quarta-feira, 18 de agosto de 1999

NO CENTENÁRIO DE NABOKOV, BOA HORA DE RELER E REVER LOLITA

Autor daquela que muitos consideram a única história de amor convincente deste século, o escritor russo precisa ser entendido pelo viés do humor (na foto, ele e sua mulher, Vera, em 1965).

Imagine a cena: um quarentão se apaixona por uma menina de doze anos. Para ficar próximo, casa-se com a mãe dela. Ajuda na morte acidental da mãe, finge ser o pai, e leva a garota com ele pela estrada, para viverem, ao menos entre quatro paredes, como marido e mulher. Chocante? Pois é, se esta história continua causando arrepios hoje, imagine quando ela foi lançada, em 1955. Mas é esse mesmo um resumo muito generalizado de Lolita, obra-prima de Vladimir Nabokov. Em 1999 comemoram-se os cem anos de nascimento deste russo naturalizado americano, um dos mais influentes escritores do século.
Nabokov também publicou outros livros fabulosos, como A Defesa e Fogo Pálido, mas foi depois do sucesso de Lolita que ele pôde parar de dar aulas de literatura em universidades e dedicar-se integralmente à sua arte. Nabokov morreu na Suíça, em 1977. Há quem diga que Lolita seja a única história de amor convincente do nosso século. Pode até ser. Narrado em primeira pessoa por um Humbert Humbert detrás das grades, o livro é um banho de ironia do começo ao fim. O próprio pedófilo nos relata sua sina nos mínimos detalhes, mas com classe.
Ele nos narra sua infância francesa e de quando se envolveu, ainda pubescente, com uma menina mais ou menos de sua idade. Annabel é vista como a precursora da obsessão de Humbert. É em Lolita que o termo ninfeta aparece pela primeira vez. Humbert explica, pacientemente, que ninfetas são seres demoníacos entre os 9 e os 14 anos, e que poucas garotinhas nesta faixa se enquadram nesta categoria. Ele diz que um homem normal, olhando fotos de meninas de escola ou de bandeirantes, não reconheceria uma ninfeta. É necessário ser artista e louco.
O leitor não sabe ao certo se Humbert é artista ou louco, ou ambos, ou nenhum, mas vê que ele sem dúvida se empenha ao máximo em descobrir ninfetas. Humbert passa seus dias em parques onde brincam crianças, ou observando escolas e orfanatos. Em sua primeira lua-de-mel, ele rouba uma camisola de um orfanato e faz com que sua esposa, praticamente acéfala, segundo ele, ­ a vista.
Humbert tenta se justificar usando a literatura. Dante apaixonou-se por sua Beatriz quando ela tinha 9 anos, Edgar Allan Poe por sua Virgínia de 13, e Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, aparece como hors-concours. Humbert tem uma opinião bastante alta a respeito de si próprio, e proclama que "era perfeitamente capaz de sexo com Eva, mas era Lilith quem ele queria".
Por acaso, Humbert vai parar na casa da viúva Charlotte Haze e conhece sua filha Dolores, que tem o apelido Lola, que ele chama de Lolita. Ele cai de amores à primeira vista e, para não perdê-la de vista, casa-se com Charlotte, que ele odeia. Se esta saga fosse contada secamente por um pervertido sexual, não teríamos como simpatizar com o agressor. Mas Nabokov escreve tão bem, e cria um Humbert tão sarcástico e fino (que nos deixa bisbilhotar no seu diário, nas suas cartas e na sua memória) que não ficamos totalmente contra ele. Até sentimos pena quando Charlotte avisa que enviará Lolita para um colégio interno.
Humbert pensa em matar sua mulher, mas é tão covarde que não consegue afogá-la. No entanto, bola um esquema para que Charlotte descubra seu nefasto diário e sofra um acidente. Milagrosamente, funciona. Humbert nos relata, com sua habitual verve cômica, sobre sua reação ao enviuvar: "Senhoras e senhores do júri, eu chorei". Muito mais de alívio do que de dor, claro. E vai buscar Lolita, que está em um acampamento de férias. Passam mais de um ano viajando, percorrendo os hotéis de beira de estrada dos Estados Unidos. Humbert faz ameaças de reformatório caso Lolita diga a alguém o que acontece entre eles. Em troca de sexo, dá-lhe mesadas, para logo depois roubar-lhe o dinheiro.
Seria fácil odiar um personagem tão desprezível quanto Humbert. Mas quem pode detestar o protagonista de passagens como esta: Humbert diz, ao usar uma gíria, "o leitor perceberá os sacrifícios que fiz para falar a linguagem de Lo." Ao que ela prontamente replica, "O quê?! Fale inglês!". O mais tragicômico é que Humbert se preocupa em ser um bom pai. Ele lê revistas adolescentes e matricula a menina em um colégio onde ensinam "não a soletrar muito bem, mas a cheirar muito bem". O que ele conclui: "Acho que nem nisso foram bem-sucedidos".
Finalmente, para escapar dos ciúmes doentios de Humbert e de uma vida sem perspectivas, Lolita foge com Quilty, outro pedófilo. Humbert passa anos perseguindo-os, sem conseguir alcançá-los. Reencontra Lolita quando ela já está com 17, "gasta", grávida e casada com um rapaz surdo e pobre. Este momento alcança a façanha de ser comovente, no meio de toda a ironia. Humbert percebe que continua apaixonado, apesar de Lolita não ser mais uma ninfeta. E parte para matar Quilty.
Lolita teve duas versões para o cinema. A primeira, de 62, dirigida pelo genial Kubrick e deturpada pela censura da época, aumentou o papel de Quilty e virou uma ótima comédia de humor negro. A outra, do ano passado, pode ser assistida em vídeo. É de Adrian Lyne, o mesmo de Nove e Meia Semanas de Amor, que teve dificuldades para encontrar um estúdio que aceitasse lançar o filme. Embora muito mais fiel ao livro de Nabokov do que a versão de Kubrick, a produção não tem alma por se levar demasiadamente a sério. E uma Lolita sem humor é como um Titanic sem navio.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas e se a história fosse diferente? Em vez de ele matar a mãe para ficar com a garota, ele simplesmente pedisse autorização para namorar e ela deixasse?