Tenho muito orgulho de publicar o guest post da Amana Mattos, a mais nova professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Faz tempo que ela me brindou com a ideia deste post, que está relacionado com sua tese de doutorado, mas ela estava ocupada demais estudando pro concurso. E agora que passou, a primeira coisa que fez foi escrevê-lo. Desfrutem deste post absolutamente brilhante, que traz inúmeras reflexões para nossas lutas e nossos conceitos de liberdade. Quando conversamos com adolescentes e jovens, e perguntamos sobre seus desejos para o futuro, a resposta “quero ser livre, quero ser independente, don@ do meu próprio nariz” é das mais escutadas. Quando comecei meu doutorado em Psicologia, alguns anos atrás, me perguntei sobre os sentidos que os jovens –- moradores do Rio de Janeiro, onde vivo –- dão para a ideia de liberdade, e como esses sentidos podem nos ajudar a entender melhor as relações e as subjetividades do mundo em que vivemos.Mas tão logo comecei minha pesquisa, vi que precisava entender melhor os conceitos de liberdade que são referência no mundo em que vivemos –- pós-modernidade, contemporaneidade, atualidade, como preferirem... Assim, mergulhei de cabeça no estudo das teorias liberais, que influenciaram profundamente a constituição da sociedade ocidental, do Estado laico, da democracia representativa. O que fui descobrindo é que a ideia de liberdade mais recorrente hoje, que é defendida nos botequins, nos tribunais, nas discussões entre vizinhos, está impregnada de dois conceitos muito caros à teoria liberal: em primeiro lugar, a noção de liberdade enquanto ausência de obstáculos. É a velha ideia de que sou tão mais livre quanto menos impedimentos se colocam à minha ação. Essa noção (também conhecida como liberdade negativa, pois não é um atributo do sujeito, mas a simples ausência de coerção) é a base para o individualismo liberal. Todos somos livres, todos somos indivíduos. E existem regras necessárias para que as liberdades individuais não entrem em choque. “Sua liberdade termina onde...”, bom, vocês conhecem a máxima.O segundo conceito, fundamental para se entender a liberdade liberal, é a ideia de autonomia. Apenas um sujeito autônomo, isto é, que segue livremente os princípios de ação eleitos por ele para orientar sua vida, apenas um ser razoável a esse ponto, pode ser livre. Em nossa sociedade democrática há um outro nome para essa posição: o cidadão. Alguém que responde por seus atos, que é autossuficiente, independente.Bem, até aqui, nenhuma grande novidade. Imagino que tod@s já tenham ouvido falar dessas ideias em maior ou menor medida. O que eu gostaria de trazer como contribuição num momento em que tanto se discute o machismo, o direito das mulheres, a sociedade que queremos, são algumas reflexões sobre esse conceito de liberdade. Para isso, preciso dizer que a leitura das autoras críticas feministas tem sido fundamental para abrir meus olhos e coração para as entrelinhas cotidianas da dominação e da opressão.Quando pensamos sobre quem é esse “sujeito da liberdade”, exaustivamente descrito e construído pelas teorias sociais e filosóficas modernas, podemos identificar uma importante característica: o sujeito livre é independente. Pode parecer redundância, mas se entendermos isso como independência econômica, as coisas já mudam de figura. Para ser livre, é preciso “pagar as próprias contas”, é preciso estar disponível para ir e vir, não ter laços de dependência que me prendam a uma determinada situação. Sabemos o quanto essa situação foi, historicamente, mais difícil de ser conquistada pelas mulheres. Se falamos de mulheres pobres, então, o problema se complica ainda mais. Recentemente, aqui no blog, vimos um longo debate sobre “quem paga a conta” num encontro amoroso. Ficou muito claro, nos comentários, como associamos a possibilidade de poder pagar sua parte numa conta com um sentimento de maior liberdade. Sem dúvidas, essa ideia é pertinente e muito atual. Mas e quando a mulher não tem renda própria, o que é muito comum no casamento, por exemplo? A ideia de liberdade atrelada à independência econômica começa a mostrar seus problemas aí...Muitas feministas vão colocar essa discussão de cabeça para baixo, numa estratégia que considero brilhante. Ao invés de partir imediatamente em defesa da conquista da tão sonhada autonomia e independência para todas as mulheres, por que não pensamos em como, em que condições o conceito mesmo de autonomia foi construído, inventado? Não há como extrair da história de um conceito todo o seu passado de opressão e dominação –- no caso, de gênero. Os grandes pensadores da liberdade e da independência foram homens. E não apenas homens. Homens brancos, das elites, dos países ricos. Será que todas essas características simplesmente desaparecem de suas ideias quando eles se põem a escrever?A divisão entre espaço público –- o espaço da política, das lutas importantes e gloriosas –- e espaço privado –- o domínio das atividades menores, do descanso, das trivialidades –- mostra bem isso. Tradicionalmente, o espaço público é dos grandes homens. A casa, a cama, a mesa e o banho, das mulheres. A suposição de atributos como a independência e o desligamento do mundo das necessidades é constitutiva da concepção de indivíduo livre. Em oposição a esse destacamento, vale lembrar que a permeabilidade do corpo feminino é constantemente produzida por práticas e experiências como, por exemplo, a penetração sexual, os exames ginecológicos, a gravidez e o parto, o que nos colocaria em contato com relações de consentimento e coerção nos domínios mais íntimos de nossos corpos. Uma feminista de quem gosto muito, Daiana Coole, afirma: “se o conceito de liberdade negativa não especifica os homens como seus beneficiários, sua lógica implica fortemente que estes últimos são não-mulheres”.As coisas estão mudando? Sim, estão. Mas o que ganhamos ao defender a liberdade individual nos termos mais liberais -– valorizando em última instância a independência e a autonomia, por exemplo -– como principais bandeiras das mulheres? Pensemos nas grandes questões que envolvem as lutas feministas. Todas elas são atravessadas por uma exigência que, historicamente (aqui insisto no uso do termo: os papéis de gênero são construídos, não há essência nas posições femininas e masculinas), foi negada às mulheres. A divisão sexual do trabalho garantiu, por séculos a fio, que os grandes homens (ricos, letrados) pudessem se trancar em seus escritórios e ler, pensar, fumar charutos e discutir os negócios, enquanto as mulheres davam conta dos pequenos conflitos domésticos, das rotinas desinteressantes e repetitivas de cuidado dos filhos, das roupas, das refeições, ainda que isso envolvesse orientar outrAs empregadas para que o trabalho de casa fosse feito. Sim, pode parecer estranho, mas a separação entre público e privado tem tudo a ver com a ideia de liberdade liberal individualista.Se lutamos por liberdade –- o que considero uma grande luta –- precisamos refletir sobre o que queremos quando dizemos que queremos ser pessoas livres. Essa questão também se coloca para os homens, certamente, mas penso aqui especificamente no que toca às mulheres. Será preciso reeeditar argumentos velhos e machistas da teoria liberal? Ou devemos pautar lutas, agir cotidianamente, nos inspirando em modos de relação que possivelmente não seriam considerados “livres” desse ponto de vista? Por que desqualificamos, por exemplo, a mútua dependência, a colaboração, a emotividade e afetividade das relações, traços tão comuns nas relações femininas, ou que envolvem as mulheres? Quando essas características surgem, o que se vê muitas vezes é a acusação de que não se trata de relações (de trabalho, sociais, interpessoais) “sérias”, “maduras”, “responsáveis”. Se acreditamos que para sermos livres é preciso ser, acima de tudo, independentes e autônom@s, estamos atualizando (sem perceber) um triste histórico de opressão e dominação de nossa sociedade ocidental. E nessa história, as mulheres -– assim como os pobres, os negros, os gays, os não ocidentais, e tantos outros –- foram as maiores vítimas.
Quem se arrisca pode perder. Quem não se arrisca perde sempre. Semana passada fui ao Dragão do Mar ver um filme do Festival Varilux de Cinema Francês, que abre espaço em 22 cidades para a produção francesa recente. Ano passado teve também, e eu não fui. E agora o trampo é tamanho, e tá tudo tão corrido, que deu pra prestigiar apenas um. Uma pena, porque dá pra ver que tá cheio de coisa boa sendo feita (vocês devem ter notado que eu mal tenho ido ao cinema nesses últimos meses).O filme que eu e o maridão fomos ver foi Xeque Mate (Joueuse -- veja trailer sem legendas. Tem um trailer mais longo com legendas em inglês. Atenção: se você tentar baixar o filme, cuidado que tem um de Hollywood do ano passado, com o Bruce Willis e o mesmo título. Não parece ter nada a ver com xadrez. E parece ter uma única mulher, a Lucy Liu). É, confesso que fomos atraídos pela temática. Amamos xadrez, nos conhecemos num torneio em SP, duas décadas atrás, e ele é profissional de xadrez. É o que ele faz da vida desde os treze anos. E, apesar de existirem mil e uma histórias chamadas Xeque Mate, pouquíssimas são realmente sobre xadrez. Esta é. Dirigida por uma mulher, Caroline Bottaro, escrita por outra mulher, Bertina Henrichs. Aparentemente as duas têm grande carinho pelo jogo, e também pelo gênero feminino (leia entrevista em inglês).Xeque é sobre Hélène (Sandrine Bonnaire), uma mulher que vive na bela ilha mediterrânea de Córsega. Bela pros turistas, porque, pros habitantes locais, deve ser o fim do mundo. Hélène é arrumadeira de hotel e leva uma vida pacata e monótona com seu marido, empregado de um estaleiro, e sua filha adolescente, revoltada por pertencer a uma família pobre. Enquanto limpa um quarto, Hélène vê, na varanda, um casal de turistas (a moça é a Jennifer Beals, mais bonita hoje que em Flashdance) jogando xadrez enquanto troca olhares e carícias de um modo bem erótico. Então Hélène pensa: opa, se xadrez é isso aí, eu também quero jogar! (Ha ha, vai nessa, tolinha!). Primeiro ela tenta seduzir o marido. Como falha, compra um tabuleiro de xadrez eletrônico e um livro para aprender. Ela fica fascinada ao ler que a peça mais poderosa do xadrez é a dama (ainda vou escrever um post sobre feminismo e xadrez, podem me cobrar). Isso é totalmente anacrônico no mundo que Hélène ocupa, um mundo em que as mulheres trabalham, mas ainda têm que cuidar da casa e da família, enquanto os homens trabalham, mas têm horas livres para passar com os amigos (não com a família). Como o único tempo que sobra a Hélène para estudar xadrez é à noite, e como ela vai ficando obcecada pelo jogo (todas essas cenas de jogador imaginando um piso como se fosse um tabuleiro são clichê, mas são um clichê deslumbrante, sempre com efeito fotográfico bacana), o resto de sua vida vai mudando. Além do mais, ela também é diarista na casa de um sujeito solitário e excêntrico (Kevin Kline, falando francês como se ele fosse francês — o maridão nem o reconheceu). Ela insiste, e ele acaba jogando xadrez com ela. Não vou falar da relação deles para não entregar as surpresas. Mas adoro quando ele pergunta “Como é o seu marido?”, e ela responde “Lindo”. E por falar em linda, é interessante como Sandrinne se transforma durante o filme. Ela vai ficando mais bonita à medida que vai ficando mais livre, mais ousada, mais cheia de vida, mais confiante. Sabe como em filme americano o patinho feio vira cisne depois de um banho de loja e maquiagem, à la Uma Linda Mulher? Pois então, não precisa disso não. Autoestima em alta é que é atraente.Xeque é todinho sobre o processo de descoberta de uma mulher, que acontece através do xadrez. Não é panfletário, não é escancaradamente feminista. É mais ou menos sutil, como a trilha sonora do piano que acompanha a trama. Mas a mensagem não deixa muita margem pra dúvida: damas, vamos perceber nossa força no meio desse tabuleiro.
Precisamos de um dia de protesto para poder beijar em público! Hoje é Dia Mundial do Orgulho LGBTTT. Parabéns, pessoal! (o título do post não tem a ver com a Parada Gay!). Tem que se orgulhar mesmo de ser o que é, apesar de o que somos (lésbicas, gays, transexuais, mulheres, negros, gordos, ateus, pessoas com necessidades especiais etc) ser constantemente massacrado pela sociedade através de violência, discursos de ódio, religiões, piadinhas, falta de representatividade, preconceitos, insultos, e até leis contra nós. Apesar do dia 28 de junho ser dedicado ao orgulho LGBT, faço questão de escrever no plural. Todas as minorias são discriminadas. Ao invés de competirmos numa espécie de Olimpíada da Opressão para ver quem sofre mais preconceito, temos mais é que nos unir. E mais: precisamos ter orgulho de estar na companhia de outras minorias igualmente aguerridas. Tod@s nós lutamos por um mundo melhor, livre de preconceitos.Escrevo isso porque a quarta da semana passada foi uma abominação, um verdadeiro freak show. Nesse dia um deputado paulista sugeriu que fosse fixada uma data pra comemorar o orgulho de ser heterossexual. E imediatamente as absurdas palavras Orgulho Hétero alcançaram o primeiro lugar dos Trending Topics do Twitter. Eu escrevi dois tweetzinhos contra e recebi uma avalanche de críticas (coloco aqui alguns dos melhores momentos. Não é importante quem falou, mas o que foi dito). Em seguida veio a Consciência Branca (alguns dizem que esse foi um TT pra zoar do Orgulho Hétero e do projeto do deputado, mas, como sempre no Twitter, havia gente levando o troço a sério). A primeira pergunta que vem desse pessoal que deseja se orgulhar de ser o padrão, a Verdade e a Luz, costuma ser: puxa, mas se um negro pode usar uma camiseta escrito 100% negro, por que não posso usar uma escrito 100% branco? É o seguinte: poder até pode. Ninguém vai te fazer tirar a camisa, nem você irá preso por isso. Mas muita gente irá te considerar um completo babaca por vestir tal camisa. Um ignorante mesmo. Sabe por quê? Porque você tá deixando claro que não sabe o que é contexto. Porque, através de uma lousy t-shirt, você está dizendo que não sabe, ou não acredita (o que é pior?), que negros sofreram (sofrem ainda) séculos de exploração e humilhação. Porque você está afirmando que desconhece que nossa sociedade, todos os dias, associa negritude a coisas feias e sujas, e brancura ao que é limpo, puro e belo. Porque, pra finalizar, você está fingindo que não sabe (só pode estar fingindo!) que existem montes de movimentos fascistas como a Ku Klux Klan e os skinheads que fazem da supremacia branca a sua razão de viver. Eles, sim, têm motivos pra ter orgulho de ser branco — é porque odeiam os negros. Qual é o seu motivo? Se você não odeia os negros, por que quer esfregar na cara de todos que você não tem nem uma gotinha de sangue negro no seu organismo? O que você quer provar, ainda mais num país miscigenado como o nosso?Só dizer “tenho orgulho de ser hétero” não significa necessariamente ser homofóbico. O problema é que é uma declaração dessas não vem à toa. De onde isso veio tem muito mais. Pode apostar que na frase seguinte a pessoa já vai dizer alguma bobagem como, sei lá, “Não tenho nada contra os gays, mas quero mais é que eles morram”. Nunca sei se essa pessoa está provando ser uma completa sem noção (ao não perceber que se contradisse na mesma sentença), ou se é brincalhona, e só não tem noção que está insultando seu interlocutor. Geralmente a pessoa que diz isso ou assume que é homofóbica (exemplo: “Se bater no meu filho pra evitar que ele vire viado é homofobia, então eu sou homofóbico sim!”, seguido de uma batida no peito), ou nega: “Claro que não sou homofóbico, tenho até amigo gay!” (ou , pros mais sem noção ainda: “Claro que não sou homofóbico, até assisto The L Word!”). Orgulho é o oposto de vergonha. Quando é que você sentiu vergonha de ser branco? É verdade que existe algo chamado white guilt, culpa branca, mas isso é sentir vergonha do que os brancos fizeram (é, quase sempre isso é visto como passado, fato encerrado) aos não-brancos. Mas esse “sentir vergonha” é no coletivo, é algo distante — por exemplo, ter vergonha dos antepassados que tinham escravos. No plano individual, a pessoa continua sendo contra as cotas pra negros. Ou seja, vergonha por ser branco pode acontecer, mas aí é vergonha pelo que outros brancos fizeram. Quando você sentiu vergonha de ser homem? (novamente, se acontecer, é pelo que outros homens fazem). Mas a sociedade não vem pra você e te diz “Eca! Que horror que é ser branco e homem!”. Não, isso é celebrado. Pense no que a gente vê na mídia (tirando os comerciais da Bombril e outros que dizem que homens são totais incapazes. Mas até isso é bom e estratégico, porque ninguém vai esperar que um incapaz faça alguma coisa, como cozinhar ou limpar a casa. Melhor deixar com quem sabe. Opa, esse alguém é a mulher?! Que incrível coincidência!).Pense na linguagem que usamos. Pense nos termos usados para condenar a sexualidade feminina (vadia, piranha, galinha etc) e para celebrar a sua (garanhão). Pense em como “aquilo roxo” e “colhões”, que só existem na anatomia masculina, são sinônimos de coragem, e em como macheza está associada à valentia, determinação, bravura, e em como “mulherzinha” é o oposto. Ser homem e branco é o padrão dominante, é a cor e o sexo de quem manda, de quem tem poder, de quem tem dinheiro, de quem faz as leis, e para quem as leis são feitas. Mas de nada adianta estar dentro do padrão desejável — homem e branco — se você puser tudo a perder sendo gay. Porque aí você será expulso do clubinho de homens brancos. É como se você estivesse cuspindo no prato que comeu, rasgando sua carta de privilégios. Tudo bem se você esconder que é gay. Se a gente olhar pra você sem desconfiar que você gosta de pênis alheio (porque a gente só gosta do nosso próprio), se você se enfiar num armário e não sair dele jamais, se você mantiver um namoro ou um casamento de conveniência (com uma mulher, lógico!), se você não tiver o menor trejeito que te denuncie, se você rir das nossas piadas que dizem — brincando, claro, tenha senso de humor!! — que viado é ridículo e inútil e nojento, bom, se você seguir todas essas regras, a gente te atura. Somos tolerantes e bonzinhos com os gays: é só não ser gay, entendeu?! E é por isso que ser gay é tão ofensivo pro padrão dominante. Porque, pô, um negro não pode escolher ser negro, uma mulher não pode escolher ser mulher (e tudo bem uma mulher ser mulher, desde que saiba seu lugar e cumpra suas funções), mas um gay definitivamente pode escolher ser hétero! É só querer! É só deixar de ser fresco! Óbvio que um gay só quer ser gay porque está na moda, porque, né, ser gay traz um mundo de vantagens! Pense nos privilégios que um hétero tem. Quando você sentiu vergonha de ser hétero? (nesse caso, em geral, a gente nem costuma se envergonhar dos outros héteros!). Quando você foi discriminado por ser hétero? A única resposta que um hétero tem na ponta da língua pra essa pergunta é “Quando fui a uma boate gay”. Primeiro que não acredito muito nisso (héteros são bem tratados em boates gays). Depois que, olha só, você teve que ir a um lugar específico para ser discriminado. Prum gay, lésbica, trans ser discriminado, tudo que el@ tem que fazer é sair à rua. Aliás, serve ser discriminado dentro de casa também. Não tem que ir a lugar nenhum pra sofrer discriminação, basta existir.Portanto, ter orgulho de ser hétero é querer celebrar a sorte que você tem simplesmente por ter nascido hétero. É ostentar riqueza, e ostentação de riqueza não pega bem. Sabe quando um milionário fútil gasta milhares de reais festejando o aniversário do seu bichinho de estimação? Sabe quando um cara tem a petulância de reclamar das suas férias num resort de esqui porque lá não estava frio o suficiente? Sabe quando o filhinho de papai critica a empregada por mexer nas suas coisas, sem imaginar que ser empregada não é um emprego dos sonhos, e que é um privilégio ter alguém pra limpar a sua sujeira? Então. Você, hétero, ao querer celebrar publicamente sua heterossexualidade, é um filhinho de papai. Porque ninguém está mexendo nas suas coisas ou ameaçando tirá-las de você. Porque sua orientação sexual não está correndo riscos. Porque você tem e vai continuar tendo todo o direito de andar de mãos dadas, beijar, casar com alguém do sexo oposto, adotar uma criança, e ninguém vai te olhar feio. Ninguém vai te expulsar do recinto, ninguém vai te bater ou matar, ninguém vai querer te transformar, ninguém vai dizer que se envergonha de ser seu pai/mãe, ninguém vai pensar que sua orientação sexual é depravada ou relacioná-la à pedofilia, ninguém vai te despedir do emprego por causa da sua heterossexualidade, ninguém vai dizer que o que você faz é pecado e que você vai arder no inferno por conta disso. Ou seja, você não precisa de uma data específica pra defender sua orientação sexual. Ela não está sob ataque. Todo santo dia você está mostrando seu orgulho hétero. Todo dia é um desfile sem fim pra você. Então, em vez de se orgulhar do seu privilégio, que tal envergonhar-se de viver numa sociedade que insiste em negar direitos a quem não é “normal” como você?
Segunda passada publiquei post sobre o terrível caso da cheerleader estuprada por um atleta. Ele, quando finalmente foi condenado (não por estupro, mas por um crime menor), não só não foi preso como teve que pagar uma fiança de 2,500 dólares. Expulsa da equipe por se recusar a torcer pelo estuprador, a vítima processou a escola. A justiça americana não só não lhe deu ganho de causa, como considerou o processo fajuto, e a multou em 45 mil dólares. Ou seja, quando a gente fala que vive numa cultura de estupro, está se referindo a todo um sistema que insiste em manter o estupro impune, a um mundo que vende imagens de estupro como se fossem glamurosas e desejáveis, e a uma sociedade que culpa a vítima, sempre. Escreva um texto sobre estupro, qualquer um. Pode ser o estupro mais escabroso possível, que sempre vai aparecer alguém pra dizer que a mulher é que quis e que é errado culpar o cara. É um paradoxo: apesar de vivermos num mundo em que um terço das mulheres já sofreu algum tipo de abuso sexual, muitas pessoas (homens principalmente) juram que estupro não existe. Quando muito, que é coisa de psicopata.
O problema é que não é. Se fosse apenas um grupinho, não seria tão difícil brecar a violência sexual. Não é o estuprador individual que é um psicopata ― é a sociedade. Veja só esses dois casos que citei do Texas, esse da cheerleader e outro de uma menina de 11 anos estuprada por dezoito rapazes. A maior parte de nós, olhando aqui de longe, imediatamente empatiza com as vítimas, certo? Mas nas cidades onde esses estupros ocorreram o que mais se ouve é “Vocês não sabem o que aconteceu, e nós sabemos. Vocês não conhecem a história toda”. E qual é a “história toda”? É que a cheerleader de 16 anos estava bêbada e já tinha beijado duas pessoas naquela festa. É que a menina de 11 se vestia como uma mulher de 20 e não era mais virgem. Essa, gente, é a história toda. Por isso essas garotas foram estupradas. Por isso nas várias Marchas das Vadias que fizemos e estamos fazendo por todo o mundo alguns slogans incluem “Beber não é crime. Estuprar é”, e “Minha roupa não é um convite para ser estuprada”.
No sábado retrasado aconteceu de novo. Um funcionário de uma boate em SP foi acusado de estuprar uma moça de 20 anos. Ela, que comemorava a formatura da irmã, estava bêbada. O estupro aconteceu no ambulatório da boate. O funcionário confirma o sexo, mas diz que foi consensual. Aí fica a dúvida: como que uma pessoa caindo de bêbada pode consentir alguma coisa? Penetrar uma mulher que está dormindo não é estupro? Que tal uma paciente em coma?
Quer dizer, essa questão do consentimento é uma das dúvidas. A outra é: imagina só que você vê uma pessoa bêbada passando mal, precisando de ajuda, que a muito custo se arrasta até um ambulatório. O que você faz? a) Você ajuda a pessoa? b) Você a estupra?
Se estupro é uma palavra muito forte, vamos imaginar que uma pessoa de repente passe mal na rua. Assim, do nada, uma pessoa desmaia na sua frente. Você a ajuda ou você aproveita para roubar-lhe os pertences? (Eu não gosto muito dessas comparações porque estupro não tem nada a ver com roubo. Estupro é um dos crimes mais hediondos que existem, e a sociedade sabe muito bem disso — tanto que é uma tática comum nas guerras).
A frequência com que mulheres bêbadas são estupradas (é um dos casos mais típicos em festas universitárias) mostra que, bem, tem muito cara que não vê mal nenhum em se aproveitar, ao invés de ajudar, uma pessoa passando mal. Todos esses caras são psicopatas? E esses aqui, que tirei (tudo sic) dos comentários da matéria do jornal online?
- “Não aconteceu nada demais! A mulher eh MAIOR DE IDADE, portanto plenamente capaz, bebeu por livre e espontanea vontade, foi pra gandaia e depois facilitou as coisas abrindo a guarda e depois de arrependeu. Agora querem prejudicar o funcionário. O único erro do cara foi ter feito isso num ambiente de trabalho. No máximo um mal procedimento.”
- “isso é classico, esquentam os caras e depois querem sair fora...”
- “desde quando ter conjunção carnal com uma moça de 20 anos é ESTUPRO DE VULNERÁVEL?”
- “È adequado uma jovem embriagar-se em simples festa de formatura da irmã? É adequado um empregado do estabelecimento descontrolar-se com isso a ponto de consumar uma violação?”
- “Tudo deve ser apurado mas muito me parece q a garota ficou doidona, ficou com vontade de dar e depois se arrependeu ...”
- “Ei, esta garota viu a novela da GROBO, 21:00, a mocinha que colocava chifre no noivo com um segurança do shopping. Era a fantasia da garota fazer o mesmo. Coitado do cara.”
- “Existe um ditado popular que diz: C... de bêbado não tem dono. Quem bebe deve sempre pensar nisso”.
- “ela bebeu e alega ter sido estuprada? pra mim parece desculpa esfarrapada dela!”
- “O IMPORTANTE É SABER se ela disse, em algum momento, NÃO (OU FEZ MENÇÃO QUE NÃO QUERIA). Caso contrário, o bombeiro está sendo acusado INJUSTAMENTE!”
Esses rapazes que comentam são todos psicopatas? Ou representam um modo de pensar que está impregnado no nosso mundo? Sabe, esse mesmo mundo em que dizem que o feminismo não tem mais razão de ser?
Pra essa gente, fazer sexo com uma mulher incapaz de consentir não é estupro. É uma oportunidade (assine a petição contra a piada rafística!). Afinal, a julgar pelo número de passadas de mão e grosserias a que uma mulher (sóbria!) está sujeita sempre que sai à rua, o corpo de uma mulher já é público. Se ela beber, então... Quem manda ela beber, não é mesmo?
Esses pensadores não estão sozinhos. Uns dez dias atrás tivemos as declarações do bispo de Guarulhos, um que acha misturar religião e política seu dever divino. Dom Luiz Bergonzini é outro que não acredita em estupro, como narra a entrevista que ele deu ao Valor:
"Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima... É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil", comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. "Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre... Há os casos em que não é bem violência... [A mulher diz] 'Não queria, não queria, mas aconteceu...'", diz. "Então sabe o que eu fazia?" Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. "Eu falava: bota aqui", pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. "Entendeu, né? Tem casos assim, do 'ah, não queria, não queria, mas acabei deixando'. O BO é para não facilitar o aborto", diz.
O bispo é um psicopata também? Ok, não responda! Qualquer um que use o exemplo da caneta com uma pobre repórter revela total falta de empatia (assine a petição contra as declarações do bispo). Mas psicopatia é isso mesmo: é não sentir empatia pelas vítimas. Então talvez o pessoal que prega que estupro é obra de psicopata tenha razão: só psicopata estupra, e só psicopata justifica estupro. Mas como existem psicopatas neste mundo, hein?