Faz um tempão que não via Vinhas da Ira, este clássico de 1940. E mais tempo ainda que não leio o romance do John Steinbeck em que foi baseado. Li o livro em inglês na minha adolescência, e fiquei impressionada. Tanto que um dos primeiros artigos "acadêmicos" que escrevi na minha vida (quando eu tinha 16 anos) foi um comparando Steinbeck com Graciliano Ramos, Ratos e Homens com Vidas Secas (outro livro que amo de paixão). Porque, pô, há montes de semelhanças: ambos escreveram na mesma época sobre as desgraças dos sem-terra dos anos 30. E em ambos a polícia aparece como aparato puramente repressor. Mas, enfim, não era sobre isso que eu ia falar.
Vinhas da Ira. Lembro até hoje do final do livro, absolutamente marcante. Rosasharn, irmã do protagonista, é uma moça mimada e individualista. Seu marido a abandona grávida. No fim, ela dá à luz a um bebê natimorto, no meio de uma enchente, em que sua família mais uma vez perde tudo. E nessa hora a moça aproveita o leite que sai de seu peito para amamentar um homem morrendo de fome. Obviamente, amamentação de adultos não entrou no filme. Hoje não entraria, imagine setenta anos atrás. Mas, apesar dessa parte fundamental (em que uma personagem individualista aprende o sentido de comunidade) ter ficado de fora, a versão pro cinema é um filmaço.
Começa com Tom Joad (Henry Fonda, pai de Jane e Peter, avô de Bridget), recém saído da prisão, tentando encontrar a família de lavradores pobres em Oklahoma. É a Grande Depressão, embora ninguém mencione essa palavra. A casa continua lá naquele pedacinho de terra que sua família cultivou durante cinquenta anos, mas seus parentes tiveram que se mudar. A terra é de uma empresa agora, e a empresa quer tratores, mais eficazes que meros trabalhadores rurais. Todas as famílias do local são mandadas embora. Um sujeito, dono de sua terrinha, quer saber em quem atirar. Quem é o responsável pela fome de sua família? Não há um responsável. O carinha que lhe entrega uma ordem de despejo é apenas um empregado. O outro que chega com um trator pra derrubar as casas é um morto de fome, contratado para fazer esse serviço sujo (“Se eu não fizer, há milhares que farão”). Mas e aí, e o dono da empresa? Não, quem manda nele são os bancos. Ah, então eu vou ao banco e atiro no dono, pensa o novo sem-terra. Não, quem trabalha lá é apenas um gerente que mal sabe o que está acontecendo. É bem a face do capitalismo: um monstro sem face, sem responsáveis. Sem que haja um culpado, fica mais fácil acreditar que esse sistema de exploração é natural, que é assim que as coisas são e sempre serão. Como se a Depressão de 30 ou a nossa última crise, de 2008, tivesse caído do céu!
Quando Tom encontra sua família, todos estão indo tentar a sorte na Califórnia. Afinal, receberam um panfleto dizendo que lá se paga bem na colheita de frutas, e que 800 empregados serão contratados. Não sabem que dez mil desses panfletos foram impressos, ou que vinte mil sem-terra apareceram, ou que o salário pago não será suficiente para bancar sua sobrevivência. Tal e qual nossos retirantes nordestinos, a família Joad parte em busca da Terra Prometida. No mesmo pau-de-arara. Os avós morrem no caminho, as crianças passam fome. E, quando chegam à Califórnia, deparam-se com um sistema prontinho pra explorá-los. Por exemplo, um empreendedor vai procurar no acampamento de desabrigados mão de obra barata para trabalhar em sua colheita. Um lavrador pede por escrito qual será o salário, ao que o empreendedor responde: “Ah, isso depende. Veremos”. Um policial já está ao lado dele para “manter a ordem” (pois é, qual ordem?) e prender o “agitador”. O sujeito tenta fugir, e o policial atira nele, atingindo uma mulher.
Os Joads vão de campo em campo, passando fome e vendo só miséria e repressão policial à qualquer tipo de revolta. Finalmente, vão parar num acampamento com condições tão boas que parece piada. O diálogo entre o diretor do acampamento e Tom é mais ou menos assim:
- Fiquem com a cabana número 25. Lá vocês vão encontrar luz e água corrente.
- O quê? Água corrente? Poderemos lavar nossas roupas?
- Isso. E, depois, se vocês quiserem, podem participar das comissões que fazem e mantêm as leis do acampamento.
- Como assim, comissões? Quem manda aqui são as pessoas que vivem aqui, não a polícia?
- São as pessoas. A polícia não pode nem entrar aqui. Apenas em caso de tumulto. Você pode falar com os membros da comissão no baile de sábado e...
- Baile? Vocês têm bailes?
- Os melhores da região. Todo sábado.
- Mas... Mas quem é responsável por este acampamento?
- O governo.
- E por que não há mais acampamentos como este em todo lugar?
- Não sei. Talvez você descubra e possa me dizer.
Juro que não tô inventando! Nessa hora me lembrei do pessoal que quer acabar com o Bolsa Família porque só dá o peixe e não ensina a pescar. Mas voltando: o diretor do acampamento, no fundo um servidor público, é o primeiro personagem no filme inteiro que trata bem à família Joad. Mas Tom logo vê que há alguns problemas. Tipo: um cartaz do lado de uma torneira diz “Mantenha limpo o acampamento e conserve água. Feche a torneira”. Uma mulher acaba de encher um balde e vai embora, deixando a torneira aberta.
E há os agentes infiltrados. Num dos bailes, policiais à paisana entram no baile com a intenção de provocar um tumulto. Assim, a força policial poderá invadir o acampamento, esmagando os agricultores (não sei porquê, mas esse negócio dos policiais à paisana me fez lembrar do protesto dos professores em São Paulo). Com a força da comunidade, esses agentes conseguem ser detidos e colocados pra fora antes que o tumulto comece.
O filme todo mostra o longo aprendizado de Tom. No fim, ele vira líder sindical. Ok, sindical talvez não, mas comunitário, com certeza. Ele diz pra sua mãe que andou pensando na injusça que é uma só pessoa ter um milhão de acres e explorar cem mil trabalhadores para trabalhar nela, pagando-lhes salários de fome. E que se talvez todas essas pessoas se unissem e gritassem, juntas... Ele acha que cada pessoa não tem uma alma individual, mas um pedacinho de uma só alma gigantesca, comunitária.
E olha só a última linha do filme, dita pela mãe (interpretada por Jane Darwell, que mais parece uma figurante tirada de alguma obra comunista do Einsenstein): “Os ricos aparecem e somem, e seus filhos não prestam e somem também. Nós somos as pessoas que sobrevivemos. Eles não podem nos varrer da Terra. Nós continuaremos pra sempre, porque nós somos o povo”.
Só faltou tocar a Internacional Socialista na trilha sonora!
Começa com Tom Joad (Henry Fonda, pai de Jane e Peter, avô de Bridget), recém saído da prisão, tentando encontrar a família de lavradores pobres em Oklahoma. É a Grande Depressão, embora ninguém mencione essa palavra. A casa continua lá naquele pedacinho de terra que sua família cultivou durante cinquenta anos, mas seus parentes tiveram que se mudar. A terra é de uma empresa agora, e a empresa quer tratores, mais eficazes que meros trabalhadores rurais. Todas as famílias do local são mandadas embora. Um sujeito, dono de sua terrinha, quer saber em quem atirar. Quem é o responsável pela fome de sua família? Não há um responsável. O carinha que lhe entrega uma ordem de despejo é apenas um empregado. O outro que chega com um trator pra derrubar as casas é um morto de fome, contratado para fazer esse serviço sujo (“Se eu não fizer, há milhares que farão”). Mas e aí, e o dono da empresa? Não, quem manda nele são os bancos. Ah, então eu vou ao banco e atiro no dono, pensa o novo sem-terra. Não, quem trabalha lá é apenas um gerente que mal sabe o que está acontecendo. É bem a face do capitalismo: um monstro sem face, sem responsáveis. Sem que haja um culpado, fica mais fácil acreditar que esse sistema de exploração é natural, que é assim que as coisas são e sempre serão. Como se a Depressão de 30 ou a nossa última crise, de 2008, tivesse caído do céu!
Quando Tom encontra sua família, todos estão indo tentar a sorte na Califórnia. Afinal, receberam um panfleto dizendo que lá se paga bem na colheita de frutas, e que 800 empregados serão contratados. Não sabem que dez mil desses panfletos foram impressos, ou que vinte mil sem-terra apareceram, ou que o salário pago não será suficiente para bancar sua sobrevivência. Tal e qual nossos retirantes nordestinos, a família Joad parte em busca da Terra Prometida. No mesmo pau-de-arara. Os avós morrem no caminho, as crianças passam fome. E, quando chegam à Califórnia, deparam-se com um sistema prontinho pra explorá-los. Por exemplo, um empreendedor vai procurar no acampamento de desabrigados mão de obra barata para trabalhar em sua colheita. Um lavrador pede por escrito qual será o salário, ao que o empreendedor responde: “Ah, isso depende. Veremos”. Um policial já está ao lado dele para “manter a ordem” (pois é, qual ordem?) e prender o “agitador”. O sujeito tenta fugir, e o policial atira nele, atingindo uma mulher.
Os Joads vão de campo em campo, passando fome e vendo só miséria e repressão policial à qualquer tipo de revolta. Finalmente, vão parar num acampamento com condições tão boas que parece piada. O diálogo entre o diretor do acampamento e Tom é mais ou menos assim:
- Fiquem com a cabana número 25. Lá vocês vão encontrar luz e água corrente.
- O quê? Água corrente? Poderemos lavar nossas roupas?
- Isso. E, depois, se vocês quiserem, podem participar das comissões que fazem e mantêm as leis do acampamento.
- Como assim, comissões? Quem manda aqui são as pessoas que vivem aqui, não a polícia?
- São as pessoas. A polícia não pode nem entrar aqui. Apenas em caso de tumulto. Você pode falar com os membros da comissão no baile de sábado e...
- Baile? Vocês têm bailes?
- Os melhores da região. Todo sábado.
- Mas... Mas quem é responsável por este acampamento?
- O governo.
- E por que não há mais acampamentos como este em todo lugar?
- Não sei. Talvez você descubra e possa me dizer.
Juro que não tô inventando! Nessa hora me lembrei do pessoal que quer acabar com o Bolsa Família porque só dá o peixe e não ensina a pescar. Mas voltando: o diretor do acampamento, no fundo um servidor público, é o primeiro personagem no filme inteiro que trata bem à família Joad. Mas Tom logo vê que há alguns problemas. Tipo: um cartaz do lado de uma torneira diz “Mantenha limpo o acampamento e conserve água. Feche a torneira”. Uma mulher acaba de encher um balde e vai embora, deixando a torneira aberta.
E há os agentes infiltrados. Num dos bailes, policiais à paisana entram no baile com a intenção de provocar um tumulto. Assim, a força policial poderá invadir o acampamento, esmagando os agricultores (não sei porquê, mas esse negócio dos policiais à paisana me fez lembrar do protesto dos professores em São Paulo). Com a força da comunidade, esses agentes conseguem ser detidos e colocados pra fora antes que o tumulto comece.
O filme todo mostra o longo aprendizado de Tom. No fim, ele vira líder sindical. Ok, sindical talvez não, mas comunitário, com certeza. Ele diz pra sua mãe que andou pensando na injusça que é uma só pessoa ter um milhão de acres e explorar cem mil trabalhadores para trabalhar nela, pagando-lhes salários de fome. E que se talvez todas essas pessoas se unissem e gritassem, juntas... Ele acha que cada pessoa não tem uma alma individual, mas um pedacinho de uma só alma gigantesca, comunitária.
E olha só a última linha do filme, dita pela mãe (interpretada por Jane Darwell, que mais parece uma figurante tirada de alguma obra comunista do Einsenstein): “Os ricos aparecem e somem, e seus filhos não prestam e somem também. Nós somos as pessoas que sobrevivemos. Eles não podem nos varrer da Terra. Nós continuaremos pra sempre, porque nós somos o povo”.
Só faltou tocar a Internacional Socialista na trilha sonora!
É mesmo um excelente filme, Lola, e o livro então, nem se fala. Às vezes dou 'Ratos e Homens' pros meus alunos lerem, porque eles costumam gostar do filme(aquela versão com o Sinise e o Malkovich). Só mesmo juntando cinema e literatura pra convencer a moçada a ler alguns clássicos... :-)
ResponderExcluirabraço
Mônica
Caramba,
ResponderExcluirEu nunca vi esse filme, vou tentar ver assim que achar uma locadora aqui q tenha (as locadoras na minha cidade são uma piada).
Mas sabe o que fiquei impressionada? De vc falar de um livro que leu aos 16 anos. O Milton Ribeiro (um blogueiro muito legal também que eu sigo e recomendo http://miltonribeiro.opsblog.org/2010/04/30/pre-leitura-de-dom-quixote/) fala em seu post sobre dom quixote que leu o livro aos 16 anos. Eu também...E, mais, eu não li vinhas da ira com 16 anos (alias, acho que não li...se não conseguir o filme, vou ler...vou ler de qq forma, prometo) mas eu li Vidas Secas, mais ou menos com essa idade. Lembro que foi um pouco antes de dom quixote. Que coisa, né? Os alemães tem um nome para isso, mas não consigo lembrar...
sorry o post grande e fora de pauta.
boa sexta e bom fim de semana (vá a praia!!!!)
uia,
ResponderExcluirque vontadão de ver o filme... e ler o livro. :)
eu li o livro e lembro q a-d-o-r-e-i. muito bem escrito mesmo :-) bjos
ResponderExcluirLolinha, acho que quando vc for fazer crônica de livros e filmes bem que poderia colocar um aviso indicando que tem spoilers, né? :**
ResponderExcluirO pior é que eu vi esse filme, algumas vezes, na Globo!!!?!?!?!?!?
ResponderExcluirHenry não era lá um grannnnnnde ator (IMHO), apesar do oscar, mas a filmografia dele tem ótimos filmes.
Vou procurar saber sobre o livro e sobre o filme! ^.^
ResponderExcluirQue interessante.
Parece boa dica! Vou catar esse filme por aí.
ResponderExcluirDesculpe fugir do assunto, mas gostaria de te perguntar: pelo que vi, você pouco fala das cantoras mais feministas?
ResponderExcluirRevi um clipe que vi há alguns anos, de Christina Aguilera, e a letra da música (dela e de Lil'Kim) é bem feminista, criticando o machismo. Achei interessante e pensei em você, se você já viu...
Fica o link do clipe legendado: http://www.youtube.com/watch?v=HTzb0wuVwNc
Meu deus... você contou o final do livro, Lola. Como é que você me faz uma coisa dessas???
ResponderExcluirColoca um "CUIDADO: SPOILER" um pouquinho antes!
Xi, vc é vidente e não sabe... ;-) Lola, adorei o artigo. Eu queria tanto que alguém escrevesse sobre esse filme... Sempre me falam sobre o livro. Dizem que é ótimo. Nunca li, nem nunca vi. Me sinto meio peixe fora d´água, porque amo cinema essa história é uma das obrigatórias, não é?
ResponderExcluirEnfim, gostei de algumas comparações também, menos a do Bolsa Família, apenas porque acho o contexto atual bastante diferente. De resto, tô contigo, no que concerne ao "total do capital", digamos, à história do mercantilismo.
Alberto, acho que não tira a graça, não. Quando eu for assistir, nem vou lembrar. "Spoiliei" legal. "Pas de problème", amigo. ;-))
ResponderExcluirGiovanni, engraçado teu espanto; as pessoas geralmente dizem isso. Mas a tão famigerada e criticada "Globo" exibe ótimos filmes de madrugada e isso desde a minha "tenra" idade, baby total. ;-)) Tudo bem, é de madruga, mas que exibe, ah exibe!
ResponderExcluirLola, sempre me assombro com a facilidade com que você faz uma crítica (que pode ser positiva ou negativa, claro - tem gente que acha que 'crítica' só pode ser negativa; em inglês esse problema não existe, não é mesmo?) sobre filme ou livro. Você faz isso brilhantemente, com apenas um porém: em alguns momentos você força a barra para misturar pontos positivos do livro ou filme com fatos ao Lula (pra você) e negativos à oposição (pra você), mesmo quando não há conexões. Isso empobrece o texto e mina a coesão.
ResponderExcluirA Lola conta tão bem os filmes que gosta que nem preciso ve-los.....
ResponderExcluirEu concordo com o João. Não deixe o Lula e o governo dele (abstenho-me de comentários a favor ou contra!) estragarem o texto, Lola. ;-))
ResponderExcluirfilmão, mas acho que o ponto do filme é que você não precisa ter filiaçao partidária para querer justiça social. acho que essa é a confusão dos americanos, essa polarização forçada entre esquerda e direita. lutar por justiça social não faz de ninguém um leninista que queira dar um golpe de estado e se aliar ao russos (naquele tempo pelo menos).
ResponderExcluirOlá Lola.
ResponderExcluirOff topic aqui: enviei a você o texto que escrevi.
Abs.
Gi, desde A MINHA tenra idade... ;)
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