segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

SOMOS AUTISTAS ASPIES: CONHEÇA NOSSA MINORIA POLÍTICA E NOSSA LUTA CONTRA O CAPACITISMO

Hoje publico o guest post do escritor e ativista aspie Robson Fernando de Souza, colaborador frequente aqui do blog.

Permitam nos apresentar: nós somos os autistas aspies. Ou seja, temos o “Transtorno” ou Condição do Espectro Autista de Nível 1, conhecida popularmente pelo termo obsoleto Síndrome de Asperger.
Hoje somos uma das minorias políticas mais desrespeitadas, discriminadas e, ao mesmo tempo, invisibilizadas nas sociedades modernas. 
Se você ainda não sabe o que sofremos no dia-a-dia por causa da exclusão e patologização que nos são impostas, convido você a conhecer, neste artigo, a nossa demanda por respeito e contra o preconceito das pessoas.
Antes de tudo, quero definir o autismo nível 1, ou Síndrome de Asperger. Essa é uma condição de neurodesenvolvimento -- que, ao contrário do que muitos creem, não é uma doença, nem um transtorno psiquiátrico, nem algo do qual sofremos -- caracterizada por uma faceta de deficiências e uma de notáveis pontos positivos.
No âmbito das deficiências, o autista aspie tem dificuldades como as de interação social, compreensão e uso de linguagem não verbal (expressões faciais, gesticulações, figuras de linguagem, postura corporal, mensagens escondidas nas entrelinhas, tom de voz etc), percepção de regras sociais implícitas e regulação emocional, além de sensibilidades sensoriais muito elevadas ou muito baixas e eventuais condições coexistentes, como TDAH, TOC, dislexia, prosopagnosia, Síndrome de Tourette, déficit de coordenação motora etc. Todas essas características nos proporcionam o reconhecimento como pessoas com deficiência, portanto necessitadas de políticas de acessibilidade e inclusão, pela Lei Federal nº 12.764/2012.
E no dos pontos positivos, o aspie costuma ter valorosas virtudes como a inteligência acima da média (sendo muitos aspies superdotados), a paixão profunda por uma ou mais áreas de conhecimento -- a ponto de ter o potencial de se tornar uma renomada autoridade nessa(s) disciplina(s) --, a personalidade autêntica, a honestidade e sinceridade, a lealdade, a aversão a joguinhos psicológicos, a comunicação clara, direto ao ponto sem intenções ocultas e mensagens dúbias, a atitude de questionar e desafiar autoridades, a postura de ir fazer sua parte ao invés de esperar pelos outros, a capacidade de se focar profundamente no trabalho ou estudo daquilo que mais gosta etc.
O que nos distingue dos chamados autistas clássicos é o nível de necessidade de apoios e aparatos de acessibilidade: temos uma necessidade menos intensiva do que a de autistas com níveis 2 (comumente conhecidos como “autistas moderados”) ou 3 (conhecidos pelo rótulo pejorativo de “autistas severos”). Mas preciso ressaltar que essa nossa necessidade é significativa à sua maneira e nunca deve ser ignorada ou subestimada, sob pena de termos uma qualidade de vida inferior, passarmos por muitas situações evitáveis de sofrimento e sermos privados do atendimento a diversas necessidades nossas.
Temos um gigantesco potencial para trazer grandiosas contribuições para o mundo, em especial naquelas áreas de conhecimento e talentos nos quais mais temos primor, fazendo dele um lugar muito melhor para se viver. Da mesma maneira, podemos muito bem ser os melhores amigos ou namorados da vida dos felizardos que gostarem genuinamente de nós do jeitinho que somos. 
Tanto é que atualmente vemos aspies brilharem perante o mundo, entre eles a ambientalista Greta Thunberg, o ator Anthony Hopkins e cantores como Susan Boyle, Courtney Love e Gary Numan. Além disso, acredita-se que personalidades como Albert Einstein, Bill Gates, Alan Turing, Isaac Newton, Michael Jackson, Jeremy Bentham, Syd Barrett, Tim Burton, Andy Warhol e Charles Darwin podem ser (os vivos) ou ter sido (os falecidos) aspies. (Obs.: Foram refutadas as alegações de que Lionel Messi e Satoshi Tajiri, criador de Pokémon, seriam autistas.)
Isso sem falar em marcantes personagens de novelas, filmes e seriados como Benê (Malhação: Viva a Diferença e As Five), Sam Gardner (Atypical), Shaun Murphy (The Good Doctor), Sheldon Cooper (The Big Bang Theory e Jovem Sheldon) e provavelmente Newt Scamander (Animais Fantásticos).
Que bom seria se nossos potenciais pudessem sempre ser desfrutados por completo e fôssemos integralmente respeitados e estimulados a dar o nosso melhor. Isso nos faria ser muito mais livres e felizes e o mundo, muito melhor. Mas infelizmente não é isso que costuma acontecer.
Isso porque há um severo obstáculo em nosso caminho: o capacitismo da sociedade contra autistas. Ele se manifesta de diversas maneiras, todas as quais nos relegam a ser tratados de maneira discriminatória, intolerante, patologizante, diminutiva, paternalista e excludente.
Em primeiro lugar, as pessoas não entendem nossas peculiaridades autísticas, como a dificuldade de entender regras sociais implícitas e formas de linguagem não verbal e de manter contato visual, o hábito de fazer stims (movimentos repetitivos que fazemos para regular nossas emoções e o estresse), a sinceridade muitas vezes desmedida e nossos comportamentos considerados dessincronizados com nossa idade cronológica.
Daí consideram essas características falhas de personalidade ou mesmo desvios de caráter. Nos julgam de maneira severa e preconceituosa. Nos tratam com rispidez e repreensão, como pessoas inferiores, defeituosas e antiéticas. Nos tacham de imaturos, grosseiros, insensíveis e outras depreciações. Nos induzem vergonha e culpa. Nos excluem das interações sociais ou limitam as oportunidades de participar delas. Nos veem como inferiores. Dizem que não seríamos capazes de ter empatia, quando curiosamente elas mesmas não são empáticas para conosco.
Muitos outros, como se tudo isso não bastasse, pegam mais pesado, são explicitamente cruéis e nos atacam com bullying capacitista. Nos insultam, nos rebaixam, nos agridem até fisicamente, defendem que não nos misturemos com os neurotípicos. Chamam nossa condição de “doença”, “perturbação”, “patologia” ou “distúrbio”, inspirados no infame e antiético modelo médico do autismo, também conhecido como paradigma da patologia.
A discriminação capacitista também é extremamente comum no mercado de trabalho: as empresas, em sua grande maioria despreparadas para ter funcionários autistas, consideram nossas limitações de linguagem não verbal e interação social sinais de “incompetência” e assim tendem a nos rejeitar nas entrevistas ou, se conseguimos ser contratados, nos demitir em pouco tempo. Não é à toa que mais de 75% de todos os autistas, incluindo aspies, padecem no desemprego.
Ela também reina nas escolas, que, quando não simplesmente negam matrícula para crianças e adolescentes autistas, tratam-nos como se fossem neurotípicos “defeituosos” e usam métodos didáticos que lhes desconsideram as necessidades específicas e dificuldades de aprendizagem, acarretando um aprendizado abaixo do desejado e esperado.
E não só isso: os ambientes urbanos geralmente são muito hostis para com autistas com hipersensibilidade sensorial. É extremamente comum que as ruas, as lojas, os ônibus, os trens e metrôs, os shoppings, os prédios de empresas de serviços, as indústrias, os restaurantes e lanchonetes, os parques de diversão, as festas e eventos sociais etc emitam barulhos, cheiros e luzes que para nós são fortes demais. Diante desses pesados estímulos sensoriais, é comum sofrermos sobrecarga mental, picos de estresse e irritabilidade e, em muitos casos, até mesmo crises nervosas, os temidos meltdowns.
E o pior é que, mesmo nós sendo alvos frequentes de preconceito e discriminação capacitistas, muitos não nos veem como autistas, nem como pessoas com deficiência. É comum que ponham em dúvida nosso autodiagnóstico ou nosso laudo psiquiátrico, ou que julguem que “não somos autistas” porque temos boa habilidade de fala e somos inteligentes, ou que achem que, por termos um autismo considerado “leve”, seríamos menos autistas e sofreríamos menos com discriminação, exclusão social e inacessibilidade do que os autistas de graus maiores de necessidade de apoio.
Diante de toda essa realidade de exclusão e maus tratos sociais contra nós, estamos começando a nos organizar e lutar pela aceitação do autismo, pela inclusão dos autistas, pelo asseguramento e respeito aos nossos direitos e contra o capacitismo (preconceito contra pessoas com deficiência, incluindo autistas) e a psicofobia (preconceito contra pessoas com transtornos mentais, entre elas a maioria dos autistas, que sofrem com depressão, ansiedade, transtorno bipolar etc).
Estamos construindo e desenvolvendo o movimento defensor da neurodiversidade autista, ou seja, da diversidade de cérebros humanos como algo natural da humanidade, ao invés de uma patologia. É basicamente o movimento que defende os autistas de maneira similar a como o feminismo defende as mulheres e combate o machismo, o movimento negro defende as pessoas negras e combate o racismo, o movimento LGBT defende as pessoas sexodiversas e combate a LGBTfobia etc.
Entre nossas pautas, estão a abolição de toda forma de capacitismo e psicofobia e do modelo médico do autismo, a substituição deste pelo modelo social do autismo, a universalização dos diagnósticos infantis e tardios do espectro autista -- os quais infelizmente ainda não são um direito no Brasil hoje em dia -- no SUS e nos planos de saúde, 
a implementação de políticas públicas de acessibilidade e inclusão para os autistas, políticas ambientais que controlem estritamente as poluições que nos causam sobrecarga sensorial, o banimento dos fogos de artifício barulhentos, a inclusão plena de alunos, professores e técnico-administrativos autistas em instituições de ensino, o combate a propostas de “cura” do autismo, a abolição das terapias de supressão de características autísticas inofensivas, o fim da repressão sociocultural dos comportamentos autísticos, a valorização dos talentos dos autistas, a capacitação dos jornalistas para que evitem discursos preconceituosos ao falar da condição etc.
Está chegando o dia em que nós autistas, incluindo aspies, nos tornaremos tão visíveis, coletivamente fortes, reconhecidos, ouvidos e respeitados como minoria política em luta quanto as mulheres, as pessoas negras e as pessoas LGBTs. Este artigo, espero eu, contribui para que esse futuro chegue mais rápido.
Queremos que cada vez mais pessoas se conscientizem das nossas necessidades e dificuldades, das opressões que sofremos e das nossas reivindicações em prol de uma sociedade que nos respeite, nos aceite e nos inclua. Portanto, se você ainda não havia lido, ouvido ou assistido nada sobre isso, então seja bem vindo à nova era da luta dos autistas, e sinta-se mais que convidado a apoiar nossa bandeira e desconstruir as suas crenças e atitudes capacitistas e psicofóbicas.

11 comentários:

  1. > É comum que ponham em dúvida nosso autodiagnóstico ou nosso laudo psiquiátrico, ou que julguem que “não somos autistas” porque temos boa habilidade de fala e somos inteligentes, ou que achem que, por termos um autismo considerado “leve”, seríamos menos autistas e sofreríamos menos com discriminação, exclusão social e inacessibilidade do que os autistas de graus maiores de necessidade de apoio.

    "Sofreríamos" se refere ao sofrimento sentido pelo sujeito ou ao sofrimento material imposto ao autista?
    A frase ficou meio ambígua, se significar o segundo me parece uma contradição com o resto do texto.

    > Isso sem falar em marcantes personagens de novelas, filmes e seriados como ..., Sam Gardner (Atypical), ..., Sheldon Cooper (The Big Bang Theory e Jovem Sheldon) ...

    Não conheço os outros, mas fiquei em dúvida em relação a esses dois, eles são autistas especificamente do nível 1 ou autistas em geral?

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  2. Querida Lola! Obrigada por esta postagem!! Agradecemos Pedro (TEA de modo severo, comorbidade com síndrome de Silver e Russell) e eu, autista não severa, funcional, meia idade (50) e indignada com o quase inexistente atendimento para autistas severos ADULTOS, que é o caso do Pedro, 22 anos. Obrigada de coração!

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  3. Renato 20/01 16:01:
    O "sofreríamos" é nesses dois sentidos. Não entendi por que essa frase se contradiria com o restante do texto.
    E eles são autistas nível 1, que requerem apoio mas não tanto quanto os autistas clássicos.

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  4. @Robson, obrigado por responder.

    > E eles são autistas nível 1, que requerem apoio mas não tanto quanto os autistas clássicos.

    Pensava que eles não fossem de nível 1, que, pra mim, erroneamente, englobaria pessoas na fronteira do autismo.
    Por isso minha dúvida quanto ao sofrimento, mas agora entendi.

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  5. Até dessa minoria a Lola quer se apropriar? "Somos autistas aspies", " nossa minoria", "nossa luta". Nunca vi você falando em lugar nenhum ter autismo Lola. Quer falar sobre o assunto? Beleza, mas não fica se apropriando não. E nem chama a luta dos verdadeiros autistas de " nossa luta", pq vc é branca, classe média, privilegiada e não tem doença mental nenhuma, ao que eu saiba.

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    1. Isso foi um repost.
      Como autista, acho de extrema importância a divulgação de nossa causa em todos os locais possíveis. Acho que a luta autista vai muito além de direita-esquerda. Sofremos muito capacitismo, as pessoas estão sempre questionando o laudo médico, é terrível.
      Por isso, obrigada Lola pelo apoio!

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  6. Ô mascutroll, só na sua cabeça que eu estou tentando me apropriar do autismo. Se vc ler as primeiras linhas do post, ou o assunto, você verá que é um guest post. Eu publico inúmeros guest posts aqui no blog (já foram mais de 1.100), sobre os mais variados assuntos, muitos dos quais eu conheço muito pouco e não faço parte. Acho que está claro que o post não é meu, é do Robson, ele sim um ativista aspie falando do seu lugar de fala. Tenho a impressão que vc sabe disso e só veio aqui trollar.

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  7. Obrigado pelo post!
    Tenho um filho de 3 anos diagnosticado com TEA (ainda não sabemos o grau). Meu filho não fala ainda, por isso acho sempre bom ler e ouvir outras pessoas no espectro. Muitas vezes acabo entendendo algo que meu filho faz, mas que eu não sabia ser algo relacionado ao TEA.

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  8. Se não querem ver autismo como doença, pq admitem q possuem isso como deficiência?

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