelly, eu quero casar com você".
Havia a casa onde nosso bebê dormia em uma cesta ao lado da cama. Quando ele chorava, eu cuidava dele enquanto Caleb passava o braço em volta da minha cintura, colocando a cabeça no meu cabelo.
Havia a trilha ribeirinha onde nós empurramos o carrinho de bebê e fantasiamos sobre qual casa extravagante compraríamos se tivéssemos algum dinheiro, onde nosso filho jogou gravetos no rio, onde Caleb o pegou e segurou de cabeça para baixo enquanto todos nós ríamos.
"Eu vejo a violência"
Havia o rio onde, no inverno, nosso cachorro escorregou para o gelo e para a água fria. Caleb esticou-se no gelo e estendeu as mãos para o nosso cachorro enquanto eu assistia aterrorizada. "Eu não posso perder os dois", eu gritei.
Eu me perguntei o que teria acontecido se tivéssemos ficado em Idaho.
Mas então houve a casa onde ele primeiro me empurrou contra a parede, onde ele me pressionou no canto, onde ele jogou a cadeirinha do bebê. A vizinha assistiu preocupada de sua varanda enquanto ele colocava os pedaços quebrados na lata de lixo no meio-fio, e eu chorava na janela.
A mesma casa onde minha mãe me levou para o quintal e disse: “Me escuta. Eu tenho amigas que deixaram seus maridos. Eu vi o outro lado. Não é melhor do outro lado. Tente muito. Tente muito antes de desistir.”
Eu tentei tanto.

26 comentários:

Anônimo disse...

Para qualquer mulher que esteja em situação de violência doméstica, seja ela vítima ou perpetradora, indico o grupo MADA - Mulheres que Amam Demais Anônimas.

Ele é baseado nos princípios do A.A., adaptados (sistema de passos) e tem como fundamento principal o livro de Robin Norwood, "Mulheres que amam demais", que pode ser encontrado em qualquer livraria online pra vender.

Aqui, um exemplo das principais características das MADA.

http://grupomadasp.com.br/caracteristicas-de-uma-mulher-que-ama-demais/

As reuniões são gratuitas e geralmente ocorrem em lugares indistintos, como igrejas por exemplo, para segurança das mulheres. Apenas mulheres participam e não existe liderança, a coisa é auto-gerida.

Ninguém dá opinião. Você ouve e, se quiser, no momento adequado, tem x minutos para falar sem ser interrompida. Vocês não imaginam quanta coisa dá pra falar e ouvir em cinco minutos quando você não está preocupado em atropelar a historia do outro com a sua.

Problemas de relacionamento e situações de abuso não acontecem apenas entre homem e mulher no âmbito de um casal. Pode ser entre pais e filhos, colegas de trabalho, amizades tóxicas e geralmente a MADA nunca tem problema só com o marido, o desregramento íntimo é só uma consequência de algo maior que inclusive chegou antes à vida daquela mulher.

E mesmo que você ainda não viva uma situação de abuso, vá conhecer o MADA para entender e aceitar de uma vez por todas que se alguém sofre por amor, tem alguma coisa bem errada aí e não é com o cara, é contigo.

A mídia romantiza o insustentável mas com acolhimento e esclarecimento é possível reverter essa situação antes que seja tarde demais. Evita inclusive que mais uma mãe diga a uma filha que ela precisa "tentar muito" antes de tomar uma atitude.

cianaly disse...

Nossa! Terminei de ler isso com o estômago embrulhado! Estou com náuseas... Sem palavras...

Anônimo disse...

eu acho maluco como tem mãe que prefere ver a filha infeliz, apanhando, fudida a separada/divorciada

a minha é assim, não posso contar com ela pra nenhum tipo de desabafo, adora pagar de heroína do matrimônio e exige isso aí de mim

e tenho certeza que se um dia eu largar do meu marido e aparecer com outra pessoa, ela vai morrer infartada seis vezes seguidas no lugar de simplesmente perguntar se eu to feliz ou não

ela defende mais o genro do que a própria mãe dele

eu não sei de qual cu saiu esse tipo de cultura entre as mulheres mas olha era bom parar com isso viu, é uma merda

João Paulo Ferreira de Assis disse...

Anônimo das 19:28

Isto vem da noção cristã de casamento indissolúvel. Orgulho de família. Conheço um caso em que a esposa pegou o marido transando com um homem. Obviamente separaram-se. Mas o pai dela, incomodado com a separação da filha pretendeu que ela voltasse para o marido. Ela não quis.

Anônimo disse...

19:28 saiu do cu e da boca dos homens, óbvio.

Anônimo disse...

Que texto lindo... triste, mas lindo.
Muito triste a parte da mãe que fala pra filha tentar. Achei que isso não acontecesse mais. Eu acho que se um cara me bater, minha mãe mata ele antes que eu possa terminar de contar a historia. Sem contar que é uma balela. Eu nunca ouvi falar de mulher divorciada que se arrepende. A maioria da graças a deusa de estar separada.

Eu acho que quase todos os problemas das mulheres vem dessa ideia que precisa se casar. Porque inculca uma ideia de dependencia que não existe. Alias, casar sempre foi muito melhor pro homem.

Yara

Anônimo disse...

Yara, "Alias, casar sempre foi muito melhor pro homem." Sério mesmo? Ah, tá. Por isso o Marriage Strike é uma pauta do feminismo né? É cada uma que a gente ouve que seria melhor ser surdo!

Jane Doe disse...

Bom,eu tenho uma parente nessa situação. O cara não vale nada, trai, bebe, agride física e emocionalmente e a mãe dela só falta lamber o chão que o cara pisa. E nem é por vergonha de ter uma filha divorciada. É por que ele é homem. E homens são criaturas "superiores" e tudo o que fazem é justificável e perdoavel.
Não subestimem o machismo internalizado de algumas mulheres. Elas não deixam de ser cumplices, as vezes até co-autoras, mesmo que também vítimas de certa forma.

titia disse...

09:50 sim você adoraria ser surdo, babaca. Assim não ouviria as mulheres pedindo 80% dos divórcios, as mães solos dizendo que é melhor criar sozinha do que ter que criar o filho e um marido bebêzão, as vítimas de violência denunciando, a nova geração dizendo que não quer casar nem o mimimi dos outros homens (e o seu próprio) chorando sobre como essas vadias egoístas não querem mais casar nem ter filhos. Sim, você com certeza adoraria ser surdo. Só falta isso e ser mudo pra completar o pacote da vergonha, porque idiota você já é...

Anônimo disse...

Casamento não é bom para os homens. Nem para as mulheres. Casamento é bom para um sistema baseado na propriedade privada, que precisa de regras claras de herança.

lola aronovich disse...

Casamento é bom pra muitos homens. Homens casados vivem mais que homens solteiros e ficam menos doentes. Não sou eu que tô dizendo...

Anônimo disse...

lola chorando muito com esse texto,triste demais.não fiquem com raiva da mãe dela é tão mais tão difícil mudar, algo internalizado em nós mesmo,eu aos quarenta já disse e pensei coisas machistas que hoje me fazem corar de vergonha.obrigado a você e tantas outras por fazer parte desta mudança.

titia disse...

Affe, errei. Só falta você ser cego, mascu, não mudo. Ser cego (à realidade), surdo (idem) e idiota é fundamental pro pacote da vergonha mascuzal completa.

Anônimo disse...

Chorei muito... É tbm a minha história. O problema é q o agressor não é um monstro apenas, ele tbm é doce, cativante, apaixonante, incrível em um monte de coisas.Não é só a violência, tem um monte de coisas boas que se misturam e tem a culpa, a sensação de destruir a família q vcs formaram e tem o perdão, a doença psíquica dos dois.

Anônimo disse...

casamento é bom pros homens, pq sempre tem a escrava sexual e doméstica para lhe servir. Fica com o cu pro alto esperando comidinha pronta, roupa lavada. E tem a escrava sexual para transar sempre q ele quiser.
Quem se fode é a mulher.

Anônimo disse...

Homens são puro ódio. Eu não consigo entender como a lavagem cerebral~patriarcal e tão forte que faz com que a maioria de nós ainda insistam em se relacionar com ele?!
Não entendo quando alerto que estão confiando em seus inimigos naturais me taxam e radical?!

Anônimo disse...

Mulheres se relacionarem com homens é como ovelhas se relacionarem com lobos, deixar homem ter poder e controle sobre a vida de mulheres, então, é o mesmo que deixar lobos cuidando de rebanhos de ovelhas.

Anônimo disse...

Oi anônimo que prefere ser surdo e mudo... "greve strike" é a maior palhaçada que eu jà ouvi falar. Coisa de mascu que NUNCA vai conseguir casar, ai inventa que não quer. Tipo a raposa e as uvas, sabe?

Se o casamento fosse bom para as mulheres, porque elas são 80% a pedirem o divorcio? E quando elas separam, muitas ficam sozinhas por opção. Participo do grupo da Gina no Facebook. Somente mulheres, umas 500 000 e tem muita, mas muita mulher que nem pensa em casar novamente. Os homens, separam e ja procuram uma outra. Por que? POr que não conseguem ficar sozinhos. Casando tem mulher para limpar, transar, cozinhar.

Mulher ganha o que casando? Sério mesmo, pense e me responda. Estou aqui esperando a resposta.

Beijos ( de longe, porque vai que eu me aproxime e vc queira casar comigo?)

yara

Anônimo disse...

Puta merda mano. Eu sempre choro nesses relatos, a gente consegue se colocar no lugar da vítima...Infelizmente a violência doméstica é uma realidade, enorme e muito cruel. Envolve muita coisa que as pessoas não enxergam. É muito corajosa a mulher que expõe a própria história, que tem coragem de falar "olha eu já passei por isso, e tem uma saída, não é o fim". Pois eu sei que existem muitas por ai passando por isso e que acreditam que é o fim, que não tem saída. E que um relato como esse pode ser um fio de esperança.

O que eu posso dizer é que a vítima não é a culpada pela violência, nunca!!!

Não é o fato do casamento em si galera, existem casamentos que dão certo, e existe violência não só em casamento...O problema não esta ai, o foco a gente já sabe que é algo cultural, ta enraizado na sociedade. O jeito é tentar modificar essa história, fortalecer as mulheres, empoderar as mulheres, disseminar conhecimento, e sempre estender a mão para quem esta passando por essa situação ao lado da gente, pois os casos são muitos..

Anônimo disse...

Ah, então ser espancada agora não é abuso, sério Cão do Mato? O q a mulher ganha permanecendo com um marido espancador?Mais espancamentos. A mulher q permanece nessa situação q é fraca, ela é dependente emocionalmente, psicologicamente e financeiramente do espancador. Na sua opinião ela deveria permanecer e suportar; pq sim, para dar uma de santona q se auto sacrifica em favor do matrimonio, a guerreira das belas, recatadas e do lares?Não me parece lógico, e nem sinal de força.

Cão do Mato disse...

Tô falando do tal "abuso psicológico" e não de agressão física. Quem se submete a esse tipo de abuso é fraco sim. Se fosse forte se imporia perante o "macho escroto" ou então ira embora. Consegue imaginar um homem reclamando de relacionamento abusivo? Choramingando que a mulher controla o dinheiro dele, que coloca ele pra baixo, não deixa sair com os amigos? Nao,né? Aposto que ia chamar o cara de bunda mole...

donadio disse...

Estar empregado também é melhor do que estar desempregado. Se fizer uma pesquisa, vai mostrar que desempregados vivem menos e ficam mais doentes do que os que têm emprego estável.

Daí se conclui que trabalhar a vida toda pra enriquecer um patrão é "bom"?

Suponho que na Idade Média os padres e freiras viviam mais e adoeciam menos que camponeses e camponesas.

Então a religião faz bem para a saúde?

A questão não é se casar é bom para uma pessoa que está indecisa entre casar ou comprar uma bicicleta. A questão é se uma sociedade onde existe uma instituição chamada "casamento" é boa para as pessoas em seu conjunto, homens, mulheres, celibatários, camisolões, namoradeiros, promíscuos, etc.

Anônimo disse...

"Consegue imaginar um homem reclamando de relacionamento abusivo? Choramingando que a mulher controla o dinheiro dele, que coloca ele pra baixo, não deixa sair com os amigos? Nao,né? Aposto que ia chamar o cara de bunda mole..."

kkkkkkkkk mas isso é o que mais tem, rapaz...

Unknown disse...

Anônimo das 12:41, discordo.

Olha, eu também sou casada. E, infelizmente, tenho que dizer que 'tenho sorte', por que meu companheiro não é abusivo. Mas e se fosse? Casamento não é só um contrato de 'proteção da propriedade', ele é um contrato social onde a afetividade e o exercício da sexualidade de cada um é 'contratada ao outro'. E, no ocidente, nós sabemos muito bem que a versão masculina do contrato tem mais cláusulas 'desoneradoras' do que a versão feminina. Pense no ritual dos casamentos. A maioria das religiões em vigor no mundo prega que o casamento é para sempre (o divórcio, se permitido deve ser sempre exceção), que ele exige comprometimento, 'capacidade de suportar tristezas e desavenças', exige sacrifício. Some-se isso ao imenso estigma que recaí sobre as vítimas de violência doméstica e a vergonha de ser aquela que 'fracassa no casamento', pronto: temos as amarras perfeitas que impedem e/ou desestimulam o fim de relacionamentos abusivos.
Nunca conheci caso em que a mulher se separou do marido na primeira agressão física, nunca. E enquanto isso não for uma possibilidade, estar casada com o seu agressor é sim fator de impunidade, e dos grandes. Se o seu casamento não é problema, bom para você. Acredite, esse mínimo ainda é uma situação de privilégio.

Anônimo disse...

"Estar empregado também é melhor do que estar desempregado. Se fizer uma pesquisa, vai mostrar que desempregados vivem menos e ficam mais doentes do que os que têm emprego estável.

Daí se conclui que trabalhar a vida toda pra enriquecer um patrão é "bom"?"

ser mendigo que é bom, come de graça, dorme de graça, trata os dentes de graça, não paga aluguel e não tá alimentando o capitalismo de nenhuma forma

Anônimo disse...

Que texto! Me identifiquei em muitos trechos, infelizmente.