O caderno Anexo, do jornal A Notícia, do qual sou colaboradora desde 1998, publicou na quinta uma pequena matéria de capa sobre blogs joinvilenses, e me incluiu nessa festa. Foi assim: na manhã de quarta, uma simpática repórter ligou pra casa pra me fazer algumas perguntas sobre o bloguinho. Ela quis saber como surgiu a ideia de ter um blog, e eu contei (já falei pra vocês, né?): eu compartilhava minhas crônicas de cinema com um site que não era meu, e não estava muito feliz porque o feedback dos leitores era zero e porque o site demorava demais para ser atualizado. Como sou muito acomodada e bastante tolinha, isso durou de 2000 a dezembro de 2007. Durante o segundo semestre de 07, passei a colaborar com um outro blog, mas não deu certo. Não era o meu público, eu não tinha liberdade pra escrever o que quisesse, e novamente não havia retorno dos leitores. Aí o dono do primeiro site descobriu meu adultério com o outro blog, e me deu um ultimato: ou eu ou ele. E eu, que estava cansada de ambos, falei pro maridão: “Quer saber? Nenhum dos dois! Não pode ser assim tão difícil fazer um blog. E aí, me ajuda?”. Pronto. Faz um ano. Eu contei isso muito resumidamente, e o que saiu no jornal foi “trajetória insossa”, mas entendo que esse não era o foco. A repórter perguntou quais blogs eu acompanhava, e eu disse que o meu preferido é o Síndrome de Estocolmo, por tratar de temas que me interessam mais (isso não saiu na reportagem). Eu disse que, de Joinville, o blog que eu lia mais é o Cidade Cultural, pra saber o que acontece na minha cidade. O resto do que falei tá mais ou menos na matéria, com um erro que um leitor identificou e mandou um email pro jornal - eu não recebo “cerca de 50 comentários por mês”, e sim por post. Mas, sinceramente, nem considero esse um erro crasso. E, como já comentei numa ocasião, quantas vezes você leu uma matéria sobre algum tema que você conheça bem que não tenha pelo menos uma informação errada? Fiquei contente com o destaque, lógico. Mas duvido que isso traga algum leitor novo pro bloguinho. Estou cada vez mais convencida que leitor de jornal tem pouca afinidade com a internet - por isso lê jornal. Há exceções, mas eu também era assim, quando assinava a Folha e o Estadão (parei há uns três anos): não lia blogs; mal sabia que existiam. Internet, pra mim, era mais pra trocar emails e de vez em quando procurar algum artigo.Através da coluna que tenho na Notícia, recebo uns dois emails por semana (compare a interatividade que cada meio proporciona: 50 comentários por post vs. 2 comentários por semana). Respondo sempre, e constantemente peço pra pessoa conhecer meu blog, porque aqui os textos são diários, não semanais, e porque nos comentários o debate se amplia, toma novos rumos. Qual a minha ideia ao fazer esse convite? Não é só aumentar o número de leitores do blog, se bem que, sim, gostaria de receber mais visitantes que vivem em Joinville. Mas o principal é que, se a pessoa se deu ao trabalho de me mandar um email elogioso, é porque gosta do meu trabalho, e no endereço tal tem muito mais. Não sei, você não faria o mesmo? Se você acompanhasse o trabalho de alguém que escreve prum jornal, mandasse um email pra ele(a), a pessoa respondesse dizendo “Eu também tenho um blog, apareça lá”, você acharia ruim? Eu ficaria feliz em saber que alguém que eu gosto de ler escreve todo dia. Mas recentemente houve uma leitora que se ofendeu. Ok, essa leitora foi muito estranha. No primeiro email, ela me elogiou pelo “salto qualitativo” que meus textos haviam tomado depois que estudei e morei no exterior, e que ótimo que eu tenha deixado de lado aquele estilo “dissimulado” e “primário” que eu adotava nas minhas críticas de cinema, quando “tripudiava do maridão”. Ui!, ou, como dizem naquele país que me transformou numa pessoa iluminada, ouch! Você pode imaginar que detestei esse email. Não só por insultar minhas críticas, mas por supor que agora sim eu sou um ser humano desenvolvido, simplesmente porque passei uma temporada num país desenvolvido. Tentei responder com o máximo de educação, como sempre. Expliquei que, apesar do jornal ter cortado minhas crônicas de cinema, por falta de espaço (ele foi reformulado e adotou o formato tablóide), eu continuava com elas no blog. Um dos pedaços do meu email dizia: “Eu francamente não acho que antes era dissimulada e que agora, depois de viajar, eu tenha me tornado questionadora, existencialista e densa. O que você vê como 'salto qualitativo' eu apenas vejo como duas colunas diferentes, com perfis e talvez públicos diferentes”. A leitora respondeu de uma forma meio indecifrável. Ela engole palavras, troca letras, não termina frases, e assim fica difícil entender o que quer dizer, mas tenho quase certeza que ela me contou boa parte de sua vida, afirmou como somos parecidas, e acrescentou (tudo sic): “Parece-,e que de uma forma subliminar vc sentiu-se um tanto mexida ao falar sobre suas crônicas no jornal sobre filmes, posso dizer que gosto não se descute, só se lamenta, vejo você muito maior nesta outra questão na qual se propôs a escrever”. Ela ainda disse que gostaria muito de me conhecer pessoalmente, pois “quando encontro estas pérolas perdidas gosto de garimpalas para ver seu brilho”. Mas que eu não me preocupasse porque isso não era uma cantada, já que ela também tem maridão. Tá, pode parecer, na décima resposta atravessada a um trololó no blog, que não sou uma pessoa paciente. Mas eu sou, sério. Então, munida de muita tolerância, engoli em seco ser chamada de “pérola perdida” (que só uma pessoa especial pode garimpar, certo? Isso tem nome em inglês: patronizing), e respondi à leitora que eu entendia que a intenção dela não foi me insultar, mas que fazer um elogio desvalorizando um outro trabalho (críticas) que nem está em pauta podia soar “um pouquinho ofensivo”. E comentei uma série de coisas que ela falou no email, reiterei que não estava brava, que eventualmente iríamos nos conhecer, mas, por enquanto, que ela aparecesse no meu blog e, se quisesse, comentasse por lá. Ok, veja o que a mulher me responde (tudo sic):“Vi seu blog, porém meu interesse e intimista , não gosto de falar para o mundo inteiro, sou bastante reservada, mas vc continua agredindo, realmente seu estilo é gostar de receber críriticas negativas, percebi que a maioria é neste sentido, mais uma vez vc encontrou alguérm para escarafunchar seu estilo. [...] Qto a vc pela terceria vez querer que eu fale de seu blog, isto eu me permito que não farei, estou conversando com você e percebi que você sentiu-se um TANTÃO ENCOMODADA com uma das questões e só se ateve a esta, em vez de ver o todo, o sistêma seu amadurecimento. [...] Fique tranquila, vi que você eufemisticamente, solicitou para que eu pare de falar na intimidade eu não gosto de reality shows, entrando num bolg, este é seu endomarkiting, mas não pretendo estar alí e sim aqui. A relação é um binômio agradeço sua agressividade sutil, e daqui por diante não entrarei em contato. Não necessito ver apesar de ter feito uma leitura dinãmica dele no seu blog, mas uma vez vejo que seu negócio é ficar distante de seu público, o virtual permite bastante isto, então siga em frente. Acho interessante alguém gostar de receber criticas desvalorizando seu trabalho. Sentimentos de que você realmente aceite o the day after, ou posso pensar que vc gosta dele”. Alô? Ganha um pirulito de chocolate quem decifrar o que essa doida quis dizer. Minha paciência tem limites, e não respondi esse último email - inclusive porque não entendi bulhufas. Qual é o the day after? (parece o pessoal falando os The Beatles). Eu disse claramente que não gostei que ela tenha chamado minhas crônicas de primárias, e a conclusão dela é que eu gosto de receber críticas negativas? Admito que neste caso fiquei um tiquinho assustada, porque a pobre leitora pareceu desequilibrada (espero que fique bem e que tenha uma vida longa e feliz). Tudo bem, estou sendo injusta com os outros leitores do jornal que me mandaram emails. Eles foram gentis e queridos, mas foi só sugerir o blog que nunca mais ouvi notícias deles. Acho que não vou mais misturar os canais. Não menciono mais pra leitor de jornal que tenho um blog. Não sei, é tudo muito esquisito. Essa leitora fez a musiquinha do turururu turururu do Além da Imaginação ficar tocando na minha cabeça.
Então, já faz tempo que o Writer's Guild of America (espécie de sindicato dos roteiristas americanos) divulgou uma lista com os cem melhores roteiros de todos os tempos. Como um leitor pediu, vou falar um pouquinho dela. Tenha em mente que é roteiro, não o filme completo. Mesmo que várias dessas produções apareçam frequentemente da lista de melhores, vamos tentar focar no roteiro (aliás, eu adoro ler roteiro!). Num livro que li do William Goldman, roteirista oscarizado (com três menções nesta lista) de Butch Cassidy, Todos os Homens do Presidente e Louca Obsessão, ele mostra a parte do roteiro de Psicose escrita para a famosa cena do chuveiro, em que uma pobre moça é assassinada por Norman Bates. É incrível que tanta coisa que vemos nessa cena clássica esteja no roteiro de Joseph Stefano - os cortes, as mãos, o close do olho... A gente tende a achar que a inspiração vem toda de um diretor genial como o Hitchcock, e se esquece que alguém pôs as ideias num pedaço de papel antes (por sinal, Psicose ficou em 92o lugar na lista). Vamos às primeiras dez colocações (lembrando, é claro, que praticamente inexiste qualquer roteiro que não esteja em inglês na lista):1. Casablanca (1942) - embora eu goste muito do filme, às vezes o considero superestimado. O roteiro realmente contém alguns dos melhores diálogos da história do cinema (acho que o meu favorito é quando o personagem do Claude Rains pergunta pro Rick do Humphrey Bogart por que ele veio a Casablanca. “Eu vim por causa das águas,” ele responde. O capitão retruca: “Que águas? Estamos no meio do deserto”. E Rick: “Eu fui mal-informado”). Mas também há diálogos terríveis no mesmo filme, embaraçosos mesmo, como a mocinha falando pro seu amado, durante um bombardeio: “Isso são bombas ou é o meu coração batendo?”. E milagrosamente ninguém se lembra dessas falas. Na realidade, todos os flashbacks de Paris são fracos, na minha opinião.2. O Poderoso Chefão (1972) - sem dúvida, um senhor roteiro, ainda mais considerando que o livro de Mario Puzo em que foi baseado não é visto como grande literatura. Era mais um bestseller que as pessoas liam na praia naquele verão de 1969 (eu nunca li). Bom, essa lista idolatra o Coppola, Woody Allen, e o Billy Wilder. Cada um tem quatro filmes citados. 3. Chinatown (1974) - adoro o filme do Polanski, mas o que o faz grande são qualidades não exatamente do roteiro, como o clima, as magníficas interpretações de Jack Nicholson, Faye Dunnaway e John Huston, a música... Claro, o roteiro de Robert Towne é impecável. Só não podemos esquecer que um ingrediente importante do seu sucesso esteja no final noir e sem esperança. Esse final foi imposto por Polanski. Towne defendia um happy end (aliás, o relacionamento entre Polanski e Towne enquanto trabalhavam no roteiro, narrado com maestria por Peter Biskind no livro Easy Riders, Raging Bulls, por si só já daria um roteiro divertido).4. Cidadão Kane (1941) - minha ídola Pauline Kael dedicou um livro inteiro defendendo que o principal responsável por este grande filme é o roteirista Herman Mankiewicz, mais que o próprio Orson Welles. Não sei se concordo. O que mais amo do cinema de Welles (os ângulos incomuns de câmera, as sombras, a fotografia em preto e branco) não estão no roteiro. Mas lógico que a escrita é fenomenal. É uma aula de como fazer uma biografia no cinema sem ser banal. Ajuda que Welles não tenha o menor apreço por Kane, que na verdade era o então magnata da imprensa William Randolph Hearst (que não permitiu que nenhum de seus jornais mencionasse o filme).5. A Malvada (All About Eve, 1950) - pra mim, esse filme deve ter a melhor narração em off de todos os tempos. É pura ironia do começo ao fim. Só que são principalmente as atuações estupendas que ficam na memória. E um elenco espetacular: Bette Davis, Anne Baxter, e George Sanders. Tem até a Marilyn Monroe aparecendo um pouquinho. E é para o mundo do teatro o que Rede de Intrigas é pra TV.6. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) - não é meu favorito do Woody Allen, mas o roteiro é inventivo, cheio de gracinhas interrompendo a narração. Por exemplo, enquanto Woody e Diane Keaton esperam numa fila de cinema, um carinha atrás deles não pára de falar. Quando Woody diz ao sujeito que ele (o sujeito) não entende nada de Marshall McLuhan (teórico que formulou os conceitos de “o meio é a mensagem” e da aldeia global), o carinha responde que dá um curso de mídia numa universidade. Woody decide então chamar o próprio McLuhan, que concorda com Woody que o professor está distorcendo tudo que ele escreveu. Woody conclui, “Se a vida fosse assim tão simples...”. 7. Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) - um filme narrado pelo cadáver. Tá bom pra você? Também tem toda uma homenagem a uma época do cinema que não volta mais. É um grande clássico. Mas Otto Friedrich conta no ótimo A Cidade das Redes como a primeira versão do roteiro quase afundou a obra. O público-teste odiou como Billy Wilder inicialmente abria o filme: com o narrador conversando com outros cadáveres num necrotério. De fato, só ver um corpo na piscina e saber que ele é do narrador já é suficiente. A propósito, já que a lista é de roteiros, não pode faltar um diálogo deste filme. A estrela decadente conta ao roteirista que pretende fazer um filme com um diretor mitológico, sem saber que o roteiro em questão é uma bomba. Otimista, ela insiste: “Meu astrólogo leu meu horóscopo e leu o horóscopo do De Mille”. E o protagonista: “Seu astrólogo leu o roteiro?”.8. Rede de Intrigas (Network, 1976) - pra quem quer entender como a mídia funciona, principalmente as notícias dadas pela televisão, Rede e Nos Bastidores da Notícia (em 51o lugar) formam uma dupla imbatível. O desabafo do âncora de TV em Rede, mandando seus espectadores gritarem pela janela “I'm mad as hell and I'm just...”, permanece atual até hoje. Ah, como estamos em tempos de Oscar, vale lembrar que Peter Finch (o âncora) tem a honra de ser o único a receber uma estatueta depois de morto. Será que agora Heath Ledger se iguala?9. Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959) - acabo de descobrir que este roteiro é baseado num filme alemão! Excelentes tiradas no que é considerado um dos filmes mais engraçados de todos os tempos. Mas imagine esse roteiro sem Jack Lemmon, Tony Curtis e Marylin Monroe dando voz aos diálogos de Billy Wilder e I. A. Diamond? Difícil, né?10. O Poderoso Chefão 2 (1974) - não entendo como o pessoal faz pra decidir qual é melhor, o Chefão 1 ou o 2. Eles tiram no par ou ímpar? Ambos são maravilhosos. Bom, entre esses primeirões, cinco são roteiros originais (escritos diretamente pra tela), e cinco são adaptados (de outro material como livros, peças - no caso de Casablanca e A Malvada -, e até de outro filme. Não vou comentar a lista toda aqui porque o post ficaria gigantesco. Mas note que o filme mais recente a aparecer entre os primeiros é Pulp Fiction (16o lugar), que já é de 1994 (quinze anos!). O mais recente mesmo deve ser Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança (de 2004, em 24o lugar). Gostei que Harry e Sally - Feitos um para o Outro foi lembrado (em 40o). A Nora Ephron e a Callie Khourie (por Thelma & Louise, em 72o) são as únicas mulheres da lista inteira. O único negro deve ser o Spike Lee, por Faça a Coisa Certa (pra mim, numa posição que deveria vir bem antes da 93a). Numa lista minha de melhores roteiros de todos os tempos, eu não incluiria De Volta para o Futuro (56o), Tubarão (63o), Leão no Inverno (em 71o; acho esse filme com a Katherine Hepburn chato), e Rocky (78o - o sindicato acha que um dos melhores roteiros da história foi escrito pelo Stallone!). Nem Campo dos Sonhos, Forrest Gump, Patton - Rebelde ou Herói?, e Meu Ódio Será sua Herança (88o, 89o, 94o, e 99o lugar, respectivamente - simplesmente não gosto deles). E lógico que eu incluiria mais filmes do Kubrick, principalmente Laranja Mecânica, O Iluminado e Nascido para Matar. E cadê Cabaret? E vários do Almodóvar, como Tudo Sobre Minha Mãe e Fale com Ela? Mas enfim, lista é lista, é algo muito pessoal. Esta ao menos serve como um bom guia de clássicos que a gente deve ver (ou rever). Crianças, façam seu dever de casa.
Lola, eu acho que essa questão do aborto é parecida com as bolsas dadas. Explico-me: a ideia de dar dinheiro é pra tentar diminuir as diferenças, ajudar quem não tem ou só tem dinheiro pra (mal) comer. Assim os pais podem comprar um brinquedo pros filhos, roupas, ter condições de dar um doce quando a criança pedir... Além do básico: pagar contas, ter um lugar pra morar, e feijão e arroz na mesa. Quando estava no colégio, uma professora contou a história da empregada dela, que resolveu se demitir porque fez as contas e viu que dava pra sobreviver, mesmo apertadinho, com o dinheiro que era recebido da bolsa. Sabe, isso me deixa meio triste, sem esperança que as coisas melhorem, porque tenho certeza que essa situação se repete. Entendo que a ideia seja boa, e acho louvável tentarmos diminuir as diferenças. Mas na prática... parece que as pessoas não entendem pra que serve aquele dinheiro. Agora quanto ao aborto: sim, se a mulher quiser abortar ela vai dar um jeito, em clínicas clandestinas e sem cuidado algum. E sim, a saúde e a integridade da mulher são questões importantes, logo a legalização é algo bom. Entendo que as mulheres não gostam de abortar. Sei que vou soar arrogante, mas lá vai. Tenho quase certeza que a legalização do aborto, que visa proteger as mulheres, vai ser usada de forma banal, já que será visto como "menos uma consequência a se arcar com o não-uso da camisinha". Como a bolsa, são recursos para serem usados de forma consciente, o que na prática não acontece. Babsiix, a empregada da sua professora decidiu usar o benefício pra “sobreviver”, e ainda assim você acha que “as pessoas não entendem pra que serve aquele dinheiro”? “Sobreviver” me parece um bom uso pro dinheiro. Eu ouço bastante essa queixa vinda de gente de classe média: “minha empregada não quer mais trabalhar”. Minha dúvida é: as pessoas que reclamam disso gostariam de ser empregadas? A maior parte das pessoas que recebe auxílio adoraria trocar de vida com as pessoas de classe média, ainda que fosse pra ter a vida sofrida e trabalhadora e cheia de sacrifícios que, aparentemente, só a classe média tem. Você não acha que se, de repente, o salário que se paga a uma empregada está muito próximo ao valor do auxílio, o problema está no salário, não no auxílio?Outra coisa que vivo ouvindo é que “país civilizado é outra coisa”. A classe média brasileira (no que é idêntica à classe média de outros países pobres) só falta babar ao elencar as qualidades dos EUA. Lá não ocorrem as barbaridades que ocorrem aqui, pensa essa classe. É um ledo engano: ocorrem, sim. Mas sabe o que realmente não tem nos EUA com a frequência que tem aqui? Empregada doméstica. Elas são muito caras pra uma família de classe média conseguir pagar. E isso da empregada morar na casa da família e trabalhar dia e noite, seis dias por semana, com uma folguinha “quando der”, simplesmente não existe. Nos EUA não tem quarto de empregada. Sabe, esses cubículos sem janela onde só cabe uma cama em pé e que nossos respeitáveis arquitetos decretam que todo lançamento imobiliário deve ter? Lá não tem. Americano de classe média pode até ter uma diarista pra limpar a casa uma ou duas vezes por semana, mas uma escrava doméstica é inviável. Vamos chamar as coisas pelo que elas são: é escravidão sim. Uma mulher pobre ter que abandonar sua própria família pra cuidar da dos outros, não ter vida além do trabalho, ter um emprego sem perspectivas, que pague um salário minúsculo, e precisar andar pelo elevador de serviço pra não se misturar com os patrões da casa grande? Sei não, tirando a parte do salário, parece bem parecido com o que sei sobre escravidão. E aí a gente condena quem tenta sair dessa vida? Tem que fazer malabarismo pra sobreviver com bolsa-família. Se um salário mínimo (que vem obtendo aumentos reais no governo Lula, e agora irá pra R$ 465 - pouquíssimo ainda, mas compare com os números do FHC) não cobre tudo isso que você falou, duvido muito que com a bolsa-família dê pra pagar aluguel, comida, roupas, transporte e ainda sobre pra comprar doces e brinquedos pro filho. Pessoas contra o auxílio criticam que alguns pobres comprem eletrodomésticos (em 24 prestações. Só classe média deveria poder comprar máquina de fazer pão, né?). Mas não há dúvida que o bolsa-família está injetando dinheiro na economia e contribui para que muita gente tenha melhorado de vida. O indicador que pela primeira vez na história 52% da população brasileira é de classe média já diz tudo. E não sei se você lembra quando, no início do governo Lula, período em que os benefícios foram ampliados, houve alegações de que esses pobres não eram de confiança, que os homens iam gastar tudo em cachaça, e que o melhor seria pagar o benefício à mulher da família. Puxa, parece que os pobres são mais inteligentes do que pensávamos.Aí você emenda esse assunto com a legalização do aborto. É, sem dúvida, uma ligação perigosa, porque esses temas costumam andar juntos desde a invenção da eugenia, lá por 1880. Os princípios são os mesmos: pobres, mulheres, negros, pessoas com desabilidades etc são seres inferiores, que não conseguem cuidar de si próprios. É pra melhorar a vida deles que o homem branco de classe média e alta interfere, tão altruisticamente. O homem branco sabe que pra mulher negra é ótimo trabalhar de escrava em sua casa! É pro seu próprio bem. Como seres inferiores, essas minorias são incapazes de tomar decisões conscientes. Por que, então, deveriam poder reproduzir? É ruim pra espécie humana! Só a classe média deveria ter filhos. Falando em reprodução: a gente reproduz o mesmo discurso do nazismo e nem fica corada!Quando a gente fala em legalizar o aborto, está no fundo falando das mulheres pobres. Mulher de classe média pode pagar uma clínica onde não corra risco de vida ao abortar, certo? Nos países onde o aborto foi legalizado, não houve nenhuma explosão no número de abortos, apenas despencou o número de mulheres mortas em consequência de abortos malfeitos. Aborto não substitui métodos anticoncepcionais de forma alguma. É um procedimento doloroso e traumático, e a maior parte das mulheres sabe disso. Não dá pra pensar que alguma moça vai falar pro parceiro: “Não vamos usar camisinha hoje. Se eu engravidar, faço um aborto e tá tudo bem”. É fato, infelizmente, que muitas mulheres - de todas as classes sociais - se preocupam com o prazer do parceiro em primeiro lugar. Somos criadas para sempre pôr a felicidade dos outros antes da nossa, e pra não discutir muito. Logo, se um parceiro diz que camisinha atrapalha mas que não tem problema não usar, porque ele “tá limpo” e vai gozar fora, várias mulheres acatam. Eu tive muitos parceiros sexuais durante a minha adolescência, nos anos 80, e era raríssimo algum que tomasse a iniciativa de usar camisinha. Se eu não exigisse e fincasse o pé, eles não estavam nem aí. E, adivinhe? Eram todos de classe média. Acho incrível como os homens costumam se manter à margem dessa discussão, como se mulher engravidasse sozinha. (Perceba nas campanhas anti-aborto como a mulher desaparece. Esta ao lado diz: "Assim que é concebido, um homem é um homem". Um homem, não uma mulher. E quem assina a pérola? O pai da genética moderna, sucessor direto da eugenia!). Homem em geral só aparece pra dar pitaco contra o aborto. Lógico: não é ele que vai ter que parar de estudar ou trabalhar pra se dedicar ao bebê. Sinal de que o machismo segue forte na nossa sociedade é que a responsabilidade pela gravidez ainda recaia inteiramente sobre a mulher. A falta de educação sexual contribui, lógico. Muita gente não tem a menor ideia de como se engravida ou dos métodos anticoncepcionais possíveis. E muitos desses métodos estão disponíveis em postos de saúde. Tem quem ache que não se engravida na primeira transa. E tem a teoria da infalibilidade dos jovens, que pensam que as coisas ruins (e gravidez precoce é algo ruim) não acontecem com eles, só com os outros. Tem casalzinho apaixonado que pensa que o amor vai triunfar acima de tudo, que o amor é antídoto contra gravidez e Aids. E é óbvio que essas crenças não são privilégio dos pobres. Quando o sexo for encarado com mais naturalidade, como algo que todo mundo faz e é bom (e, portanto, vamos fazer do jeito certo, que é se cuidando), não como um tabu ou motivo de vergonha pra mulher, os casos de gravidez indesejada e de abortos vão cair. Enquanto isso, legalizar o aborto é uma questão de justiça social. De dizer pra mulher pobre que ela também tem o direito, como a mulher rica, de interromper uma gravidez. Isso se ela quiser. A decisão deve ser dela. Não de alguém de classe média que, no fundo, vê a pobreza como algo positivo. Porque, se os pobres acabarem, aí sim vai ficar difícil encontrar empregada doméstica.
- Olha bem pra mim: eu não mereço um outro Oscar?
A Troca é um filme poderoso, e gostei dele. Lamento apenas que ele tenha meia hora a mais do que deveria e uns cinco finais diferentes - pra tudo se acabar naqueles letreiros explicativos preguiçosos (como quase todos os oscarizáveis que vi até agora: Milk, Frost/Nixon, Foi Apenas um Sonho). Não chorei, mas fiquei revoltada com toda a situação mostrada. Pensando bem, deve ser a produção mais feminista da temporada, e foi logo o machão Clint Eastwood que a dirigiu (ele já havia exposto sua sensibilidade em Imperdoáveis e As Pontes de Madison). O filme inteiro é sobre instituições masculinas fazendo de tudo para oprimir e controlar as mulheres.Se não, vejamos: Troca conta a história real de Christine, uma mãe solteira (Angelina Jolie) no final dos anos 20. Ela trabalha pacas, supervisionando operadoras de telefone, e cuida sozinha do seu filho de 9 anos. Um dia, ela se atrasa um tiquinho, por cortesia de seu chefe (que é boa pessoa, mas incapaz de entender que uma mãe tenha que ir correndo pra casa), e seu filho desaparece. Ela liga pra polícia, desesperada, que lhe informa que não dá pra fazer nada antes de 24 horas de sumiço (isso continua em todo lugar, imagino, porque a criança costuma voltar logo). Mas o menino não reaparece. Cinco meses depois, ótimas notícias: o guri foi encontrado, diz a polícia. A má notícia é que o menino não é exatamente o filho da Christine. Não, não, o gênero não é terror, então não é nada como Cemitério Maldito, em que uma criança volta do túmulo. É só que a polícia é incompetente, corrupta e arrogante o suficiente pra querer convencer uma mãe que ela não reconheceria seu próprio rebento. Sabe como Plano de Vôo seria mais interessante se, em algum momento, passasse pela nossa cabeça que a Jodie Foster estaria fantasiando que sua filhinha sumiu? E uma das sensações de O Bebê de Rosemary é que não sabemos, durante um tempo, se a protagonista está apenas imaginando que há uma conspiração contra ela. Pensei se A Troca poderia criar esse suspense colocando uma sementinha de dúvida na nossa mente - de repente o menino cresceu e Christine não o reconhece mesmo? Mas descartei isso rapidinho. Simplesmente não é possível. Portanto, se um detetive diz “Este é seu filho, senhora", e a mãe diz “Não é meu filho” (a frase mais ouvida no filme), não tem a menor chance da gente acreditar na polícia. Se fosse um bebê, ainda ia, porque nenês são parecidos. Mas um garoto de 9 anos?! (tudo bem que eu não soube distinguir os vários meninos que surgem no filme, e pra cada um eu perguntava: “É o filho dela?”. Mas eu não sou a mãe).E o pior é que Chris tem provas que the dingo took her baby, quer dizer, que aquele não é seu filho. O menino que lhe foi devolvido é mais baixo e é circuncidado. O detetive manda um médico a casa de Chris para lhe garantir que, apesar desses detalhes, o garoto é sim seu filho. Com a ajuda de um reverendo (John Malkovich), ela fala à imprensa para denunciar esse cenário surreal. A polícia, contrariada, decide interná-la num manicômio. Enquanto isso, um outro investigador descobre, totalmente sem querer, o trabalho de um serial killer. Não é terrível? A violência contra Christine deve tocar fundo a cada um de nós que já passou perto de um tira desonesto. Sabe quando o sujeito inspecciona o seu carro numa estrada vazia no meio da madrugada e você fica pensando: “E se ele colocar uma trouxinha de alguma droga no meu porta-mala e me levar preso?”. Sorry, eu não confio muito na polícia. Considero-a despreparada quando preciso dela e ameaçadora e autoritária quando não preciso. Adoraria ter uma imagem da polícia de como ela deveria ser - uma instituição democrática, a serviço da população. Mas não é assim que a vejo, definitivamente. Logo, a ideia de que ela pode me jogar num hospício para me desacreditar, ou sumir com meu corpo, não soa como algo que ficou pra trás numa Los Angeles na época da depressão. E essa premissa soa crível não apenas pra gente, que mora num país pobre, mas pros países ricos também (Jean Charles, anyone? Rodney King?). No hospício, Chris conhece outras mulheres que foram colocadas lá por denunciarem maus tratos policiais. Amy Ryan (indicada ao Oscar de melhor coadjuvante em 2008, pela sua ótima atuação como uma mãe com filha desaparecida em O Medo da Verdade) faz uma prostituta que apanhava de um cliente policial. Quando decidiu falar, foi internada. Ela representa bem um corpo que não lhe pertence (ecos da proibição do aborto?), assim como a cena em que Christine, na sua chegada, é lavada e revistada no meio das pernas. Mas não é somente por ser prostituta que o corpo de Amy é propriedade pública. No manicômio, fazem o que querem com ela. E ela conta, de leve, já ter perdido dois filhos por conta de um médico açougueiro. Esse é um tema que se repete: a crueldade dos homens com mulheres e crianças. Só a denúncia desse quadro já faria de A Troca um filme feminista. No entanto, é quando Amy ensina a tímida Christine um novo grito de guerra ("F***m-se eles”) que a trama sai do campo da vitimização para o da mobilização. Chris se transforma. Até então, Angelina a interpreta (muito bem) com a mão cobrindo a boca sempre que expressa alguma emoção. A partir daí, Chris vai chorar muito menos e pôr ao menos um homem contra a parede (literalmente). E repare também como, nas manifestações de rua mostradas, a maior parte dos participantes é mulher. Assistindo à Troca, pensei direto no excelente Los Angeles, Cidade Proibida, que também lida com corrupção policial, mas duas décadas depois. Deveria tê-lo associado com Chinatown, que se passa mais ou menos na mesma época e lugar, e tem tudo a ver com opressão das mulheres. Claro que é impossível ver uma história com hospício sem lembrar de Um Estranho no Ninho, se bem que Garota Interrompida (que deu o Oscar de coajduvante a Angelina) e até Olga vieram mais à tona. Porém, o filme se sustenta por si só, sem precisar de comparações. Quem diria? Eu, que não dava um tostão furado por ele (não gostei do trailer), acabei vendo uma enorme homenagem às mulheres que lutam num mundo corrompido pelos homens.
UPDATE: Ah, uma coisa que ninguém percebeu até agora, mas tem um erro no meu título: se eu digo que A Troca é o filme MAIS feminista da temporada, sugiro que tem mais de um. Mas tem? Quais seriam os outros? Não sei se há outros. Talvez Revolutionary Road (Apenas um Sonho)? Não tenho certeza!