Outro dia estava falando com meus alunos do belo conto “A História de uma Hora”, da americana Kate Chopin (pode ser lido em inglês aqui; se alguém descobrir uma tradução em português, ou se quiser traduzi-lo pro português, me avise!). Em menos de duas páginas, esta obra de 1894 consegue descrever toda a transformação de uma mulher ao ser informada que seu marido morreu num acidente de trem. É o amigo do marido que lhe conta sobre o acidente, suavemente, preocupado com seu coração fraco. A primeira reação da protagonista é de choro compulsivo e puro desespero. Mas em seguida, ao ficar sozinha em seu quarto e olhar pela janela, uma palavrinha toma conta dela: “Livre! Livre! Livre!”. Ela passa a vislumbrar os dias em que não precisará viver para ninguém, fora ela mesma, e fica muito feliz, apesar de perceber que não deveria celebrar a morte de seu gentil esposo. Quando ela sai do quarto e desce as escadas, vê o marido entrar pela porta. Ele não havia andando de trem naquele dia, e nem sabia do acidente. Eu adoro o corte abrupto que o conto dá, indo direto pra sua última frase: “Quando os médicos chegaram, disseram que ela havia morrido de doença cardíaca ― da felicidade que mata”.
O conto é um primor de concisão e também de ironia, sendo constantemente estudado para ilustrar todos os tipos de ironia. Mesmo que minha interpretação seja muito limitada ― eu só consigo ler o conto como uma história feminista ―, os alunos costumam gostar das aulas em que estudamos Chopin. Como exemplo de análise, eu levo um artigo que não é da área de literatura, mas da linguística. Da Linguística Sistêmica Funcional, pra ser mais exata. Suzanne Eggins, a autora dessa análise, pegou o conto e o dividiu em sete grupos: a protagonista, o marido, o amigo do marido, a irmã, “algo” (nunca especificado no texto), o quarto, e os olhos da protagonista. Para cada grupo, colocou as referências do conto a essa categoria. No caso da protagonista, todas as palavras que aparecem relacionadas a ela, como “ela”, “seu corpo”, “seus braços”, “seu pescoço”, “sua alma”, e por aí vai. Depois de agrupar as referências, Eggins percebeu que a maior parte das palavras que se referem à protagonista são sobre partes do seu corpo. Logo, ela concluiu que a falta de liberdade de que sofre a mulher é por não sentir-se dona de seu próprio corpo. Claro que dá pra chegar a essa interpretação sem agrupar referências, mas fica com um ar mais científico, né?
Mas a questão é: adivinha qual a estação em que se passa aquela horinha do conto? Só tem uma possível, certo? Primavera! Símbolo de despertar, de renascimento, de liberdade, de alegria. Lá pelas tantas a protagonista fantasia sobre quantas primaveras e verões terá pela frente. Aí é que vem o choque cultural. Quando pergunto pros meus alunos o significado da primavera, eles sempre me fitam com um olhar de “esse papo tá muito estranho” e “só sei disso na teoria”. Porque a gente tá em Fortaleza, e aqui não há estações! É sol escaldante o ano todo. Dizem que nos dois ou três primeiros meses do ano chove (este ano, excepcionalmente, não choveu), e que nos meses em que vocês se cobrem de edredons e cobertores, aqui rola uma brisa. Pra mim parece tudo bastante igual: eu suo direto, só visto roupas leves, e tomo banho de água fria. Na minha casa, assim como em 90% dos lares da região, nem tem chuveiro elétrico. A opção pra temperatura da água é fria ou fria. E olha que em muitos dias ela parece quente demais...
Não estou reclamando! Não sinto falta do frio. No ano em que morei nos EUA, sempre que eu dizia ser do Brasil, os americanos abriam um sorriso. Mas, mesmo instantaneamente adorando o Brasil, eles acrescentavam que não morariam aqui, porque preferiam um lugar com quatro estações. No começo eu até aceitava o argumento, mas depois de um tempo pude constatar que o conceito deles de quatro estações é bem relativo, e passei a responder: “Que quatro estações?! Vocês têm inverno seis meses por ano!”. E, enquanto a gente associa primavera e verão com praia e sensualidade, frio de 15 graus negativos não combina com paixão, a menos que seja ao lado de uma lareira e em cima de um tapetão felpudo. Vamos admitir: se a protagonista de “A História de uma Hora” tivesse olhado pela janela do seu quarto e visto neve, du-vi-do que seu pensamento seria “Livre! Livre! Livre!”.
Mas a questão é: adivinha qual a estação em que se passa aquela horinha do conto? Só tem uma possível, certo? Primavera! Símbolo de despertar, de renascimento, de liberdade, de alegria. Lá pelas tantas a protagonista fantasia sobre quantas primaveras e verões terá pela frente. Aí é que vem o choque cultural. Quando pergunto pros meus alunos o significado da primavera, eles sempre me fitam com um olhar de “esse papo tá muito estranho” e “só sei disso na teoria”. Porque a gente tá em Fortaleza, e aqui não há estações! É sol escaldante o ano todo. Dizem que nos dois ou três primeiros meses do ano chove (este ano, excepcionalmente, não choveu), e que nos meses em que vocês se cobrem de edredons e cobertores, aqui rola uma brisa. Pra mim parece tudo bastante igual: eu suo direto, só visto roupas leves, e tomo banho de água fria. Na minha casa, assim como em 90% dos lares da região, nem tem chuveiro elétrico. A opção pra temperatura da água é fria ou fria. E olha que em muitos dias ela parece quente demais...
Não estou reclamando! Não sinto falta do frio. No ano em que morei nos EUA, sempre que eu dizia ser do Brasil, os americanos abriam um sorriso. Mas, mesmo instantaneamente adorando o Brasil, eles acrescentavam que não morariam aqui, porque preferiam um lugar com quatro estações. No começo eu até aceitava o argumento, mas depois de um tempo pude constatar que o conceito deles de quatro estações é bem relativo, e passei a responder: “Que quatro estações?! Vocês têm inverno seis meses por ano!”. E, enquanto a gente associa primavera e verão com praia e sensualidade, frio de 15 graus negativos não combina com paixão, a menos que seja ao lado de uma lareira e em cima de um tapetão felpudo. Vamos admitir: se a protagonista de “A História de uma Hora” tivesse olhado pela janela do seu quarto e visto neve, du-vi-do que seu pensamento seria “Livre! Livre! Livre!”.
Moro na Bahia e aqui também só tem uma estação. Faz calor o ano inteiro e como eu não suporto suar, nem a sensação do sol queimando minha pele é um martírio sair ao ar livre.
ResponderExcluirMês passado fui pra Sampa e qual não foi minha felicidade em pegar 24 graus de temp. máxima? 24 aqui é a mínima, e isso no inverno! Claro que pegar 12º, ou um pouco menos, no Ibirapuera à noite com uma camisa fina e um bermuda foi demais para mim, mas preferi ficar trincando os dentes a suar.
eu só queria acrescentar q a Kate era prata da casa aqui de Nova Orleans e nós, aqui, tb temos um verão de 40 graus q dura 6 meses e não temos estações!! :)
ResponderExcluirGente, esse conto é da Kate Chopin? Obrigada...adoro esse conto que li numa aula de inglês nos Estados Unidos, não foi exatamente analisado, só comentado e não sabia mais de quem ele era. Que maravilha, vou reler.
ResponderExcluirÉ que nessa aula lemos também um texto de Jack London, e o conto ficou relacionado ao nome dele, mas agora que você disse de quem é pareceu bastante óbvio, tem toda a cara de Kate Chopin mesmo.
Abraço
Pois é, Alex, a Kate Chopin está sempre associada a Nova Orleans. Aliás, a gente fala muito de Nova Orleans quando lê a novella The Awakening, tb dela. Incrível como a cidade onde vc mora está sempre ligada à sensualidade, calor, erotismo... Aliás, como o Brasil. É mais fácil pensar em sexo quando vemos pessoas com pouca roupa suando do que quando vemos gente hiper agasalhada afundando na neve. Até porque dá pra transar na praia, mas acho que transar ao ar livre na neve, dá pra morrer, não?
ResponderExcluirBom, eu moro numa cidade tão quente quanto Fortaleza - provavelmente até mais, já que aqui nem praia tem. Digo, ter tem, mas dista uns 40km.
ResponderExcluirGosto de sentir frio, de chuva, de tempo nublado! Em 2012 farei especialização (se passar nas provas), e os lugares que cogito são São Paulo e Fortaleza. A primeira ganha no quesito clima, hehe. A segunda, no quesito proximidade com a minha cidade. Vamos ver o que o futuro me reserva.
Mas enfim, pelo menos a gente não gasta com chuveiro elétrico, né?
Lola, meu nome é Priscila e adorei este post. É tão legal analisar um texto por seus signos e entender o signo dentro de uma cultura... Deve ser bem legal pra quem tem primavera perceber que o mundo anda mais florido e mais quente. Sabe "Um sonho de liberdade"? Ele é um dos contos de Stephen King em "as 4 estações" e representa a primavera. Legal, né?
ResponderExcluirEu simplesmente precisava de um texto com este!
ResponderExcluirLola, nêga, quando eu crescer quero ser você, mudar para Fortaleza e ensinar literatura para a moçada. Putz, que vida maravilhosa a tua, poder tomar banho frio todos os dias, que maravilha para a pele.
ResponderExcluirAmei o conto, não conhecia nem a autora, se tiver um tempo até traduzo, adoro traduzir. Exacerba meu lado literário.
Eu não entendo nada de estações do ano mas mesmo assim tenho que engolir mais de seis meses de inverno por ano e isso é um fato muito triste na vida de uma carioca, muito triste...
Abs,
Cláudia
Ai, Lola, eu tô sofrendo tanto com o frio que me desabei em lágrimas ao fim do post... Eu adoro o frio... do Brasil. Sempre quis morar em lugar frio, porque tenho pressão baixa e no calor fico mole demais. Mas descobri que no frio eu durmo que nem urso, fico hibernando...
ResponderExcluirEm outras palavras menos "divagantes", você tem razão: frio brocha, infinitamente mais do que calor...
Quero morar sempre onde tenha 3 meses para cada estação, senão eu enjôo!
ResponderExcluirChega março e eu suspiro pela volta do frio. Chega agosto e eu suspiro pela volta do calor.
Eu so me lembro uma vez meu namorado francês conversando com minha avo:
ResponderExcluir- Vocês aqui do Brasil não têm frio, nem sabem o que é neve!
- Claro que sei! Não é uma coisinha branca que cai do céu?
Eu acredito que só fala que gosta de frio quem nunca sentiu frio de verdade... Moro a quase 4 anos no norte da Alemanha e detesto o frio... detesto ter que vestir um monte de roupa, meia calca por baixo da calca, casacos pesados, botas a prova d'agua, etc... E até o final do ano passado eu achava que ja conhecia o frio, e já o odiava, mas depois do inverno que tivemos, tive certeza absoluta. É desumano! Eu queria hibernar junto com os esquilinhos e coelhinhos e so voltar na primavera, ou voar para o sul...
ResponderExcluirO pior é que aqui temos sim as 4 estacoes definidas, mas a primavera e o outono duram algo como 2 semanas cada um... o verao, por sua vez (pra quem compara com o brasil) dura no máximo 2 meses, ou seja, os outros 9 meses sao inverno!!! Ou chove, ou gea, ou neva...De setembro a maio...
Lola, comecei a ler teu post e me emocionei. Há vários anos, uma prima muito querida estava fazendo curso de tradução profissional, não sei se no IBEU ou na Cultura Inglesa. Eu sei que ela teve, como um dos "assignments" traduzir exatamente esse conto. E acabou me escrevendo, me apresentando o original da Kate e a tradução que ela fez para o curso, que eu pessoalmente achei primorosa.
ResponderExcluirA gente ficou dias conversando sobre o conto, sobre as sensações que ele nos despertava, sobre como a gente (ela tem a mesma idade que eu, casada há tanto tempo quanto, filhos da mesma idade, enfim, muitas coisas em comum) sabia exatamente como a personagem do conto tinha se sentido, mesmo sabendo que amamos tanto nossos maridos. Foi um momento muito especial na nossa amizade.
Vou mandar a tradução dela pro teu e-mail. bjs
"se a protagonista de “A História de uma Hora” tivesse olhado pela janela do seu quarto e visto neve, du-vi-do que seu pensamento seria “Livre! Livre! Livre!”. "
ResponderExcluirrsrs... Sei não, Lola, do jeito que tantas mulheres se sentiam presas a vida toda, talvez ela teria essa sensação de liberdade independente do clima. Sairía correndo debaixo da neve e gritando que estava livre, mesmo debaixo de um frio de quinze graus negativos...
Quanto às estações, acho que aqui em Minas realmente as quatro estações são bem definidas, muito frio no inverno, um frio mais suave no outono, início do calor na primavera e muito calor no verão, com exceção das chuvas do começo do verão e do final, que em alguns anos infelizmente se prolonga pela verão inteiro...
ResponderExcluirCerta vez assisti a palestra de um grande cientista que visatava o Brasil pela primeira vez.
ResponderExcluirUm brasileiro saiu com a seguinte pergunta: "Qual a receita para ser um cientista renomado?"
Ele nos respondeu sorrindo:
- "A primeira coisa a fazer é ir embora desta país."
Todos ficamos espantados.
Ele completou:
"Com todas estas praias, esse clima ameno e essas mulheres lindas eu nunca teria perdido um minuto da minha vida estudando matemática."
Lá em Maceió é quente o ano todo, mas no inverno chove que é uma beleza. Aí a temperatura cai pra uns 21-22 graus e todo mundo tira o casaco do armário. Eu acho até graça... Aqui em Sanfrans no verão a temperatura máxima não chega nem a mínima do inverno em Maceió.
ResponderExcluirOi, Lolíssima,
ResponderExcluirquando me mudei para Chicagoland, meu marido tinha um plano B caso eu não aguentasse o frio. Um plano B para que o casamento não caminhasse para um divorcio por causa das temperaturas absurdamente frias daqui no inverno. Felizmente não precismaos do plano B e eu me adapter relativamente bem ao frio. E eu venho da Bahia. E amo praia. O interessante é que amo de paixão o fall americano. É minha estação predileta.
Não conhecia essa autora. Vou ler com o olhar feminista, of course. Obrigada.
bjkas
* me adaptei.
ResponderExcluirEstá aqui uma tradução que fiz faz muito tempo:
ResponderExcluirhttp://paulodaluzmoreira.blogspot.com/2010/11/desencavando-outra-traducao-minha.html
Em 88 deu a bilôra no tempo do Recife e chegamos a incrível marca de 13ºC na mínima, há quem diga que esse temperatura chegou mesmo aos 18º, os 13º que anunciavam era em pontos não habitados.
ResponderExcluirMeu pai achava que tinha gente morendo (literallmente) com um frio daqueles... :D
Sempre tive vontade, e medo, de ver neve, embora às vezes ahce o calor tórrido desumano
Off topica. Olha que tirinha fantástica sobre racismo:
ResponderExcluirhttp://24.media.tumblr.com/tumblr_lbk794hVXE1qdp3rbo1_500.jpg
Aqui em Recife há 2 estações : quando chove e quando faz sol. Ambas muito quentes. As pessoas às vezes confundem o sifnificado da palavra frio.
ResponderExcluirUm dia, o tempo estava começando a mudar. Umas nuvens foram se formando. A temperatura não tinha mudado um grau. A vizinha ao ver o céu escurecendo comentou com a voz trêmula: Que frio, vamos entrar!.
Frio? Aqui vento é sinônimo de frio...
Eu às vezes sinto frio também, mas é algo diferente. Em Limeira e Viçosa eu ficava de camiseta em casa quando estava uns 10 graus. Aqui, mesmo com os baixíssimos 27 a humidade do ar é muita e dá até uma dorzinha nas pernas....
Na minha sala de aula, entretanto, não tiro o ar condicionado dos 18o. Aquele monte de gente se movimentando, eu me movimentando....Odeio suar.
Oi Lola, vou te mandar um email com material sobre esse conto, inclusive uma tradução. Abs, Andrea
ResponderExcluirNoooossa Lola, que sintonia!! Li esse post ontem, depois de ter decidido passar uns diazinhos de férias em Montreal em janeiro - não consigo imaginar ninguém em sã consciência indo por livre e espontânea vontade curtir um inverno canadense.. MAS vou me hospedar num hostel que eu trabalhei lá, que é pretty much como a ultima foto do post, todo de madeira, com lareira, tapete felpudo e com jacuzzi!! e vou totalmente por assuntos de ordem sexual-afetiva-amorosa. Mal posso esperar pelos -30ºC, pra re-ver um ex muito, muito especial! :)
ResponderExcluirUm amigo meu costumava brincar que "não existe vida inteligente acima de 17ºC". Bom, além dele ser extremamente "calorento", é claro que rolava uma certa idolatria ao Hemisfério Norte nisso aí, do que eu pessoalmente não gosto muito. Acho que o clima exerce, sim, algum poder sobre a gente, mas não chega a ser uma coisa determinante sobre a nossa personalidade ou as nossas ações, como diriam os Aluísios de Azevedo da vida.
ResponderExcluirE, deixando de lado o lance do clima, eu posso mesmo imaginar o sentimento de uma mulher de antigamente ao perder o marido. O desamparo financeiro provavelmente vinha junto com a libertação. Bom, e mesmo que a gente não veja, isso ainda deve acontecer muito, hoje em dia. Tem homem que ainda acha que a mulher é propriedade.
Adorei o post... adoro literatura, principalmente a que destrincha os sentimentos femininos... acho que temos bastante em comum :)
Sou gaúcho, moro em Porto Alegre, e penso em morar em outra cidade não por achar POA "fria demais", mas pelo contrário: o verão aqui é simplesmente insuportável, calor e alta umidade (se ao menos fosse seco, não suava um bocado). Sem contar o sol muito forte, minha pele sofre (já no inverno o sol não é "inimigo", e sim "aliado").
ResponderExcluirTanto que muita gente diz se sentir mais feliz com a primavera, e que o inverno deprime. Comigo é o oposto: é o outono que me deixa mais feliz, e a primavera me anuncia a proximidade de dias de mau-humor por conta do abafamento dessa cidade...
Infelizmente, no meu caso restam poucas opções, e não dá pra ir morar em São Joaquim ou outra cidade "gelada" do nada, sem ter algo garantido para me sustentar lá; sem contar que pretendo fazer mestrado e nessas cidades altas não tem uma UFRGS.