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sábado, 1 de maio de 2010

PROFESSOR UNIVERSITÁRIO É TUDO COMUNISTA

Falei ontem sobre o clássico Vinhas da Ira, mas não contei as circunstâncias. Seguinte: os três primeiros anos de um professor universitário numa federal são de estágio probatório. Além das aulas, há um monte de projetos para realizar. Entre eles existe a formação continuada. Os novos docentes se encontram três vezes por ano para trocar ideias e devem participar de ambiências temáticas. Uma delas é sobre cinema. Foi essa que passou Vinhas da Ira. Depois do filme, houve um debate, o que é altamente desejável – afinal, qual o propósito de mostrar pra um grupo um filme que se pode ver em casa se não haverá uma discussão?
O que não quer dizer que eu não me surpreenda. Sabe aquele mito que todo professor universitário é de esquerda? Então, é mito. Todo e qualquer professor universitário que já trocou meia dúzia de palavras com seus colegas sabe que há tanta gente de direita quanto de esquerda. Lógico que os de direita, só pra variar, não se consideram de direita. Nem o Tio Rei se considera de direita! E imagino que, se questionados sobre que lado do espectro político estão, meus colegas responderiam que essa divisão entre direita e esquerda acabou com a queda do Muro de Berlim, quando eles venceram, lógico. Ou você já ouviu alguém de esquerda dizer que “essa divisão não existe mais”? Não, né? I rest my case.
Óbvio que meus colegas professores universitários podem defender a ideologia que quiserem (e, só pra constar: ideologia não é só de esquerda. Tudo é ideologia. Aquilo que você vê como natural, “é assim que as coisas são”, também é ideologia). Mas me espanta um filme hiper de esquerda como Vinhas da Ira (1940) – um filme que não poderia ter sido feito oito anos depois, na época do Macartismo, porque seria taxado de comunista (inclusive, tanto Steinbeck quanto John Ford foram investigados pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas por causa da defesa dos sindicatos exposta em Vinhas) – ser interpretado pelos meus colegas como... o triunfo individual de quem trabalha!
Putz, não é por nada não, mas é preciso muito esforço pra interpretar Vinhas dessa forma. Até porque não há triunfo nenhum. O filme termina com a família separada, dirigindo-se sabe-se lá pra onde, sem nenhum perspectiva. E já falei do discurso final, em que se prega a união de milhares de pessoas do povo contra um sistema explorador. Mas não, pra um professor presente (e não sei de que área são esses docentes), Vinhas serve como um ótimo exemplo pra nós, brazucas. Porque os americanos passaram por tudo isso na Depressão de 30, e pouco tempo depois superaram as dificuldades e já eram o povo mais rico do mundo. Como já dizia aquele slogan partidário, o Brasil pode mais!
Um outro professor reclamou dos que pensam que o capitalismo está no fim, porque o capitalismo sempre dá a volta por cima. No capitalismo não há crises, há oportunidades! E deu um exemplo: em Fortaleza havia uma rua cheia de concessionárias de automóveis. Com a crise de 2008, quase todas fecharam. Só sobrou uma. Mas essa daí, se aguentar firme, quando a crise passar, ficará rica, pois será a única da rua. Não é uma maravilha? Eu respondi: “Ô. Pra quem sobrevive, deve ser ótimo”. E o carinha: “Exato: pra quem sobrevive!”. O ardor com que ele disse isso me fez lembrar de mais uma diferença entre esquerda e direita. Pra esquerda, darwinismo social e a sobrevivência do mais forte não são coisas positivas. Pelo contrário. Indicam um capitalismo selvagem, que não se preocupa com o ser humano. Mas, pra direita, não importa quem morre no caminho. O sobrevivente é um herói, um vencedor: he made it!
Mais adiante um professor afirmou que lá no norte eles só fazem greve quando realmente precisam (ao contrário de nós, aparentemente, que cruzamos os braços só pelo prazer da baderna), e um outro disse que hoje os Estados Unidos não permitem mais que seus empregados sejam tratados assim, do jeito demonstrado por Vinhas. Eu: “É, se o empregado for americano, não mesmo. Mas eles vão pra um país de terceiro mundo e agem exatamente desse jeito, usando esse mesmo sistema de exploração”. Meu colega não gostou, disse que não é assim, e que além do mais, quem são eles? Pois é, é bem isso que o filme tenta passar: que no capitalismo não há eles, não há um rosto. Ninguém pra culpar! (o excelente documentário A Corporação corrobora essa tese).
Daí um professor com uma cruz no peito sugeriu que o próximo filme exibido fosse Lenin e Eu (ele se referia a Adeus Lenin): “Já que estamos criticando o capitalismo, é bom mostrar filmes que criticam... o outro lado”. Eu só não entendi o plural: quem “estamos criticando o capitalismo”, cara pálida? Que eu saiba, só eu estava (os outros eram ardorosos fãs do sistema). Ou melhor, eu e o filme que havíamos acabado de assistir.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

CLÁSSICOS: VINHAS DA IRA / O filme mais à esquerda que Hollywood já fez

Faz um tempão que não via Vinhas da Ira, este clássico de 1940. E mais tempo ainda que não leio o romance do John Steinbeck em que foi baseado. Li o livro em inglês na minha adolescência, e fiquei impressionada. Tanto que um dos primeiros artigos "acadêmicos" que escrevi na minha vida (quando eu tinha 16 anos) foi um comparando Steinbeck com Graciliano Ramos, Ratos e Homens com Vidas Secas (outro livro que amo de paixão). Porque, pô, há montes de semelhanças: ambos escreveram na mesma época sobre as desgraças dos sem-terra dos anos 30. E em ambos a polícia aparece como aparato puramente repressor. Mas, enfim, não era sobre isso que eu ia falar.
Vinhas da Ira. Lembro até hoje do final do livro, absolutamente marcante. Rosasharn, irmã do protagonista, é uma moça mimada e individualista. Seu marido a abandona grávida. No fim, ela dá à luz a um bebê natimorto, no meio de uma enchente, em que sua família mais uma vez perde tudo. E nessa hora a moça aproveita o leite que sai de seu peito para amamentar um homem morrendo de fome. Obviamente, amamentação de adultos não entrou no filme. Hoje não entraria, imagine setenta anos atrás. Mas, apesar dessa parte fundamental (em que uma personagem individualista aprende o sentido de comunidade) ter ficado de fora, a versão pro cinema é um filmaço.
Começa com Tom Joad (Henry Fonda, pai de Jane e Peter, avô de Bridget), recém saído da prisão, tentando encontrar a família de lavradores pobres em Oklahoma. É a Grande Depressão, embora ninguém mencione essa palavra. A casa continua lá naquele pedacinho de terra que sua família cultivou durante cinquenta anos, mas seus parentes tiveram que se mudar. A terra é de uma empresa agora, e a empresa quer tratores, mais eficazes que meros trabalhadores rurais. Todas as famílias do local são mandadas embora. Um sujeito, dono de sua terrinha, quer saber em quem atirar. Quem é o responsável pela fome de sua família? Não há um responsável. O carinha que lhe entrega uma ordem de despejo é apenas um empregado. O outro que chega com um trator pra derrubar as casas é um morto de fome, contratado para fazer esse serviço sujo (“Se eu não fizer, há milhares que farão”). Mas e aí, e o dono da empresa? Não, quem manda nele são os bancos. Ah, então eu vou ao banco e atiro no dono, pensa o novo sem-terra. Não, quem trabalha lá é apenas um gerente que mal sabe o que está acontecendo. É bem a face do capitalismo: um monstro sem face, sem responsáveis. Sem que haja um culpado, fica mais fácil acreditar que esse sistema de exploração é natural, que é assim que as coisas são e sempre serão. Como se a Depressão de 30 ou a nossa última crise, de 2008, tivesse caído do céu!
Quando Tom encontra sua família, todos estão indo tentar a sorte na Califórnia. Afinal, receberam um panfleto dizendo que lá se paga bem na colheita de frutas, e que 800 empregados serão contratados. Não sabem que dez mil desses panfletos foram impressos, ou que vinte mil sem-terra apareceram, ou que o salário pago não será suficiente para bancar sua sobrevivência. Tal e qual nossos retirantes nordestinos, a família Joad parte em busca da Terra Prometida. No mesmo pau-de-arara. Os avós morrem no caminho, as crianças passam fome. E, quando chegam à Califórnia, deparam-se com um sistema prontinho pra explorá-los. Por exemplo, um empreendedor vai procurar no acampamento de desabrigados mão de obra barata para trabalhar em sua colheita. Um lavrador pede por escrito qual será o salário, ao que o empreendedor responde: “Ah, isso depende. Veremos”. Um policial já está ao lado dele para “manter a ordem” (pois é, qual ordem?) e prender o “agitador”. O sujeito tenta fugir, e o policial atira nele, atingindo uma mulher.
Os Joads vão de campo em campo, passando fome e vendo só miséria e repressão policial à qualquer tipo de revolta. Finalmente, vão parar num acampamento com condições tão boas que parece piada. O diálogo entre o diretor do acampamento e Tom é mais ou menos assim:
- Fiquem com a cabana número 25. Lá vocês vão encontrar luz e água corrente.
- O quê? Água corrente? Poderemos lavar nossas roupas?
- Isso. E, depois, se vocês quiserem, podem participar das comissões que fazem e mantêm as leis do acampamento.
- Como assim, comissões? Quem manda aqui são as pessoas que vivem aqui, não a polícia?
- São as pessoas. A polícia não pode nem entrar aqui. Apenas em caso de tumulto. Você pode falar com os membros da comissão no baile de sábado e...
- Baile? Vocês têm bailes?
- Os melhores da região. Todo sábado.
- Mas... Mas quem é responsável por este acampamento?
- O governo.
- E por que não há mais acampamentos como este em todo lugar?
- Não sei. Talvez você descubra e possa me dizer.
Juro que não tô inventando! Nessa hora me lembrei do pessoal que quer acabar com o Bolsa Família porque só dá o peixe e não ensina a pescar. Mas voltando: o diretor do acampamento, no fundo um servidor público, é o primeiro personagem no filme inteiro que trata bem à família Joad. Mas Tom logo vê que há alguns problemas. Tipo: um cartaz do lado de uma torneira diz “Mantenha limpo o acampamento e conserve água. Feche a torneira”. Uma mulher acaba de encher um balde e vai embora, deixando a torneira aberta.
E há os agentes infiltrados. Num dos bailes, policiais à paisana entram no baile com a intenção de provocar um tumulto. Assim, a força policial poderá invadir o acampamento, esmagando os agricultores (não sei porquê, mas esse negócio dos policiais à paisana me fez lembrar do protesto dos professores em São Paulo). Com a força da comunidade, esses agentes conseguem ser detidos e colocados pra fora antes que o tumulto comece.
O filme todo mostra o longo aprendizado de Tom. No fim, ele vira líder sindical. Ok, sindical talvez não, mas comunitário, com certeza. Ele diz pra sua mãe que andou pensando na injusça que é uma só pessoa ter um milhão de acres e explorar cem mil trabalhadores para trabalhar nela, pagando-lhes salários de fome. E que se talvez todas essas pessoas se unissem e gritassem, juntas... Ele acha que cada pessoa não tem uma alma individual, mas um pedacinho de uma só alma gigantesca, comunitária.
E olha só a última linha do filme, dita pela mãe (interpretada por Jane Darwell, que mais parece uma figurante tirada de alguma obra comunista do Einsenstein): “Os ricos aparecem e somem, e seus filhos não prestam e somem também. Nós somos as pessoas que sobrevivemos. Eles não podem nos varrer da Terra. Nós continuaremos pra sempre, porque nós somos o povo”.
Só faltou tocar a Internacional Socialista na trilha sonora!