Livro e programa especial trazem de volta o genial e genioso Billy Wilder 16/2/00
Com a morte de Kubrick, o posto de maior diretor vivo parece pertencer a um velhinho de seus noventa e poucos anos que não filma há quase duas décadas, e que agora voltou a entrar em evidência por causa da publicação de um livro de entrevistas onde ele, pra variar, continua sem papas na língua. É Billy Wilder, salve salve. A partir de hoje, por uma semana, o canal Telecine 5 exibe os melhores filmes dele. Nos tempos em que tinha forças para escrever e dirigir, Wilder foi um grande criador. Era originalíssimo, mordaz, às vezes macabro, sempre irônico. E tem um nome que lhe cai como uma luva: "wilder" significa algo como "mais selvagem". Poucos fizeram tanto jus a um sobrenome. Wilder foi um dos muitos judeus alemães que, com a ascensão do nazismo, foram se refugiar em Hollywood. Ele chegou lá em 1934, aos 28 anos, sem saber falar inglês, e logo se tornou um roteirista por contrato. Quando descobriu que escritores não tinham poder de decisão, decidiu ser diretor. Adaptou-se tão bem ao way of life americano que aprendeu todas as gírias, colecionou estatísticas sobre jogos de beisebol e passou a usar boné. Infelizmente, só algumas de suas obras-primas estão disponíveis em vídeo no Brasil. Você pode encontrarA Montanha dos Sete Abutres (crítica feroz ao sensacionalismo da imprensa), Quanto Mais Quente Melhor, deliciosa comédia com Marilyn, e Se Meu Apartamento Falasse, que deu a Wilder seu segundo Oscar. Pra ver Farrapo Humano, filme definitivo sobre o alcoolismo, pelo qual Wilder foi brindado com sua primeira estatueta, você que tem TV a cabo deve rezar pela boa vontade dos programadores e ficar de olho. O mesmo vale para Pacto de Sangue, um clássico noir sobre um corretor que se envolve com uma mulher fatal e, juntos, tentam fraudar o seguro, e Crepúsculo dos Deuses. Veja como era uma época de traduções estranhas, aquela. Assim, o que deveria ser O Fim-de-Semana Perdido virou Farrapo Humano (1945), Dupla Indenização virou Pacto de Sangue (44), Tudo sobre Eva (que não é de Wilder) virou A Malvada (50), e por aí vai. E, principalmente, Avenida do Pôr-do-Sol (Sunset Boulevard) virou Crepúsculo dos Deuses, que também é poético, mas não tão sutil quanto o original. Este ano [2000], Crepúsculo está completando meio século de vida. É, provavelmente, o filme mais pessoal de Wilder. Pra começar, é narrado por um morto: um cadáver bóia numa piscina enquanto sua voz em off avisa que vai nos contar como acabou assim. Este corpo é de um roteirista que, fugindo de credores que querem confiscar seu carro, pára na mansão decadente de uma ex-estrela do cinema mudo. Ela, que vive com seu chofer/mordomo, que já fora seu marido e diretor, passa a sustentar o jovem em troca de favores sexuais e de um roteiro que signifique seu retorno à fama. No fim, claro, ela o mata, mais louca do que nunca. Wilder havia trabalhado como um escort em salões de dança de Berlim, então o tema de Crepúsculo não lhe era novo. Além disso, o filme é uma bela metáfora de uma Hollywood que estava mudando na metade do século, e que ainda iria mudar muito mais. Gloria Swanson, uma estrela do cinema mudo na vida real que, em 1950, aos 51 anos, não atuava há uma década, não foi a primeira escolha de Wilder para o papel. Aliás, Wilder ligou pra ela pedindo-lhe pra que ela fizesse um teste. Ela, altamente ofendida, já que nunca tivera que participar de uma audição antes, gritou: "Teste pra quê? Você quer ver se eu estou viva?". Depois, quando foi convencida de que esta seria a parte pela qual seria lembrada, engoliu o orgulho e fez o teste. Bingo. Certamente, se você já ouviu falar nela, terá sido por Crepúsculo dos Deuses. Para o papel do mordomo, Wilder chamou um diretor e ator que havia se tornado lenda pela sua excentricidade: Erich von Stroheim. Wilder adora narrar seu primeiro encontro com Stoheim. Quando o conheceu, foi logo manifestando sua admiração, elogiando, "você sempre esteve dez anos à frente do seu tempo", ao que Stroheim rapidamente corrigiu, "Vinte, sr. Wilder, vinte". Stroheim encarnou o personagem e saiu-se tão bem que foi indicado para o Oscar de melhor coadjuvante. Só que ele não gostou: declarou ser importante demais para concorrer naquela categoria e ameaçou processar o estúdio pela infâmia. Para a parte principal, a do roteirista, Wilder originalmente convidou Montgomery Clift, que recusou porque já estava representando o papel na vida real. Sua amante platônica (Clift era homossexual), trinta anos mais velha, jurou que iria se suicidar se Clift aceitasse. Gene Kelly também não quis, ou não pôde. O papel ficou mesmo com William Holden (de Férias de Amor e Rede de Intrigas, Oscar por Inferno no. 17, também de Wilder), que o interpretou com perfeição. Nas exibições-teste (sim, já havia isso naquele tempo), Crepúsculo dos Deuses foi massacrado. A responsabilidade pelo fracasso cabia à cena inicial. Wilder errou na mão e exagerou, iniciando o filme em um necrotério de Los Angeles, onde o roteirista morto conversa animadamente com outros cadáveres. Só depois ele optou pelo cadáver na piscina. Mas este clássico precisou ser aclamado em Londres antes de conquistar os Estados Unidos. E mesmo assim não conquistou todo mundo, como era de se esperar. Louis B. Mayer (foto), chefão da MGM, saiu da sessão de estréia bradando para Wilder, "Seu miserável, você desgraçou a indústria que te fez. Você deveria ser expulso de Hollywood!". Na ocasião, a resposta de Wilder se resumiu a um palavrão. No entanto, sete anos depois Mayer morreu, atraindo uma multidão para seu funeral. Aí Wilder não perdeu a oportunidade: "isso comprova tudo: dê às pessoas o que elas querem ver, e elas comparecerão". Crepúsculo recebeu onze indicações ao Oscar e só ganhou três, num ano em que A Malvada levou tudo. A Malvada é outro grande filme que voltou a ficar na moda, desta vez por causa de Almodóvar e seu Tudo Sobre Minha Mãe. Pois é, na falta de obras de arte atuais, a gente tem de se concentrar nas de cinqüenta anos atrás. Um dos diálogos mais famosos de Crepúsculo dos Deuses é bastante emblemático, apropriado até pros dias de hoje. O roteirista diz à ex-estrela, "Você já foi grande", ao que ela dispara, "Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos". E como ficaram.
Citações do excelente livro A Cidade das Redes: Hollywood nos Anos 40 (Companhia das Letras, 1989), de Otto Friedrich.
Sou professora da UFC, doutora em Literatura em Língua Inglesa pela UFSC e, na definição de um troll, ingrata com o patriarcado. Neste bloguinho não acadêmico falo de feminismo, cinema, literatura, política, mídia, bichinhos de estimação, maridão, combate a preconceitos, chocolate, e o que mais me der na telha. Apareça sempre e sinta-se em casa. Meu email: lolaescreva@gmail.com. Meu Twitter também é movimentado. Agora tenho um canal no YT, o Fala Lola Fala. Te vejo lá também!
Nenhum comentário:
Postar um comentário