Outro dia eu vi o filme Homem Invisível (de 2020) e queria compartilhar algumas observações com vocês. Só que com um probleminha: tem spoilers. Espero que vocês vejam o filme antes de ler aqui.
Custou 8 milhões de dólares, rendeu quatro vezes isso no seu fim de semana de estreia, em fevereiro, e depois, como todos os filmes na pandemia, morreu e pode ser visto na internet (em breve, talvez, nem isso, porque quando serão feitos novos filmes e séries?). Até agora, foi o oitavo filme mais visto do ano. Um sucesso, inspirado bem de longe no clássico de H. G. Wells.
Começa meio como Dormindo com o Inimigo, um filme bem fraquinho mas que eu adoro, pelo menos até a metade. Amo histórias em que a protagonista precisa sumir sem deixar vestígios, mudar de cidade, de nome, fugir mesmo. Eu sempre me pergunto até que ponto isso é possível, e se seria melhor se esconder numa metrópole ou numa cidadezinha no meio do nada. Não que eu esteja pensando em escapar -- sempre me pareceu uma narrativa instigante.
Enfim, a primeira metade de O Homem Invisível não é ruim. É bacana como ele é completamente diferente de O Homem Sem Sombra, aquele filme em que o Kevin Bacon descobre a fórmula da invisibilidade e uma das primeiras coisas que decide fazer é estuprar uma vizinha. O Homem Sem Sombra é todo na perspectiva do cientista/criminoso, enquanto O Homem Invisível, apesar do título, é todo na perspectiva da vítima, Cecilia, interpretada por Elisabeth Moss.
Ela vive um relacionamento abusivo, consegue fugir, o cara se mata (ou finge que se mata), mas ela continua se sentido vigiada e perseguida. Ou seja, uma trama muito atual sobre stalking, violência doméstica, tortura e gaslighting (já que todo mundo acha que Cecilia está louca). A parte da protagonista se sentir observada o tempo todo é muito verdadeira das vítimas de stalking.
Nesse sentido, o filme é feminista. Ele mostra como a mulher é invisível nas suas denúncias contra a violência doméstica, como ninguém vai acreditar nela. Também é atual em como um cara genial (afinal, ele inventa um uniforme que torna pessoas invisíveis) usa seu brilhante instrumento apenas para o mal. Sua missão na vida não é criar algo que possa melhorar a vida em sociedade (ou a invisibilidade só tem fins negativos?), mas infernizar a vida da sua ex, que ele não aceita que seja ex. Homem Invisível também se refere à vida não visível de um homem rico e poderoso, de como ele age dentro da sua casa.
Só que infelizmente o filme começa a ficar absurdamente ridículo na cena (acima) em que o homem invisível mata a irmã de Cecilia e põe a faca na sua mão. E aí não se recupera mais.
Pô, ser invisível não significa ser onipotente. Você não ser visto por outras pessoas (só sentido por cachorros) não é a mesma coisa que poder se teletransportar. Se há uma porta, a pessoa invisível ainda precisa abri-la e entrar, certo? Uma pessoa invisível ainda tem cheiro, ainda tosse, espirra, ronca, peida, esbarra nas coisas. Faz barulho. Não é porque você é invisível que você se torna um super-herói, um exímio lutador que derrota sozinho uma dúzia de policiais armados. Você tem uma grande vantagem em não ser visto, mas só isso não deveria ser suficiente pra você saber em qual restaurante sua ex vai encontrar a irmã.
Ainda no meio do filme o maridão teve um lampejo (o que é muito raro pro maridão, eu geralmente preciso explicar as reviravoltas pra ele): “É o irmão!”. Eu respondi que não, não pode ser, o comportamento do homem invisível não é de um irmão que quer ficar com dinheiro, é típico de um ex abusivo mesmo. E não é que ERA o irmão mesmo, mais ou menos?
É ridículo. Assim como é patético o irmão oferecer pra Cecilia que, se ela voltar com o marido, ela pode sair da prisão. Como assim? Tem um monte de testemunha num restaurante cheio dizendo que a viu matando a irmã. Mas a polícia do filme deve aceitar tudo numa boa. Aceitou que Adrian (o ex abusivo) esteve algemado em sua própria casa durante todo esse tempo e que não foi ele que forjou sua morte, foi o irmão.
Se o filme fosse corajoso, nossa protagonista interromperia sua gestação não desejada (e possivelmente fruto de estupro) no final, como faz a personagem de uma produção bastante parecida (pois pode-se dizer que a moça também está num relacionamento abusivo) mas muito, muito superior, Devorar (Swallow). No caso, o único interesse que toda a família rica tem na esposa submissa é que ela carrega no ventre o futuro herdeiro da empresa familiar. Pra ela conseguir fugir e ser deixada em paz, só abortando mesmo.
Porém, Homem Invisível não tem dessas sutilezas. É cheio de boas intenções -- colocar a estrela da série de TV O Conto da Aia como protagonista sempre trará subtextos feministas --, mas ele não fica acima de um filme medíocre e cheio de furos.