O cineasta austríaco Michael Haneke é sempre polêmico, e seus filmes contém um fundo moral forte. Eu particularmente gosto muito dele. Aprecio o soco no estômago que são seus dois Violência Gratuita (original e remake), e, embora eu não entenda tudinho que acontece em A Professora de Piano, Caché e, talvez, Código Desconhecido, reconheço suas inúmeras qualidades. Seu filme mais recente, A Fita Branca, seu primeiro roteiro falado em alemão desde o primeiro Funny Games, é visto por montes de críticos como sua obra-prima. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes no ano passado, era o favorito ao Oscar de Filme Estrangeiro (perdeu pro argentino O Segredo de seus Olhos, que ainda não vi, mas verei), e sua fotografia em preto e branco foi saudada como magnífica. Eu gostei, mas alguém me explica por que Bastardos Inglórios não levou todos os prêmios a que concorreu em qualquer festival que participou?
Tá certo, tá certo, nem dá pra comparar: Fita não tem absolutamente nada a ver com Bastardos. Apenas que ambos têm passagens faladas em alemão, e um pano de fundo nazista. Bom, Fita se passa em 1914, às vésperas de estourar a Primeira Guerra Mundial, e o narrador em off, já no início, explica que o que ele vai contar pode ajudar a esclarecer o que ocorreu depois no seu país. A gente automaticamente pensa que ele está falando do nazismo, mas eu considero essa dedução reducionista. Fiquei feliz mais tarde, ao ler uma entrevista do Haneke, em que ele diz que Fita não deve ser visto apenas como um embrião do nazismo, mas como um embrião do fascismo em geral, um embrião do mal. Pois é, o que ocorre naquela aldeia quase feudal não é tão distinto do que ocorre em muitas cidadezinhas. Pode me crucificar, mas sabe do que me lembrei? De A Caldeira do Diabo, mezzo clássico, mezzo trash de 1957. Tá tudo lá. Rígida hierarquia familiar? Presente. Pais hediondos? Presente. Abuso sexual? Presente. Vinganças terríveis? Presente. Narração em off de um de seus personagens? Presente também.
Aliás, pra quem estuda narração no cinema e na literatura (meu caso), Fita é um prato cheio. Porque muitas vezes nos deparamos com unreliable narrators (narradores não confiáveis), mas é mais raro encontrarmos um narrador não-confiável sincero, que não mente de propósito. O narrador de Fita é um professor jovem na história, mas que conta a história seletivamente, décadas depois, já com voz de velhinho. E ele começa colocando-se a si próprio no papel de um narrador em que não podemos confiar: diz que nem tudo será verdade, que há muito baseado em fofocas, que os detalhes são obscuros. E ele não conclui muita coisa. Fecha dizendo que nunca mais viu nenhum de seus vizinhos de aldeia.
E o que ele conta? Uma fábula de crimes bizarros que tomam a cidadezinha. O primeiro é um arame que derruba o cavalo do médico (com ele em cima; fiquei mais chocada pelo equino). Depois, uma lavradora cai num poço e morre. Seu filho, revoltado, culpa o barão, praticamente o dono da aldeia, e dizima sua plantação de repolhos. Esse, inclusive, é um dos poucos atos de violência que vemos na tela. Os outros não são mostrados. Por exemplo: num castigo físico a duas crianças, a porta se fecha, deixando-nos de fora. Apenas ouvimos o estalar do chicotinho e os gritos juvenis. Em outra ocasião, vemos o bastante para temer o que vai acontecer (inclui uma garota, uma tesoura, e um passarinho engaiolado ― ligue os pontinhos). Há ainda uma cena que nem violenta é, mas é perturbadora (um cadáver com o rosto coberto por um pano. Qualquer cadáver sob observação intensa dá a impressão de que vai se levantar, não?). Nada é tão perturbador e violento, no entanto, como um diálogo entre o médico e sua amante, a parteira. As ofensas do médico compõem um longo discurso misógino.
Os homens são novamente os vilões da história, mas não só eles. É que eles têm o poder de produzir novos algozes, que se comportarão como eles. O interessante é que um dos patriarcas diz que branco significa pureza e inocência, mas a fita branca que dois de seus filhos são obrigados a usar representam (assim como a letra escarlate no romance de Hawthorne) uma marca de falta de confiança, falta de pureza. As crianças aprendem a lidar com o contraditório: na dúvida, use a violência.
Haneke tem seu ritmo próprio, lento, peculiar, que pode desagradar aos espectadores mais acostumados com a edição hollywoodiana. Em alguns momentos eu achei Fita chato (pelo menos seguindo o meu critério de ter que me ajeitar na cadeira). Também confundi personagens. São mais de trinta, acredito, e uns atores são parecidos demais com outros. Mas me agrada a tensão que fica no ar (ainda que na maior parte das vezes não resulte num clímax). E também adoro como muito dessa tensão é criada pela câmera. Tipo: a câmera não nos dá uma imagem geral de quem está sentado à mesa, só vai expondo um a um, em close. Ou a gente não vê um close de um corpo pendurado, só a reação da pessoa que encontra o corpo, e o cadáver lá, ao fundo, quase saindo do enquadramento.
Um crítico americano que não gostou de Fita diz que é um A Vila feito por quem tem doutorado. Isso é sacanagem com o Shyamalan, com os doutores (que seriam pretensiosos), e com o Haneke, claro. Mas a verdade é que quando se vê um filme do cineasta austríaco se percebe uma mão de ferro, um controle absoluto para que nada saia do seu comando. E não sei, talvez eu gostaria que a Fita fosse mais livre, menos controlado em alguns instantes. Sabe, o tipo de rebeldia que Bastardos Inglórios tem de sobra.
Tá certo, tá certo, nem dá pra comparar: Fita não tem absolutamente nada a ver com Bastardos. Apenas que ambos têm passagens faladas em alemão, e um pano de fundo nazista. Bom, Fita se passa em 1914, às vésperas de estourar a Primeira Guerra Mundial, e o narrador em off, já no início, explica que o que ele vai contar pode ajudar a esclarecer o que ocorreu depois no seu país. A gente automaticamente pensa que ele está falando do nazismo, mas eu considero essa dedução reducionista. Fiquei feliz mais tarde, ao ler uma entrevista do Haneke, em que ele diz que Fita não deve ser visto apenas como um embrião do nazismo, mas como um embrião do fascismo em geral, um embrião do mal. Pois é, o que ocorre naquela aldeia quase feudal não é tão distinto do que ocorre em muitas cidadezinhas. Pode me crucificar, mas sabe do que me lembrei? De A Caldeira do Diabo, mezzo clássico, mezzo trash de 1957. Tá tudo lá. Rígida hierarquia familiar? Presente. Pais hediondos? Presente. Abuso sexual? Presente. Vinganças terríveis? Presente. Narração em off de um de seus personagens? Presente também.
Aliás, pra quem estuda narração no cinema e na literatura (meu caso), Fita é um prato cheio. Porque muitas vezes nos deparamos com unreliable narrators (narradores não confiáveis), mas é mais raro encontrarmos um narrador não-confiável sincero, que não mente de propósito. O narrador de Fita é um professor jovem na história, mas que conta a história seletivamente, décadas depois, já com voz de velhinho. E ele começa colocando-se a si próprio no papel de um narrador em que não podemos confiar: diz que nem tudo será verdade, que há muito baseado em fofocas, que os detalhes são obscuros. E ele não conclui muita coisa. Fecha dizendo que nunca mais viu nenhum de seus vizinhos de aldeia.
E o que ele conta? Uma fábula de crimes bizarros que tomam a cidadezinha. O primeiro é um arame que derruba o cavalo do médico (com ele em cima; fiquei mais chocada pelo equino). Depois, uma lavradora cai num poço e morre. Seu filho, revoltado, culpa o barão, praticamente o dono da aldeia, e dizima sua plantação de repolhos. Esse, inclusive, é um dos poucos atos de violência que vemos na tela. Os outros não são mostrados. Por exemplo: num castigo físico a duas crianças, a porta se fecha, deixando-nos de fora. Apenas ouvimos o estalar do chicotinho e os gritos juvenis. Em outra ocasião, vemos o bastante para temer o que vai acontecer (inclui uma garota, uma tesoura, e um passarinho engaiolado ― ligue os pontinhos). Há ainda uma cena que nem violenta é, mas é perturbadora (um cadáver com o rosto coberto por um pano. Qualquer cadáver sob observação intensa dá a impressão de que vai se levantar, não?). Nada é tão perturbador e violento, no entanto, como um diálogo entre o médico e sua amante, a parteira. As ofensas do médico compõem um longo discurso misógino.
Os homens são novamente os vilões da história, mas não só eles. É que eles têm o poder de produzir novos algozes, que se comportarão como eles. O interessante é que um dos patriarcas diz que branco significa pureza e inocência, mas a fita branca que dois de seus filhos são obrigados a usar representam (assim como a letra escarlate no romance de Hawthorne) uma marca de falta de confiança, falta de pureza. As crianças aprendem a lidar com o contraditório: na dúvida, use a violência.
Haneke tem seu ritmo próprio, lento, peculiar, que pode desagradar aos espectadores mais acostumados com a edição hollywoodiana. Em alguns momentos eu achei Fita chato (pelo menos seguindo o meu critério de ter que me ajeitar na cadeira). Também confundi personagens. São mais de trinta, acredito, e uns atores são parecidos demais com outros. Mas me agrada a tensão que fica no ar (ainda que na maior parte das vezes não resulte num clímax). E também adoro como muito dessa tensão é criada pela câmera. Tipo: a câmera não nos dá uma imagem geral de quem está sentado à mesa, só vai expondo um a um, em close. Ou a gente não vê um close de um corpo pendurado, só a reação da pessoa que encontra o corpo, e o cadáver lá, ao fundo, quase saindo do enquadramento.
Um crítico americano que não gostou de Fita diz que é um A Vila feito por quem tem doutorado. Isso é sacanagem com o Shyamalan, com os doutores (que seriam pretensiosos), e com o Haneke, claro. Mas a verdade é que quando se vê um filme do cineasta austríaco se percebe uma mão de ferro, um controle absoluto para que nada saia do seu comando. E não sei, talvez eu gostaria que a Fita fosse mais livre, menos controlado em alguns instantes. Sabe, o tipo de rebeldia que Bastardos Inglórios tem de sobra.
para que a gente precisa de ver se voce conta tudo?
ResponderExcluirOlhodopombo,
ResponderExcluira gente pode ver para discordar e criar polêmica na caixa de comentários.
E uma polêmica sem precisar citar BBBs e afins.
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ResponderExcluirAchei o filme interessantíssimo, com várias nuances a serem exploradas. Claro, não é um filme fácil, como nenhum do Haneke é, mas faz pensar muito. Nesse sentido achei bem melhor que o argentino (que também tem momentos beeeem chatos). O professor, narrando no mesmo tom as escabrosidades e o resultado da colheita daquele ano, me fez pensar muito sobre as pessoas se acostumarem com uma situação-limite e passarem a tratarem-na como banal.
ResponderExcluirImagina, vendo aquelas fotografias no post e os detalhes técnicos da Lola, deu uma vontade dos diabos de ver.
ResponderExcluirEstéticas não hollywoodianas que também não são alternativas demais, mas, sim, elegantes, anima e mantém acesa a torcida pelo cinema não-americano.
Lola, também gostei da Fita Branca apesar de não entender uma parte ou outra. No começo do filme quando o narrador fala que o que ela ia mostrar ia ajudar a esclarecer o que acontecer depois na Alemanha, só imaginei que esse depois seria o nazismo. Mas a fotografia do filme é excelente, o enquadramento da câmera é maravilhoso. Mostra que a cena não precisa ser mostrada (desculpe a redundância) para chocar.
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ResponderExcluir"o narrador em off, já no início, explica que o que ele vai contar pode ajudar a esclarecer o que ocorreu depois no seu país. A gente automaticamente pensa que ele está falando do nazismo, mas eu considero essa dedução reducionista."
ResponderExcluirEngraçado, eu pensei de pronto em Weimar, e não no Nazifascismo...
P.S. Prefiro o ritmo dos filmes Europeus aos Hollywoodianos. E "A professora de piano" um filme mutcho loko mas delicioso (como filme, não como enredo, que os argumentos de Haneke não são nada aconselháveis para antes ou imediatamente após o jantar...
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ResponderExcluirEu estava quieto no meu canto, como todo bom mineiro, e aí... mexeram comigo.
ResponderExcluirOlha, eu não sou cachaceiro, eu sou consumidor, é bem diferente. Também, eu só venho aqui porque, de vez em quando, você fala do CM!
Tomou, papuda?
Eu entendo, Mario... Afinal, se vc fosse depender das atualizações do CM no blog dele, ia ser duro. Acho que nem mineiro teria tanta paciência!
ResponderExcluirMas o seu "tomou, papuda?" foi TÃO parecido com o que o maridão fala às vezes pra mim... Será que todos os velhinhos usam as mesmas gírias?
Fátima Olho do Pombo, vc não vai muito ao cinema, vai? Se fosse, saberia que num filme acontece muuuuuito mais coisa que uma crítica poderia contar...
Oi Lola, já estava com vontade ver Fita Branca, e agora fiquei com mais vontade ainda. Depois que comecei a fazer aula de alemão, essa de assistir filmes em alemão virou, além de prazer, um bom exercicio de listening. ;)
ResponderExcluirAbração, Andrea
http://segredosdaborboletadomar.blogspot.com/
Lola,
ResponderExcluiré bom ver que existem diretores que se lembram de como a ausência de cor pode funcionar a favor de um filme. No caso de A Fita Branca, a opção pelo preto-e-branco foi crucial... É um belo filme.
'Baideuêi', o argentino também é ótimo.
abraço,
Mônica
Masegui,
ResponderExcluiresse 'tomou, papuda?' é a cara da minha mãe, rolou o maior flashback agora... :-) Você é de onde?
Mônica
(em Belo Horizonte)
Lola,
ResponderExcluirLi essa crítica (http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/critica-do-filme-a-fita-branca) sobre o filme e achei muuuuito boa também.
Ademais, agora preciso ler o livro "Modernidade e Holocausto", de Bauman, comentado no link acima.
O filme? Ainda não assisti. Acho que passou no Cinema da Fundação aqui em Recife, e me chamou bastante atenção. Agora é que eu vou ver meeeesmo, para minhas conclusões...
Massegui, acho que somos "cachacistas", cachaceiros são os que produzem... ;)
ResponderExcluirMárcia, o pior é que filme fora dos grandes lançamentos a gente só assiste na Fundação e no Parque...
Lolissíma,aguçou minha curiosidade.
ResponderExcluirAcho que vou assistir.
Valeu véia ;)
Adoro demais os filmes do Haneke (apesar de achá-lo muito chato em entrevistas. Ele é monossilábico o suficiente para ser o terceiro irmão Coen e quando resolve falar, fica o tempo todo na defensiva) e a característica principal dele é exatamente o controle rígido e austero dos seus enredos. Para mim, A Fita Branca foi o melhor filme de 2009 disparado e foi vítima de uma das injustiças mais vergonhosas da história da Academia. O filme argentino é bom, mas não supera A Fita Branca e nem mesmo O Profeta, o outro filme que também dominou as premiações estrangeiras. Mas, no fundo, eu devia saber que o Haneke é bom demais para aqueles votantes senis do Oscar. Já vi votante dizer na mídia que nem assiste aos filmes indicados.
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ResponderExcluirLola eu assisti um documentário sobre as mulheres diretoras de filmes na CNN. Achei bem interessante. Encontrei uma parte dele no síte, se você quiser ver, o link é este:
ResponderExcluirhttp://edition.cnn.com/video/?/video/international/2010/03/31/tsr.female.film.makers.bk.a.cnn
bjks
Mônica,
ResponderExcluirRespondendo: Sou de Ponte Nova, "pirtim docê"!
Sobre o "papuda", de vez em quando eu cutuco a Lolinha, mas tá uns 20 a 0 pra ela. Como boa enxadrista, quando eu ataco de um lado ela contra-ataca do outro... notou o negócio dos "velhinhos"? pois é...
Ps. Visitei o Cronicas Urbanas e gostei de você citar a minha heroina de infância, Miss Marple. Já "favoritei" pra voltar quando tiver tempo e ler os posts antigos.
Masegui,
ResponderExcluirPonte Nova? Terra da melhor goiabada do planeta...
Abr.
Mônica
LOLA
ResponderExcluiraqui aonde moro, apesar de ter Curso Superior de Cinema,na UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECONCAVO DA BAHIA, não temos o espaço fisico, CINEMA. mas quando viajo costumo ir ao cinema sim e nem leio antes as criticas dos jornais, que acho todas pernosticas.
Recentemente fui ao Rio de Janeiro e vi:
Um homem Serio, dos irmãos Cohen, maravilhoso,
vi Ilha do Medo, do Scorsese, (mais ou menos)
e fui no cinema de Buzios ver NINE, so para degustar o DANIEL DAY- LEWIS, o ator de cinema mais gostoso da atualidade.
PS: costumo colecionar bons filmes em DVD......
Lolissima me da ate soco no estomago de vontade de ver filme e ver que ando tao atrasada com eles...
ResponderExcluirquando vejo uma critica sua eu penso que e mais um que eu nao vi! snif
mas vou anotando no caderninho, quem sabe uma hora eu consigo ir colocando em dia meu cinema...b
beijocas
Lola, a versão de Bastardos que passou em Cannes não foi a mesma que passou nos cinemas. Quando ele estreou em Cannes, não foi bem recebido, e o Tarantino reeditou depois pra lançá-lo comercialmente. Pode ser que no fim das contas a diferença tenha sido grande.
ResponderExcluirAcho esse filme perfeito. Sem exagero.
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