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segunda-feira, 20 de novembro de 2023

É RIR PRA NÃO CHORAR COM O NAUFRÁGIO DA ARGENTINA

Qualquer pessoa minimamente sensata está desapontada que a Argentina -- que muita gente achava que era um país mais politizado que o Brasil -- elegeu um traste completo como Javier Milei. 

As pesquisas erraram feio. Poucos imaginavam uma porcentagem tão grande para o maníaco da serra elétrica: 55% a 44% para Massa. O atual ministro da economia teria que descontar em Buenos Aires (que representa a metade dos eleitores do país) a enorme vantagem de Milei nas outras províncias, mas só conseguiu empatar. Nas províncias de Mendoza e Córdoba, Milei teve mais de 70%. E lá não tem Nordeste pra salvar o país. Só Santas Catarinas.

Tudo bem, a "esquerda" argentina (tenho dificuldade pra encarar peronismo ou kirchnerismo, dos quais nunca fui fã, como esquerda) errou feio em escolher Massa para ser o candidato. O atual governo é um fracasso, não foi capaz de reverter a desgraça de Macri (de direita), e o resultado está aí: inflação anual de mais de 140% e miséria em 40%. Era duro votar em Massa sem pensar que ele seria a continuidade. Mas dar um tiro no escuro desses e eleger um cruzamento de Bolsonaro com Paulo Kogos (como estava ontem no Twitter)?! Pô, eu votaria em qualquer coisa pra não votar no Milei! Votaria no Conan, o cachorro morto que lhe dá conselhos! Votaria até nas pulgas espirituais do Conan! Votaria até no Macri! (no Bolsonaro não. Há limites pra tudo nessa vida). 

O principal grupo que elegeu Milei foi de rapazes jovens, sem educação formal, que já nasceram numa Argentina em crise (em 2001 o país passou pela pior crise de sua história, com cinco presidentes em duas semanas!) e nunca viram seu país prosperar. Desiludidos, achando que não podem contar com o Estado pra nada, eles acreditaram na lorota da extrema-direita de que é melhor acabar mesmo com o Estado! Ironicamente, esses são os que mais vão sentir na pele o que é um país quebrado, sem subsídios para a população, com tudo privatizado. Como sempre, alguém vai ganhar muito dinheiro com um governo de extrema-direita. Pena que não será o povo.

Milei já anunciou que romperá relações com seus dois maiores parceiros comerciais, China e Brasil. Disse que quer acabar com o Mercosul e que os primeiros países que irá visitar, logo após sua posse no dia 10 de dezembro, serão Israel e Estados Unidos. Na sua declaração de hoje afirmou que "tudo que puder estar em mãos privadas estará" (olha o tamanho do desastre). 

O sociólogo Rudá Ricci destacou num fio algumas das propostas do cosplay de Capitão Gay (personagem antigo do Jô): na educação, Milei quer a fusão dos ministérios da saúde com o da educação, criando o "Ministério do Capital Humano". Propõe um "voucher da educação", e o livre comércio de órgãos humanos. Uma de suas promessas (que provavelmente não será concretizada por falta de verbas) é fechar o Banco Central e dolarizar a economia, exterminando o peso argentino. Terá minoria no Congresso, o que pode brecar seu projeto de destruição total. Mas qualquer coisa que fizer já será ruim.

Não haverá surpresas. O programa neoliberal de Milei já foi provado e reprovado. Não deu certo no Chile, nem na ditadura militar argentina, nem com Menem, nem com presidentes substitutos que ficaram poucos dias no cargo, e, finalmente, nem com Macri. Não há nada de diferente no discurso de Milei. Minha previsão (podem anotar) é que será uma gestão tão, mas tão tenebrosa que ele não completará seu mandato. 

Pra reaça (de qualquer país) é fácil fazer previsão, já que eles não têm o menor compromisso com a ética e com a verdade. Quando Milei der muito errado (e vai dar), irão dizer que ele não é um libertário de verdade, que ele não é de (extrema) direita. Foi o que fizeram com Macri, lembram? Alguns bolsonarentos arrependidos adotaram esse "argumento" pro Bolso também. Não cola. Assumam: vocês não sabem votar. Muito menos governar. Só roubar.

Pra não chorar, a gente fica com o bom humor. O único lado positivo dessa história é que um monte de bolsonarista havia dito que se mudaria pra Argentina se Milei ganhasse. O problema é que não dá pra confiar. Mentem o tempo todo. Mas se for por uma boa causa, a gente faz vaquinha pra pagar as passagens só de ida.

Uns juraram que ganhar a Copa do Mundo foi tipo a última refeição de um condenado antes da execução. Outros que o resultado das eleições se deve a gerações de argentinos que vieram passar o verão em Santa Catarina. Um escreveu: "as veias fudidas da América Latina", ha ha (triste).

Como disse um humorista, "Zoar a Argentina agora é chutar cachorro morto. E cachorro morto é assunto de Estado". Uma tuiteira colocou um vídeo do Inelegível telefonando pro Milei com a legenda "Milei adora falar com cachorro morto". O extremista já declarou que privatizará a YPF, a petroleira deles, e tem um bocado de gente pedindo pro Lula mandar a Petrobrás comprar a empresa argentina. Outro disse que daqui a alguns meses poderemos trocar um caminhão de abacate por qualquer empresa do país vizinho. Outro: "Já já vão querer anexar e vamos mudar 'do Oiapoque ao Chuí' para 'do Oiapoque ao Ushuaia'". 

Já o maridão sugeriu (é brincadeira, sulistas de esquerda!) que, como Milei promete liquidar a Argentina, os bolsonaristas do Sul bem que podiam comprar um pedaço do norte da Argentina (vai ficar baratinho logo), se mudar pra lá, e fundar o Sul é Meu País. Aí a gente aproveitaria RS, SC e PR livres de fascistas para criar o Nordeste do Sul por lá.

Não, sério, assim como existe resistência no sul do Brasil, também existe na Argentina. Muita gente (principalmente as mulheres, acima de tudo as feministas) continuará lutando. Vamos torcer por elas para que o pior passe logo e lutar junto sempre que pudermos. 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

UFA! MASSA VAI DISPUTAR SEGUNDO TURNO COM O LUNÁTICO MILEI

Ufa! O mundo todo respira aliviado, enquanto os reaças choram e gritam "fraude!". O candidato da extrema-direita Javier Milei não ganhou as eleições argentinas ontem. Ficou em segundo lugar. Agora vamos para um segundo turno duríssimo a se realizar no dia 19 de novembro.

Tal qual Jair, Javier também foi deputado federal medíocre (não aprovou nenhum projeto, só compareceu à metade das sessões). Porém, ao contrário do brasileiro, que passou quase 30 anos sem fazer nada de bom na Câmara, o argentino ficou só dois anos. É o candidato do Tik Tok, do meme, que cativa homens jovens com pouca instrução formal, aqueles que sempre viveram numa Argentina em crise e que, por acharem que não podem contar com o Estado para nada, aceitam destrui-lo. 

Milei, que afirma sem corar em entrevistas que seu pai começou a trabalhar com 3 anos, promete acabar com o Estado. Quer reduzir os ministérios para apenas oito, dolarizar a economia (mesmo que o país não tenha recursos para isso), liquidar o Banco Central, privatizar empresas públicas (e também a educação e a saúde), tirar direitos trabalhistas, revogar a lei aprovada em 2020 que legalizou o aborto, proibir educação sexual nas escolas, reduzir a maioridade penal, permitir posse de armas. Defende a venda de órgãos e apoia a ditadura militar. Prometeu uma nova guerra com a Inglaterra para recuperar as Malvinas. E, como desgraça pouca é bobagem, ontem ainda corria o boato de que o lunático convidaria Paulo Guedes pra ser ministro da Economia de lá. 

Além de todas essas barbaridades, "El Loco", como é conhecido, acha que seu cachorro Conan era um leão. Gastou uma fortuna para cloná-lo, e hoje contrata uma médium para se comunicar com o espírito do seu cachorro morto. Foi o cão que lhe disse que ele deveria ser presidente. Como brincou Gregório Duvivier num programa muito divertido, pode ser que a médium ouviu "au auf" e entendeu "au au", e aí o "você deve usar um pente" foi interpretado para "você deve ser presidente". 

Sua irmã é estrategista da campanha, e Milei já disse que, caso eleito, ela desempenhará o papel de primeira-dama. Ele não é casado nem tem filhos (fora os cães), o que deve fazer dele o ídolo dos mascus argentinos. 

Com esse currículo, não é difícil prever que, se Milei virar presidente (que as deusas proíbam), ele quebra a Argentina em menos de dois anos e não termina o mandato. Teremos um cenário como o de 2001, quando o país na sua maior crise teve cinco presidentes em duas semanas. E como o projeto da extrema-direita é a destruição total, é lógico que ela torce pelo "quanto pior, melhor". Dudu Bananinha, também chamado de Eduardo Bolsonaro, esteve em Buenos Aires (com nosso dinheiro) para apoiar Milei. Ao dar uma entrevista ao vivo defendendo porte de armas, foi tirado do ar na hora. "Por sorte os brasileiros removeram seu pai do poder", disse o apresentador sobre "esse tipo de gente". 

Bolso evidentemente tira votos de Milei. Um comercial comparando os dois está sendo muito eficaz. Espero que nossos hermanos continuem mostrando o quanto o projeto da extrema-direita foi catastrófico por aqui. 

A eleição está longe de estar ganha, mas eu e um monte de gente estamos mais otimistas agora. Primeiro que 78% dos argentinos votaram (a alienação e a falta de entusiasmo político sempre favorecem a direita). Segundo que o candidato governista, Sergio Massa, foi bem melhor do que se esperava -- teve quase 37% dos votos válidos, contra 30% de Milei. 

Não será fácil, pois Massa é o atual ministro da Economia num país arrasado. Mas os cerca de 10% dos votos do quarto e da quinta candidatos, ambos de esquerda, devem ir pra ele. E, com parte dos votos de Patricia Bullrich (que teve quase 24% e é de direita, da turma do Macri), Massa pode chegar lá. Ele deve adotar o mesmo discurso de Lula e outros líderes da esquerda na América Latina, pedindo um pacto nacional, um governo de coalizão pela democracia e contra o ódio.

Como Bullrich é de direita também, muitos pensam que esses votos irão pra Milei, fazendo dele o favorito. Mas não é tão simples assim. Tem reaça que pode não querer um selvagem da motosserra na presidência. Sem falar que, durante a campanha do primeiro turno, Milei chamou Bullrich de "assassina" (porque ela já foi guerrilheira, antes de se converter à direita). Mesmo que parte dos eleitores de Bullrich não votem em Massa, mas deixem de comparecer às urnas, isso impulsiona o peronista. Além disso, o dono do único instituto de pesquisa que acertou a vitória de Massa ontem lembra que a principal bandeira de Milei -- a dolarização da economia -- é rejeitada pela maioria da população. 57% dos argentinos são contra. E o receio de perder subsídios de energia, metrô e ônibus assusta o eleitor mais pobre de Milei.

Outra boa notícia para Massa é que o governador de Buenos Aires Axel Kicillof, do mesmo partido que ele, foi reeleito no primeiro turno. Metade dos eleitores da Argentina estão em Buenos Aires. Massa ganhou fácil lá. Se ampliar essa margem, leva as eleições.

Pra mim, o melhor sinal das boas chances de Massa é que Milei não cresceu nada entre as primárias de agosto e ontem. Ele teve 30% em agosto e teve 30% ontem, apesar de todo mundo só falar nele há meses, e da extrema-direita do mundo inteiro se unir em torno dele. Ele era favorito nas eleições de ontem e chegou a dizer que estava a 3 pontos de ganhar no primeiro turno (lá é diferente daqui, em que quem tem 50% dos votos mais um se elege já no primeiro turno. Lá basta 45% dos votos, ou 40% com mais de 10 pontos sobre o segundo colocado. Logo, quem ficou a 3 pontos da vitória foi Massa). 

Milei também alegou que, se não ganhasse, seria por fraude (a principal defesa de Bolso e Trump quando perdem). E isso num país com voto impresso e auditável! A maior parte dos analistas acreditava que haveria segundo turno, mas uma coisa é chegar no dia 19 de novembro com quase 37% dos votos (o que Massa conseguiu fazer), outra é chegar com 30% (a situação de Milei). Essa vitória inesperada de Massa dá um ânimo e tanto na reta final, e esse ânimo costuma contagiar o eleitorado. 

Vamulá, hermanas e hermanos! Livrem o mundo de mais um pelotudo fascista!

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

ATENTADO CONTRA CRISTINA KIRCHNER NOS FAZ TEMER PELA SEGURANÇA DE LULA

Ontem à noite, em frente à casa da vice-presidenta Cristina Kirchner, em Buenos Aires, ela sofreu uma terrível tentativa de assassinato.

As cenas são assustadoras: numa das gravações, percebe-se a movimentação de um homem (e dos seguranças) para chegar mais perto da vice-presidenta. Em outra, que foca nela, vemos seu rosto, e a arma sendo engatada. E a arma falha! Só por isso Cristina está viva, no que é considerado o mais sério crime político da Argentina desde a redemocratização.

Pra piorar, o terrorista é um brasileiro: Fernando Andres Sabag Montiel, de 35 anos. 

Hoje de manhã a ex-presidenta Dilma telefonou para sua amiga Cristina, que disse que escapou por um milagre. Segundo o que a polícia lhe informou, a arma, que era de verdade (uma Bersa calibre 32), tinha cinco balas, mas o atirador estava nervoso, se atrapalhou e, ao disparar, não puxou o gatilho direito, e nenhuma das balas entrou na câmara da pistola. 

Todos os candidatos a presidente no Brasil condenaram o ataque, lógico, exceto um. Bolso, como bom psicopata que é, não fez nenhuma declaração oficial (o que é visto como mais uma crise diplomática), mas falou aos seus no cercadinho, rindo: "Eu lamento. Agora, quando eu levei a facada, teve gente que vibrou por aí. Lamento, já tem gente que quer botar na minha conta esse problema. E o agressor ali, ainda bem que não sabia mexer com arma. Se soubesse, teria sucesso no intento".

O terrorista foi detido ontem e está preso. Ele nasceu no Brasil, mas seus pais são argentinos, e ele passou poucos anos de sua vida aqui. Ele obviamente é nazista, com direito à tatuagem nazista no corpo e tudo o mais, mas, por incrível que pareça, ele não é bolsonarista, de acordo com especialistas. Pelo menos não foram encontrados registros que ele apoia o pior presidente de todos os tempos ou que ele faça parte de grupos de extrema-direita bolsonaristas. É que o diz a Bicicreta, que, ao analisar as tatuagens de Fernando, constatou que ele é um nazista esotérico. 

Os bolsonarentos lançaram deste ontem mais uma fake news: que o atentado teria sido uma armação da própria Cristina! (de armação eles certamente entendem). É impressionante: os bolsonaristas que comemoraram o atentado, ou que lamentaram que não deu certo, ou os que sonham em usar suas armas de colecionadores contra certos políticos de esquerda no Brasil, são os mesmos que gritam "armação!" 

O que comprova o que eu digo há quase quatro anos: se o atentado contra Bolso em Juiz de Fora tivesse sido contra Haddad, não existiria um só bolsonarista na Terra que acreditasse. Todos gritariam "armação!"

Vamos imaginar circunstâncias idênticas: Haddad (é que Lula estava preso, babaca!) excepcionalmente sai sem colete, nos braços do povo, com seguranças que parecem mais preocupados em proteger Adélio que Haddad. Adélio tenta esfaquear Haddad uma vez, não consegue, mas tem tempo para se aproximar e tentar de novo. Não sai sangue. Adélio é rendido sem sofrer um só arranhão. Haddad é levado ao mesmo hospital que visitara pela manhã. 

No mesmo dia, um filho de Haddad declara "Agora ele vence a eleição". Quinze dias antes, o próprio Haddad havia dito para uma fiel colega de partido que, se levasse uma facada, ganharia a eleição. Outro filho de Haddad divulga uma camiseta com sangue, mas opa, é uma montagem. Quatro meses antes, um pastor havia abençoado o abdome de Haddad. Adélio é julgado inimputável. Haddad não recorre.

Os campeões em teorias da conspiração são eles, não nós. Por isso gritaram "armação" na mesma noite do atentado a Cristina Kirchner. Mas, ao ver as cenas assustadoras de ontem, duvido que muitos de nós não tenhamos pensado no risco que Lula corre. Temos um candidato que pode ganhar no primeiro turno e um bando de fanáticos bolsonarentos armados que insistem que fariam qualquer coisa em nome do messias para impedir. E não só agora, enquanto ele é candidato. Ele pode sofrer um atentado quando voltar a ser presidente também. Neonazista disposto a eliminar inimigos é o que não falta.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

JUSTIÇA PARA THELMA FARDÍN: O CASO MAIS FAMOSO DO #METOO ARGENTINO EMPERRA NO BRASIL

Talvez você não conheça um caso que vem deixando muita gente revoltada. Uma cineasta e ativista argentina com quem estou colaborando para um documentário sobre machismo na América do Sul me enviou um email ontem, contando o caso e pedindo a nossa ajuda.

Em 2009, a atriz argentina Thelma Fardín, na época com 16 anos (foto ao lado), estava na Nicarágua filmando a novela Patito Feo quando foi estuprada por um membro do elenco, Juan Darthes, que tinha 45 anos. Ela ficou arrasada, mas não o denunciou. Só nove anos depois, graças à força do movimento #MeToo e da acusação de outra atriz, Calu Rivero, contra Darthes, é que Thelma criou coragem pra falar. 

Em 2018, Thelma gravou um vídeo contando o horror que passou num quarto de hotel na Nicarágua. Ela suplicou, disse pra Darthes parar, disse que não queria, lembrou que os filhos dele tinham a idade dela, mas nada adiantou. Ele pôs a mão dela no seu pênis ereto e disse "Olha como você me faz ficar" ("mirá como me pones"). Essa fala clichê virou um grito de protesto muito bacana e inteligente: "Olha como a gente fica" (#Miracomonosponemos).

Tipicamente, Darthes negou as acusações e pôs a culpa na vítima: ela que foi ao quarto dele querendo um beijo, ele que, cavalheiro que é, a pôs pra fora, ele que disse a ela que não, não poderia ter nada com ela porque tem filhos da idade dela, e porque ela estaria namorando com outro. Poucos acreditaram nessa versão. Ele tentou processá-la por danos morais e foi comparado a Harvey Weinstein.

Como o estupro ocorreu na Nicarágua, o julgamento foi iniciado lá. Darthes não compareceu. Pouco depois, aproveitando-se de que nasceu no Brasil, fugiu pra cá para evitar a extradição. Com provas vindas da Argentina, através de cooperação internacional entre três países, o Ministério Público Federal decidiu julgar o caso aqui. No final de novembro teve início o julgamento em SP. 

Após o depoimento da vítima e de muitas testemunhas (através de videoconferências, devido à pandemia), o julgamento já estava quase no fim (faltavam apenas duas audiências) quando, na semana passada, a 5a Turma do TRF-3, atendendo o pedido da defesa de Darthes, decidiu que o julgamento é de competência estadual, não nacional, e anulou o processo. Ou seja, o processo não foi suspenso por irregularidades, mas por "tecnicismos insuportáveis", como afirmou Thelma. A decisão não encerra o processo nem muito menos absolve o acusado, mas leva a um novo julgamento. Tem que começar tudo de novo.

Thelma vai entrar no STF contra a anulação do julgamento. Em protesto em frente ao consulado brasileiro em Buenos Aires, e também no seu instagram, ela discursou: "A mensagem de hoje é a impunidade". A atriz, que pelas circunstâncias hoje é uma importante ativista, lembrou que, se isso está acontecendo com ela -- num caso de enorme repercussão, que envolve colaboração entre três países e muita movimentação feminista para que a denúncia finalmente chegasse à Justiça -- qual é a mensagem que está sendo passada para que outras meninas e mulheres denunciem?

Esta foi a nota divulgada por Thelma e sua advogada:

"No dia 08 de fevereiro tomamos conhecimento de uma resolução do Tribunal Regional Federal de São Paulo que no dia 07 de fevereiro abriu espaço para um recurso apresentado pela defesa de Juan Darthes e ordenou que interrompesse o julgamento que estava ocorrendo na justiça federal desse país para iniciar um novo processo do zero no âmbito do poder judicial do Estado de São Paulo. A decisão foi tomada pelos desembargadores federais Paulo Gustavo Guedes Fontes e Mauricio Yukikazu Kato. O juiz André Custódio Nekatschalow se pronunciou em discordância, a favor da continuidade do processo.

Como vítima, não sou reconhecida como parte do expediente e meus advogados não podem acessar a íntegra da decisão. Tampouco se encontram publicados os fundamentos da sentença, apenas sua resolução. O que sabemos é que esta ordem do Tribunal Regional, além de representar uma violenta mensagem a favor da impunidade e da revitimização, contradiz a jurisprudência da Corte Suprema do Brasil sobre esta matéria. 

A questão da competência federal já havia sido tratada e resolvida pelo juiz Pablo Ali Mazloum em primeira instância sete meses antes de início do juízo. Concretamente, no dia 16 de abril, o juiz rejeitou as propostas da defesa e coincidentemente à critério do Ministério Público declarou como competência federal o julgamento.

Numa decisão com mais de 15 páginas, o juiz fundamentou esta decisão a partir da jurisprudência dos tribunais superiores e da Corte Suprema, que em todos os casos de delitos graves cometidos no exterior por cidadãos brasileiros ordenaram que os expedientes tramitassem na Justiça Federal.

A sentença do Tribunal Regional que decide reabrir esta questão quase um ano depois e quando o julgamento encontra-se em sua etapa final só pode ser vista como uma demonstração de poder e influência de quem se considera intocável. Enquanto isso, a estrada continua. O acusado continua foragido da justiça de Nicarágua, com alertas vermelhos da Interpol e sujeito a um processo penal no Brasil. Confiamos que o Ministério Público do Estado de São Paulo recorra desta escandalosa decisão e o Tribunal Superior de Justiça a reverta. Assim poderemos continuar o processo até escutar, por fim, uma sentença. Exigimos justiça, nada mais. Nada menos".

O mínimo que nós no Brasil podemos fazer é divulgar o que está acontecendo e nos juntarmos à exigência de justiça para Thelma e para todas as vítimas de estupro.

E não nos esqueçamos: enquanto mulheres indignadas protestam, Darthes, acusado de estupro por pelo menos cinco atrizes argentinas (até agora), caminha livremente pelas ruas de São Paulo.