Esta crônica eu escrevi um mês depois de começar meu mestrado, ou seja, em 2003. Reproduzo-a aqui porque a) ela elucida mais o caráter, ou falta de, do maridão; e b) tenho amigas cuja especialidade é Fonética, e senti uma vontade incontrolável de cutucá-las. Espero que quem não tenha nada a ver com a história também goste. Algum dia, se alguém perguntar nos comentários, eu conto como fui na prova.

SONS GUTURAIS
É um pouco decepcionante, confesso, entrar num mestrado de literatura e os primeiros pontos que eu aprendo são... sons guturais. Certamente deve haver coisas que eu odeie mais que Fonética. Por exemplo, detesto muito mais a guerra, a fome, a crueldade contra pessoas e animais, mas fonética ocupa um lugar de destaque na minha lista de Temas Abomináveis. O maridão, pra não perder o costume, aproveitou pra me esculhambar.
Ele: “Sei por que você tem aversão à Fonética. É porque você não está acostumada à última parte da palavra, ‘ética’ ”.
Eu: “A última parte da palavra é ‘nética’, sua metástase retardada!”.
Ele: “Aposto que você fala pras suas colegas: ‘E aí, estudou pra Fono?’".
A fonética adota uns símbolos extraterrestres que, pra mim, é tudo grego. Mas o pior é que vai ter prova. Quando a professora proferiu as arrepiantes palavras “sem consulta”, você precisava ver o pânico estampado nos rostos. Minha reação inicial foi me jogar pela janela, mas notei que esse ato impensado poderia causar a morte de um transeunte que tivesse o azar de passar embaixo, e mudei de idéia. Logo me conformei e vi que o único jeito de sobreviver à Fonética seria decorar umas tabelas. Agora tenho o final de semana inteiro pra memorizar o que aparenta ser a
tabela periódica. Sabe aquela dos símbolos químicos? É parecida. Colei as tabelas no banheiro pra poder visualizá-las. O maridão olhou pras paredes do banheiro, olhou pro meu estado de nervos, e avisou, solidário: “Tchau, amor. Vou viajar. Volto no próximo fim de semana”. Depois de um ou dois tabefes carinhosos, ele acabou ficando. Mais tarde, ele perguntou se eu tinha certeza que as tabelas eram de Fonética mesmo, pois, pra ele, pareciam esquema de assalto a banco.
Com minha mente privilegiada, decorar tabelas não deve ser difícil. Tenho vários truques. Há umas tais de consoantes mudas: p, t, k, s, f. Como lembrar disso? Ué, eu coloquei vogais no meio e formei uma frase: “Piteko si fu”. E, pelo jeito, Piteko não será o único.