Mostrando postagens com marcador jogo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador jogo. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 19 de julho de 2019

O GAMER COMO GERME DO FASCISTA ONLINE E A URGÊNCIA DO VIDEOGAME NA RUA

Publico um excelente guest post do desenvolvedor de jogos Pedro Paiva. 
Pra quem quiser se aprofundar sobre videogame visto por um viés de esquerda, acompanhe o podcast Ataque. Pedro participou de vários episódios. 
Este texto surgiu no contexto da streamer Gabi Catuzzo ter sido afastada da Razer por ter chamado homens de lixo. Pedro não vê vantagem em ser gamer, apesar de ser um. 

Pedro escreveu este tuíte incrível, e eu
pedi para que ele escrevesse um guest
post. Assim surgiu este texto fantástico
Toda crise gamer apresenta o pior do videogame pra quem tá por fora. A primeira crise amplamente comentada fora da bolha gamer foi o gamergate, uma enorme campanha de fake news que ocorreu em 2014 e se baseava em acusações de que a desenvolvedora Zoë Quinn, autora do jogo Depression Quest, trocava favores sexuais por projeção midiática, e que por isso a mídia especializada era um antro de corrupção e sacanagem. Alguns anos antes da mamadeira de piroca. 
Antes do boom online, gamer
era só mais um jargão brega
de revistas de nicho
O mantra repetido à exaustão era "isso é pela ética no jornalismo de games" -- "isso", no caso, era qualquer absurdo que se pudesse fazer ou dizer contra uma mulher. Estava justificado pelo bem maior. Já experimentado, o gamergate se tornou uma fórmula a ser repetida: campanhas de difamação de mulheres (ou de qualquer um que se colocasse no caminho) disfarçadas de "preocupação ética" passaram a estourar periodicamente. Limpar a imoralidade na base da violência, tudo movido a fake news -- soa familiar?
Anita Sarkeesian
Antes disso, em 2011, Anita Sarkeesian tinha ficado famosa com seus vídeos Tropes vs Women, em que avaliava os diferentes clichês machistas que as personagens mulheres sofriam nos videogames. Sua influência é tamanha que hoje esse material é cânone para os desenvolvedores de jogos de qualquer porte. Ela sofreu e ainda sofre muito assédio, é claro. 
Anna Anthropy
Na mesma época, a cena queer do independente americano se fortalecia e nomes como Anna Anthropy (guardem esse nome, vamos voltar a ele daqui a pouco), Merritt K., Liz Ryerson e Mattie Brice se tornavam referência para qualquer um que estivesse seriamente interessado no videogame como linguagem madura e com preocupações sociais. Não por acaso, toda essa renovação era contemporânea à retomada das ruas por movimentos como o Occupy Wall Street e o os protestos pelo Passe Livre do 2013 brasileiro.
Em 1983, o maior inimigo da família
brasileira ainda não era Pablo Vittar
O gamergate e as suas consequências (como por exemplo a eleição de Trump e Bolsonaro) reagem à retomada das ruas da primeira metade desta década no campo em que a sociedade está mais distraída: o videogame.
O gamer nunca é confrontado pela complexidade pública, pela rua. Ele está livre dos problemas do mundo e não admite que os problemas do mundo invadam o videogame. O gamer não comunica as suas falhas pra sociedade. 
As pessoas só ficam sabendo que o videogame é um lugar terrível com pessoas terríveis quando acontece um novo gamergate, quando o lixo tóxico vaza e inunda a cidade. Aí todo mundo corre pra botar chiclete na rachadura da represa. A gente precisa de outra estratégia, mais preventiva do que reativa. A gente precisa tirar o videogame de casa pra que seus jogadores sejam confrontados cotidianamente pelas outras pessoas.
Joystick da Atari (eu, Lolinha,
sou dessa época)
O videogame é aliado poderoso do status quo porque, entre outras razões, foi se estreitando cada vez mais no consumo privado e individual. Bem antes do streaming e das redes sociais, os videogames habitaram os bares e casas de fliperama logo no começo dos anos 70, eram uma diversão boêmia. Depois foi a vez dos videogames domésticos voltados para a família, como o Atari, e as gerações seguintes foram sendo direcionadas para públicos cada vez mais restritos, com a narrativa publicitária se reduzindo aos meninos e crescendo com eles até chegar no gamer de hoje -- um homem adulto sem habilidades sociais que se entende como ser humano neutro e se ressente por não pertencer aos recortes identitários das mulheres e outras minorias. 
Haggar foi associa-
do a Bolso: um
prefeito que acaba
com o crime na
base da porrada
Busca, na alcunha de gamer, uma solução pra própria solidão hiperconectada. O resultado é que esse homem ressentido, que acreditou na publicidade e sua ficção de "os videogames são para os homens" (porque não pôde confrontá-la com o real), encontra com facilidade a extrema direita, o machismo organizado em doutrina pelos masculinistas e incels, e toda sua propaganda, tirando disso explicações que parecem plausíveis. Quem vai dizer que os neonazistas estão errados? Aquelas mulheres malvadas da internet, que com certeza não jogam videogame de verdade?
As redes sociais beberam muito do videogame mainstream. Nas redes sociais nós temos agência, publicamos coisas, definimos eleições ou temos a sensação de que estamos fazendo isso. 
Livro organizado por
Beatriz Blanco e Lucas
Goulart aprofunda o tema
Ninguém consegue nos convencer de que a compra de disparos de mensagem no Zap é mais poderosa que a nossa presença nas redes. Nós somos a mídia, ou temos a sensação de que somos ou de que qualquer um pode se tornar o novo grande influencer ou o novo presidente da república - o que a essa altura dá no mesmo. Não é coincidência que a validade da "meritocracia" seja uma das principais conversas online. As redes sociais foram projetadas à semelhança do videogame: como fantasia de poder. Você pode tudo se souber jogar.
O conteúdo de cada jogo é produto da escolha de seus autores, não de seus jogadores. Esse conteúdo é atravessado por caminhos e possibilidades que também são escolhas de design, dirigidas, que encaminham o jogador a um destino. Ninguém pode fazer nada que não tenha sido previamente planejado pelo criador do jogo -- se insistir em fazer alguma coisa que não foi planejada, é possível que o jogo "bugue", entre em colapso. Mas há nisso um ilusionismo: o jogador vai sentir que o poder está em suas mãos a cada pulo que der, a cada caminho que percorrer. 
O sucesso das interações ou o progresso no jogo é simples e cristalino, medido por valores que se acumulam: pontos, achievements, finais alternativos etc. -- como os likes e compartilhamentos. As redes sociais são a internet gameficada.
Everything is going to be ok, de
Nathalie Lawhead, é um jogo inovador
de 2018. Os gamers odeiam
Todas essas características do videogame (que são frequentemente desafiadas pelo experimentalismo do videogame independente de borda, que não encontra apoio na mídia gamer, importante dizer) não são um problema grave quando o jogador sabe que se trata de um jogo, que se trata de uma ficção interativa mediada. Todo jogador, em algum nível, está conscientemente entrando num acordo sobre brincar de acreditar na ficção do jogo. 
Mesmo assim, é importante que essas interações sejam colocadas em perspectiva, e que o jogador não se satisfaça com elas a ponto de abdicar da participação no espaço público, da participação na vida da cidade. A ficção, no jogo de videogame, não se resume à historinha que está sendo contada, mas também às regras de funcionamento do seu mundo interno. O usuário das redes sociais não sabe que está brincando numa ficção cuidadosamente planejada, e corre o risco de levar seu funcionamento para onde quer que vá -- ele não sabe onde está o contorno do círculo mágico. 
O gamer encontra na internet das redes sociais as mesmas regras que aprendeu em anos de videogame mainstream, mas que até então não tinham lhe servido fora do jogo.
Antes das redes sociais, a internet ampliava a conversa pública, e isso se perdeu no momento em que a burguesia aprendeu com o videogame as piores lições. Cada pessoa conectada hoje é o herói na retidão da missão dada pelo feed, um consumidor de informação tão dedicado que é quase um homem santo. As mídias tradicionais não nos permitem essa sensação de agência, que satisfaz a necessidade de participação pública. Para um projeto de extrema direita na era pós-internet, a TV era insuficiente.
Pichação neonazista fazendo propa-
ganda do canal do PewDiePie
O videogame é central na atual crise política, o caldeirão perfeito para o lento cozimento do fascismo: seu alcance é gigantesco e seus efeitos são indetectáveis para o outsider, o não-gamer. Um dos maiores youtubers do mundo é o gamer e criptofascista PewDiePie, já homenageado pelo Stormfront. Notch, o desenvolvedor do onipresente jogo Minecraft -- aquele que povoa o computador de tantas crianças -- não cansa de solidarizar com neonazistas e supremacistas brancos, ele mesmo um. 
Antes dos presidentes dos países, os presidentes do videogame já eram o pior que um ser humano pode ser. O videogame foi o laboratório do mundo com que Steve Bannon sonha, um laboratório muito bem escondido. O gamer é o protótipo do usuário acrítico de redes sociais, é o protótipo do fascista pós-internet.
Bolsonaro já sabe que não deve
desprezar os gamers
(clique para ampliar)
Sendo uma identidade consumocêntrica e portanto extremamente lucrativa, continuará sendo cultivada pela burguesia -- que a inventou através do seu aparato editorial-publicitário -- a despeito dos efeitos devastadores que causa na sociedade. 
A inclusão de indivíduos diversos porém obedientes nesse grupo identitário não altera a sua função, que é de manutenção do status quo. Aos dissidentes: feministas, esquerdistas, gayzistas e toda ordem de "extremistas" no vocabulário da Razer, sobrará apenas a violência das hordas de seguidores dos influencers e o consequente ostracismo.
Precisamos de uma revolução cultural no videogame. Precisa ficar claro para os gamers: o consumidor não tem sempre razão, por mais que ele corresponda como um espelho a um determinado público-alvo. Cada indivíduo deve ter um papel ativo na construção de uma cultura da solidariedade, e a identidade gamer obstaculiza o processo de compreensão dessa verdade tão simples. O indivíduo que se compreende, antes de qualquer coisa, como gamer -- ou seja: como consumidor -- está infantilizado pela estratégia capitalista. Infantilizado e à espera de um pai, um führer, um duce ou um mito que expulsem da cultura de consumo tudo aquilo que procura a colocar em perspectiva, em relação a um todo complexo.
É importante que os antifascistas compreendam o videogame, e pra isso é importante que o videogame saia de casa, supere o âmbito privado. Não podemos reclamar que a sociedade não entende o videogame, lamentar que não está pronta pra enfrentar o que ele tem de pior, se o videogame não vai pro lugar em que a sociedade acontece: o espaço público.
201X
Pra viver em sociedade a gente tem que fazer a manutenção das opiniões todo dia, checar a veracidade das coisas ditas na comparação com o que acontece de fato. Sem a rua a gente não consegue fazer isso.
O antifascismo no videogame
busca as ruas como seu lugar
Foi acompanhando o trabalho de Anna Anthropy que conheci o Oakutron 201X, uma colaboração dela com os companheiros Alex Kerfoot e Mars Jokela. Oakutron era um gabinete arcade sobre rodas, projetado para acompanhar as pessoas durante as marchas do Occupy Oakland. Anthropy desenvolveu um jogo especialmente para a máquina, o Keep Me Occupied, que não podia ser vencido sozinho. O Oakutron também tinha seus momentos sedentários e era uma opção de lazer coletivo para a comunidade. Um projeto de importância muito maior do que a sua repercussão tímida na época, Oakutron 20IX é pra onde precisamos olhar agora, em 2019.
Temos que ser criativos, temos que criar novas formas de consumo e distribuição do videogame que possam acontecer fora de casa e fora dos algoritmos que premiam o fascismo e a misoginia. O videogame de borda tem o dever de solucionar esses problemas. A outra opção é a resignação.
O Pirata de Prata
rodando a demo "64
nunca mais" no Mercado
de Pulgas, um brechó
de Porto Alegre
Inspirado principalmente pelo Oakutron dos camaradas de Oakland, tenho dedicado esse ano a desenvolver o conceito de fliperamosfera -- em analogia à blogosfera de uma internet anterior às redes sociais -- e experimentar na prática o que seria o videogame na rua de uma perspectiva descolonial e antifascista.
A fliperamosfera em sua forma madura seria uma rede de gabinetes que se espalham pela cidade e ocupam ambientes diversos, publicando os jogos que não encontram apoio no consumidor gamer nem na mídia especializada que depende da audiência gamer pra se sustentar. A rua deve acolher o videogame que, na internet, é rejeitado pelos 300 mil inscritos dos youtubers bolsonaristas. Ao mesmo tempo, o videogame deve honrar a rua que pisa e levar toda sua imaginação pra enriquecer as grandes conversas e desafiar os que estão errados demais.
Os jogadores que estão em casa devem sentir que estão perdendo uma parte fundamental daquilo que tanto gostam de fazer, devem ser empurrados pra rua na excitação de suas curiosidades. O videogame privado e individual -- o videogame dos gamers -- é insuficiente e os jogadores precisam sentir essa insuficiência no corpo. Há muito mais acontecendo do que nos permite ver o feed. E a fliperamosfera é só uma das mil coisas que podemos fazer!
Outras opções incluem organizar "clubes do jogo" nos nossos bairros, coletivos, organizações e partidos -- à semelhança dos clubes do livro, rodas de conversa para que possamos nos aprofundar na compreensão das ficções em que mergulhamos. Existem colecionadores de videogame nas nossas cidades: eles podem tomar pra si a responsabilidade de socializar esse acúmulo -- não só através de streaming, mas montando jogotecas temporárias em contextos que sejam também de formação cultural e política. Campeonatos de jogos específicos podem ser organizados localmente -- o e-sport ou o speedrunning de várzea é perfeitamente possível. 
E eu nem estou inventando essas ideias agora: muitas surgiram de sugestões de colegas nos encontros da Peteca: uma organização de abrangência nacional que se propõe a pensar o videogame independente sobre bases de esquerda e libertárias, você pode se informar se já não existe uma Peteca acontecendo na sua cidade, e você mesmo pode fundar uma célula local!
A datação com X remete aos jogos
do Mega Man, que apresenta um
futuro de máquinas em guerra
Nosso compromisso deve ser de levar o videogame pro espaço público, virar a mesa, colocar o gamer na vergonha educativa e na compreensão da sua condição de inacabado -- só para citar Paulo Freire -- e oferecer o videogame para quem está disposto a viver em sociedade, encarando com amor ao próximo a complexidade do mundo! 20XX será bom!

quinta-feira, 27 de junho de 2019

GUEST POST: SOBRE UMA MULHER QUE JOGA

Publico aqui o excelente texto de uma jornalista e gamer sobre um caso que vem bombando nos últimos dias. Por motivos óbvios (nerdice misógina), a autora prefere manter-se anônima. Vamos lá!

Clique para ampliar
Nos últimos dias o assunto do Twitter tem sido mais um episódio de ataque às mulheres: a situação a qual foi submetida uma streamer chamada Gabi Cattuzo. A influencer gamer respondeu a um seguidor que comentou a sua foto dizendo “pode montar em mim a vontade”. A resposta dela irritou muitos homens que se sentiram pessoalmente ofendidos com a sentença “é por isso que homem é lixo”. 
A situação atraiu holofotes para a comunidade gamer que se mostrou mais uma vez misógina e recheada de incels [celibatários involuntários, os populares "virjões"]. Digo isso porque não tardou para que Gabi logo recebesse uma enxurrada de mensagens “mas nem todo homem” promovendo linchamento virtual, e se tornasse alvo dos fóruns e chans que diariamente ameaçam mulheres -- principalmente as feministas -- e outras minorias. 
Ridícula nota da marca Razer
A influencer já abandonou as redes sociais temendo sofrer mais intimidação, já que, como publicou em um dos seus últimos tweets, tanto ela quanto a família estavam recebendo ameaças.    
Como se fosse possível piorar a situação, a marca Razer, que patrocinava a profissional, pressionada pelo público, soltou uma nota onde anuncia a quebra de contrato com Gabi e ainda diz que não compactua com nenhum tipo de discriminação. Adendo: é esta mesma empresa que faz campanha para vender periféricos em cor de rosa às mulheres gamers e, com isso, diz que apoia o movimento. 
A marca usa o argumento de que o público gamer sempre sofreu preconceitos, por isso luta para acabar com esse tipo de situação. Ou seja, se o teor considerado ofensivo for uma arma de defesa da mulher contra o patriarcado que TODOS OS DIAS nos causa agressões, não pode porque é intolerância. Mas se forem insultos a ponto de causarem linchamento virtual por parte de homens direcionados às mulheres, aí pode porque esses homens são ~gamers~ e sempre sofreram preconceito. Tadinhos!
A generalização no tweet de Gabi foi o suficiente para atrair e revolta de toda uma comunidade masculina, e ela mesma disse -- em um comentário posterior -- que foi grosseira, que se arrepende de ter generalizado, e desculpou-se pela forma como falou. Mas não foi o suficiente, era necessário mostrar muito mais poder para restabelecer a ordem no mundo dos machinhos. 
A ideia de que a comunidade gamer é injustiçada rodeia o imaginário do jogador desde que o geek e o nerd deixaram de ser uma cultura estranha e passaram a ser pop. Mas o ódio às mulheres neste meio se reflete, assim como em todos os outros ambientes sociais dominados pelo patriarcado. 
Nós mulheres somos vistas como intrusas no clube do bolinha, como ingratas que muitas vezes rejeitamos os nerds, os abandonamos na friendzone, e preferimos o cara popular. Por isso não somos bem recebidas nesse espaço dominado por homens amargurados.
O curioso é que o oposto também acontece. Quando não ouvimos que nosso lugar é na cozinha e que os únicos botões que sabemos apertar são os do fogão, ouvimos assédio e sexualização. A reação do homem dificilmente é natural quando há uma mulher na partida,  seja ela identificada por voz, pelo nickname ou -- pasmem -- por jogar mal, o que já é associado ao comportamento feminino, assim como dirigir mal. 
Digo nós porque sim, sou uma mulher gamer. Nem me lembro qual a primeira memória com os jogos, eles estão na minha vida desde sempre. Hoje, aos 25 anos, continuo ativa e até poucos meses atrás, escondida sob nicknames masculinos. Não me envergonho em dizer que o medo de me identificarem mulher nesses espaços era maior do que o orgulho que sinto de ser uma feminista que defende o seu gênero. 
A experiência de jogos online para mulheres é traumatizante a ponto delas criarem grupos femininos exclusivos com verificação para comprovar acesso. Há três anos, quando terminei a graduação em jornalismo, escolhi este assunto como pesquisa para a minha monografia. Queria entender o que fazia os homens acharem que o universo gamer era um espaço deles.
Durante muito tempo foi negado às mulheres a oportunidade de frequentar espaços de debate acadêmico, de estudar, de debater. As tecnologias digitais e de comunicação, sempre impulsionadas pelas guerras, também eram ambientes masculinos. A nós foi negado o direito de ter protagonismo no desenvolvimento tecnológico, de produzir o saber acadêmico e filosófico (e mesmo assim resistimos quando descobrimos mulheres com importância histórica que foram apagadas). 
Busquei outras mulheres que assim como eu queriam diversão e entretenimento no mundo dos jogos, mas recebiam xingamentos e insultos -- depósito de porra e merdalher são os mais comuns. Foi uma época difícil em que eu me fragilizei por estar exposta a tantos casos de ódio às mulheres. E esse episódio com a Gabi me fez reviver tudo isso. 
Por mais que você seja ou não uma mulher gamer é impossível que não tenha sentido empatia com tudo a que Gabi foi submetida. Mas o pior é que não foi um caso isolado, esta é a realidade das mulheres que todos os dias logam em qualquer jogo online. Meu afeto a todas vocês. Resistimos e resistiremos! #SouMulherSouGamer

quinta-feira, 6 de março de 2014

GUEST POST: "TENTE COMER A ARIANE", O JOGO

Este é o email de uma leitora muito simpática, a C.:

Eu e alguns amigos da faculdade temos um grupo secreto no Facebook para discutir algumas questões de nosso interesse, mas sempre escapa uma pontinha de entretenimento ali, porque criamos uma certa intimidade. Outro dia uma garota postou o link para um jogo cujo objetivo é transar com a Ariane.
Em inglês, o jogo mostra uma mulher bonitona em sua sala e te dá algumas opções de ações, que você seleciona com um clique. Dependendo do que você faz, novas opções para a situação irão abrir e você pode selecioná-las. A meta é levar Ariane para a cama e transar com ela. 
Achei ridícula a ideia e fiquei desapontada por ter sido uma garota que compartilhou o link do jogo no grupo. Ela é lésbica, OK, mas essa coisa de que levar uma mulher pra cama é uma graaaande conquista, eu acho machismo puro. Enfim, antes de criticar fui jogar uma partidinha do jogo, tentar comer a Ariane -- como todos estavam dizendo em comentário.
Em um dado momento, depois de algumas taças de vinho, Ariane foi pro quarto se trocar para entrarmos na piscina. Enquanto aparecia embaixo da tela a fala da moça "Vou colocar meu biquini, ok?", minhas opções eram: "Esperar no corredor" ou "Seguir Ariane até o quarto". Como eu devia comê-la, fui no mais óbvio e a segui até o quarto, morrendo de tédio com o jogo mais inútil da humanidade. 
Aí a surpresa! Ariane se vira e me diz que não se deve seguir uma pessoa até o quarto quando ela vai se trocar! É melhor você ir embora agora. E me dispensou sem eu conseguir transar com ela. Gostei. "Olha só! Ariane ensinando um pouco de educação para os rapazes que acham que comer uma mina é como ganhar um trofeu!" 
Comecei uma segunda partida. Dessa vez caprichei no vinho, pra testar o software e ver se bêbada a Ariane ficava mais "fácil" (é a lógica machista do estuprador, não?). Teve uma hora que abriu a opção de sairmos para uma volta de carro e então Ariane me disse "Eu bebi demais, você está mais sóbrio. É melhor que você dirija", e saímos com o Jeep da moça. 
Levei-na a um restaurante, comemos e eu paguei a conta. Ela disse "A próxima será por minha conta!" e fomos embora. Dançamos um pouco na sala da casa dela e depois tentei levá-la pro quarto. "Ah, a noite foi ótima! Mas eu bebi demais e estou com a cabeça um pouco zonza. É melhor você ir, eu vou dormir. Boa noite!". 
Enquanto eu jogava, no grupo os comentários ferviam! Moças e rapazes (e até rapazes gays) frustrados: "Levei ela pra jantar e a caralhada toda, mas ela não quis dar pra mim!", "Que mina difícil! A gente estava jogando basquete e ela mostrou os peitos dizendo que era tática pra me distrair, mesmo assim não quis deixar eu comer ela depois!" e por aí vai. Lendo tudo, percebi que os comentários frustrados eram sempre movidos pelo fato do nosso senso-comum machista ter sido desmentido:
- Paguei a conta e nem assim ela topou.
- Ela me mostrou os peitos e nem assim ela topou.
- Nadamos pelados e nem assim ela topou.
- Fiz massagem e nem assim ela topou.
- Embebedei ela na boate e ela caiu passando mal, vi a perereca dela por baixo do vestido e nem assim ela topou.
Enfim, até comentei isso lá no grupo, que talvez o jogo seja apenas uma (brilhante) armadilha feminista pra mostrar aos jogadores que a única coisa que vai fazer uma mulher querer transar com você é exatamente ela querer transar com você. Só que pelo jeito que o povo estava comentando, Lola, parece que o jogo tem o efeito contrário: como ele tem um objetivo machista, ele nos contagia com o machismo que aprendemos todos os dias e nos faz pensar -- até mesmo as mulheres! -- no quanto é frustrante investir em uma mulher, ver ela se oferecendo (mostrando os peitos e se embebedando -- claro, porque isso é se oferecer) pra no fim das contas ela não querer te dar o grande prêmio: uma transa. 
Eu achava que o jogo não tinha como ser vencido, mas tem sim. Uma menina até postou o print da vitória (comendo a Ariane). O jogo me fez pensar nisso tudo, porque leio seu blog, porque sou feminista, porque tenho embasamento pra perceber a receita machista de como ser o pica das galáxias. 
Mas e os outros? O meninos mundo afora jogam isso aí e saem pra vida real acreditando que, num encontro, comer a Ariane (ou a Amanda, ou a Lola, ou a C...) é o grande objetivo? Mesmo que a Ariane não aceite ser comida quando está bêbada, quando o jogador é rápido demais, abusado demais, etc.. Acho que não está completamente certo. 

Meu comentário: Parece ser um jogo didático com algumas boas intenções, C. (apesar de heteronormativo, pelo que vi -- espera-se que só os homens possam transar com Ariane?). Mas, como você bem apontou, as interpretações vão depender de cada um. 
Vou ser a otimista incorrigível de sempre (Polyanna Deslumbrete, como me chama a Sômnia) e concluir que, na próxima vez que um carinha sair com uma mina que o beije mas não queira fazer sexo naquele momento, ele pense: "Putz, ela me beijou e mesmo assim não quis transar", e lembre-se do joguinho. E aceite um pouco melhor que ninguém tem obrigação de fazer sexo se não estiver a fim.