Cada vez que revejo Bastardos Inglórios, mais eu amo o filme, então peço licença para falar mais sobre ele. Algumas coisinhas serão parecidas com o que já escrevi nos comentários dos meus dois posts do ano passado. E já aviso que isto vai estar cheio de spoilers, mas é difícil analisar uma obra sem discutir o final e outros pontos relevantes. Ademais, BI passou no Brasil faz nove meses, já ganhou Oscar, e seu status de melhor filme do ano passado é quase unânime. Convenhamos: se você ainda não viu o filme de um dos maiores cineastas da atualidade, é porque você não é muito chegad@ a um cineminha, né? Como posso ser uma estraga-prazeres, se você não tem prazer?
BI é o tipo de filme tão rico, tão cheio de referências, que a cada revisão a gente repara em algo novo. Por exemplo, só na segunda vez é que notei que quem faz o velhinho misterioso na cena em que o Mike Myers fala sobre cinema alemão com o lindo tenente inglês é o Rod Taylor, de Os Pássaros. E só na quarta vez é que prestei atenção que seu personagem tem que ser Winston Churchill (pra ser franca, só descobri isso nos créditos). Foi preciso quatro sessões e uma pausa nos créditos até ter certeza que o nazista expert em sotaques aparece antes da cena da taverna (que agora é decididamente a minha favorita). É ele quem busca Shosanna em seu cinema, e a leva para conhecer Goebbels. Aliás, o nazista se apresenta como Major Hellstrom naquela cena da torta de maçã com chantilly, mas em nenhum momento diz quem é na tensão da taverna. E demorou, mas escolhi meu maior colírio de todo BI (e olha que há vários): Michael Fassbender, o tal crítico de cinema escalado para se passar por nazista e acompanhar a estrela à pré-estreia da propaganda alemã. O “Ah” que ele dirige à estrela após ela dizer que o irmão dele é mais bonito que ele (só isso já provaria que eles estão mentindo), com a mão no peito, fingindo indignação ― bom, nessa hora eu me senti pronta pra ter filhinhos com ele. Não por inseminação artificial, se você me entende. E não sei quanto a você, mas eu fico sentida que quase todo mundo morra naquele “Mexican standoff” (comum entre os filmes do Taranta, como em Cães de Aluguel, quando todo mundo atira em todo mundo, dando fim à maior parte do elenco) da taverna. Meu coração pertence ao Michael, certo, mas também me chateio com a morte do nazista pai do Max, o bebê recém-nascido tão citado naquela sequência. O pai do Max, tadinho, faz um discurso implorando pra viver, pra poder ver o filho crescer, e essa fala é parecida à da Uma Thurman em Kill Bill, logo após ela descobrir que está grávida. Pelo jeito, o Taranta acredita que ter filhos melhora as pessoas (ou ao menos as aposenta da maldade). BI pode ser resumido (e reduzido ― todo resumo, toda classificação, é uma redução) a duas ideias-chave: é um filme sobre o amor às línguas, e sobre o amor ao cinema. Dá pra escrever uma tese sobre como BI representa um exercício em fonética e análise do discurso. É também uma raríssima obra falada em quatro línguas, com atores falando a própria língua de onde nasceram. Até me deu vontade de aprender alemão só pra saber como o sotaque do Michael chama tanto a atenção!A segunda colocação, de BI ser sobre o amor ao cinema, está mais do que clara. Pra começar, qualquer fime do Taranta, com todas as referências e metalinguagem, é uma ode ao metiê. Mas aqui ele joga o clímax num cinema lotado, coloca entre seus personagens um ator (outro colírio, o Daniel Bruhl), um projecionista, e um crítico, faz menções a trabalhos de auteur (“esta pode muito bem ser sua obra-prima”, diz um personagem a outro, olhando pra câmera; Shosanna diz que na França os diretores são respeitados) e ao espetáculo (Brad Pitt defende o ritual do Urso Judeu, já que a violência exercida por ele é comparada a uma sessão de cinema), e prega que rolos de filme são (literalmente) incendiários. Ou seja, nada espalha as chamas mais rápido que o cinema. Mas todas essas homenagens empalidecem se comparadas à cena em que o filme nazista é interrompido por Shosanna. Aquele momento quase no final, da judia rindo na tela enquanto a tela pega fogo, e pouco depois vemos apenas o espectro que gargalha, é uma das maiores homenagens ao cinema que já vi. Porque é assim que o cinema película é descrito, como “flickering shadows” (as sombras oscilantes, que não se encontram mais no filme digital, inimigo declarado do Taranta), um espectro, um fantasma, algo bizarro, que independe do ator estar vivo para existir. Só no cinema (e na TV) a gente pode ver pessoas mortas condenadas a repetir uma ação pelo resto da eternidade.Shosanna já está morta quando seu espectro ocupa a tela. Essa cena dela rindo vem do clássico alemão de 1927 Metrópolis. Lá há uma Maria verdadeira, boa, e uma falsa, manipuladora, um clone da original. Ao ser queimada numa fogueira, a Maria falsa morre rindo, meio louca, até se transformar no robô que ela é. Em BI, naquela cena final, vemos Shosanna rindo pela primeira e única vez. Parece uma outra pessoa, como se a personagem desconfortável que vemos antes fosse a falsa Shosanna, e agora estaríamos presenciando a verdadeira ― uma moça ensandecida por vingança. Quando a tela que a projeta já não existe mais, pois se queima no meio daquele fogaréu, Shosanna não se transforma num robô, como a Maria de Metrópolis, mas num fantasma ― no próprio espírito do cinema! Isso é muito genial. Algo que só um total cinéfilo como o Taranta pode fazer.
Convenhamos: se você ainda não viu o filme de um dos maiores cineastas da atualidade, é porque você não é muito chegad@ a um cineminha, né? Como posso ser uma estraga-prazeres, se você não tem prazer?
ResponderExcluirMe arrasou, ma me defendo:
Com filho pequeno fica difícil ir ao cinema... As coisas estão melhorando agora. :'(
Não foi apenas um dos melhores filmes do ano que passou. Foi o melhor.
ResponderExcluirAliás, um dos melhores que já vi. Um dos melhores da história. E um grande injustiçado no oscar, mas quem liga para o oscar?!
Vontade de rever.
loa, acho que eu nao lembro de outro filme que tenha me deixado tao tensa! em to-das as cenas em que o cacador de judeus lah aparece (desculpa, nao sei o nome dos personagens, nem dos atores) eu fiquei a ponto de ter um infarto. na cena da taberna? eu tive um infarto. na cena da prova do sapato. aquela cena eh espetacular. tive tanta peninha! poderia citar muitas e muitas cenas em que voce fica com o coracao na mao. ISSO nao deve ser facil de conseguir, por isso que eu gosto de tarantino. voce nunca sabe o que vai acontecer.
ResponderExcluirConcordo com a Mari, o melhor filme do ano passado sem dúvidas. Já deu pra perceber que a academia hollywoodiana não curte muito o estilo Tarantino de fazer cinema. Pouco importa. Alguém que já fez Pulp Fiction, Cães de aluguel e Kill Bill não precisa de oscar pra provar que é bom.
ResponderExcluirEu gostei muito do filme, mas achei que ficaram umas pontas soltas, ficou faltando alguma coisa. Uma das minhas frustrações foi não ter tido um encontro entre a francesa e o caçador de judeus. Po, o cara matou a familia dela toda, ela tomou cha com ele e depois não acontece nada entre os dois? Ele nem sabe quem é ela!
ResponderExcluirMas a minha cena preferida é a "bonjourlno" do Brad Pitt, morri de rir da mãozinha do cara imitando os italianos!
Eu revi o filme este fim de semana, que bom encontrar sua crônica bem agora. ADORO o filme, adoro, assim como Kill Bill.
ResponderExcluirEu também morro de rir desta cena do Brad Pitt falando Bongiorrrrno. Fiquei repetindo isso umas 3 semanas depois do filme.
Abraço
Lolinha,
ResponderExcluirsobre o sotaque do Michael, ele na verdade é alemao mesmo, entao o sotaque é forcado, mas muito, muito leve, tanto que eu mal percebia...
só consegui perceber o sotaque quando, lá pelas tantas, pouco antes dele se entregar com a mao mostrando 3 (é verdade que aqui eles mostram diferente)ele disse "sehen", que significa "ver" e se diz [sêen] com r no meio:[sêrren].
Se nao soubesse que ele era mesmo pra ter sotaque, eu nao perceberia, pq algumas pessoas falam assim, mas quando querem ser bem claras, ou seja, elas se "super-corrigem" (nao sei a palavra certa pra isso)
E concordo que quem ainda nao assistou ao filme merece ser bombardeado com spoilers... ninguem mandou ser tao loser!!!
Adorei, adorei, Lola, que você tenha mencionado o amor às línguas. BI é um daqueles filmes que, mesmo nas piores cenas, me deixou sempre com um sorriso aberto de tanto prazer em assisti-lo. Adorei o texto e a análise. Bjk!
ResponderExcluirO melhor do ano passado!
ResponderExcluirEu saí do cinema completamente apaixonada pelo BI!
ResponderExcluirGanhei o roteiro (do tanto que eu falei desse filme pra todo mundo) e comprei o DVD bem barato nas Lojas Americanas (R$29,90).
Para mim, é a obra-prima do Tarantino - meu diretor e roteirista favorito.
Eu sou suspeita pra falar, amei esse filme. A cena incial, na fazenda, é a melhor de todas. O ator que faz o coronel nazista, que é aquilo?? O cara fala 3 ou 4 linguas, e manda muito bem interpretando nas 3!!! Via ser dificil outro ator conseguir essa proeza, e compor um personagem tão rico assim.( esse mereceu o oscar de ator coadjuvante).
ResponderExcluirQuanto a falar alemão, be, eu falo um pouco, então o filme além de espetacular serviu de quebra pra eu treinar o meu alemão... aprenda, se te interessar Lola... alemão é muito gostoso, apesar de dificil. adorei seu post. beijão
Esse é um filme que eu vou gostando mais aos poucos. Aquela carnificina excessiva me incomodou um tanto.
ResponderExcluirAinda bem que eu ja tinha visto o filme antes de ler este seu comentario!
ResponderExcluirolha, discordo muito de vc (hum... quase sempre?...rs...)... mas esse filme é FODA (no bom sentido). Sou suspeita pq amo o assunto (2ª guerra) e sou fã do tarantino, mas esse filme merece ser visto muitas e muitas vezes. Cada vez a gente pega uma coisinha diferente e ama mais o filme 9eu pelo menos).
ResponderExcluirE gente, pra quem não pode alugar dvd e nem foi ao cinema, internet existe pra isso. É só baixar o filme. Vale muito a pena.
Lola,
ResponderExcluiracompanho o seu blog há algum tempo e me identifico muito com as suas opiniões. Admiro muito a maneira com que escreve e articula as suas idéias, sempre me fazem ver além.
Estava lendo seu último post e em meio aos links todos cheguei neste daqui e fiquei pensando sobre o filme. Reconheço os apontamentos formais que você faz e que as pessoas que comentaram acima também apreciam, mas fico pensando como é este descompromisso histórico em relação à trama. Fiquei muito incomodada quando o assisti no cinema, pois o filme é muito sedutor com toda a estrutura que o Tarantino dispõe, sua estética apurada, diálogos dinâmicos, referências mil... Mas também fiquei pensando sobre essa espécie de milícia anti-nazista que faz justiça com as próprias mãos. Será que isso é bom? Ou justamente não é e o diretor está ironizando? De qualquer forma, isso não ficou claro para mim, e me pareceu um pouco maquiado pelo já famigerada e cultuada "ironia tarantinesca". Eu olho pra isso e confesso que tenho medo da ironia virar puro cinismo.