LIQUIDIFICADORES SÃO TÃO PERIGOSOS QUANTO ARMAS DE FOGO

Publico aqui uma crônica de uns meses atrás, quando o sinistro mais poderoso do desgoverno Bolso, Onyx Lorenzoni, disse que liquidificadores são tão perigosos pra crianças quanto armas de fogo. 

Hoje foi a vez de um dirigente de tiro esportivo declarar que skate e kart são modalidades esportivas que causam mais acidentes nas crianças e adolescentes que as praticam que o tiro esportivo. É que o decreto presidencial do fascista, desrespeitando o ECA, diz que menores de idade podem usar armas para tiros esportivos, desde que tenham a autorização de um dos pais. 

Sim, é isso que você leu: crianças e adolescentes poderão ter acesso a armas de fogo. Nos próximos massacres em escolas, lembre-se do decreto (os senhores do crime que governam o país vão lembrar: pedirão para que a maioridade penal seja reduzida se algum atirador menor de idade sobreviver e tiver que ser punido. Desta forma o decreto, além de agradar o lobby das armas, também será usado pra criminalizar menores pobres). 

Pra defender o decreto, Onyx disse ontem que as mulheres preferem ter um revólver na bolsa que a lei Maria da Penha. Esta fala do sinistro, sugerindo que armas de fogo protegem mulheres, contraria todos os estudos sobre o tema, que provam que ter uma arma em casa aumenta as chances de uma mulher ser morta, já que, em casos de violência doméstica, o marido agressor já tem um instrumento prontinho para matá-la. 

Eis a crônica da escritora, mestre em Linguística e ex-aluna de Letras da UFC Barbie Furtado:

Relógio Parado

Ontem mesmo, conversa vai, conversa vem, uma colega trouxe à tona aquele ditado de que mesmo um relógio parado está certo duas vezes ao dia. Literalmente, talvez ela esteja até correta, mas tem algumas imbecilidades que escutamos nessa vida real que somos incapazes de aceitar que passam ter qualquer fundo de verdade.  

Como nação passamos as últimas duas semanas frescando com a afirmação inacreditável de um certo imbecil de que ter uma arma em casa era tão perigoso quanto ter um liquidificador. Afinal, disse ele, claramente resultado de uma complexa rede de sinapses entre seus dois neurônios, em caso de acidente qualquer um dos dois poderia ferir uma criança desavisada, sem as devidas instruções de como utilizar o objeto.  

Realmente. Iguaizinhos.  

Eu tenho orgulho de ter vindo de uma família de professores universitários, acadêmicos, ou pessoas, no geral, cheias de noção e preocupação com segurança e bem estar das crianças. Sempre nos ensinaram que com arma não se brinca. Mas menino é bicho cão. 

Meu avô, dono de sítio, possuía uma espingarda e por muitas vezes lembro-me de tê-la pego e apontado diretamente na direção do meu primo — repito, mesmo tendo sido bem ensinada que com arma não se brinca — que fazia exatamente a mesma coisa com meu irmão. Por sorte e devido ao fato dos adultos terem mais noção que as crianças abestalhadas, ninguém nunca deixou arma carregada em casa e ao nosso alcance ou essa crônica não estaria sendo escrita.  

Quem nunca teve bom senso fui eu (ver parágrafo acima). Acho que ninguém nunca me avisou dos perigos de um liquidificador (porque, claro, devem ter presumido que qualquer ser humano sacaria essa sozinho). Eu devia ter uns doze anos — sim, eu disse DOZE — e estava entediada pra caralho. Fui à cozinha e poderia ter parado em frente à geladeira, onde esperaria aparecer comidas que sabia não existir ali. Mas não. Parei em frente ao liquidificador. Olhei. Pensei. Pensei? “Será que eu consigo segurar a lâmina enquanto ela gira?” Então, coloquei minha mão dentro do aparelho. E liguei.  

Spoiler: não consigo. Foi sangue pra todo lado. Me tremendo toda, puxei a mão, coberta de sangue, sem coragem de ver se eu ainda tinha todos os dedos e fui correndo para a minha mãe. “MÃÃÃÃEEEEEEE”! Apavorada, ficando branca, com pulo, ela indagou: “Menina pelo amor de deus, que foi que aconteceu?” Eu, chorosa. “Eu... botei... a mão... no... liquidificador....” Soluço. “E ligueeeeeiiiiiiii”.

O olhar de completo choque que ela me deu foi indescritível. Os gritos também. Aos doze anos, eu deveria saber que uma doidice dessas não se faz, mas, acho demorei um pouquinho para aprender e essa lição teve que ser na marra. 

Porque é isso que crianças fazem. Desobedecem. Curiam. Mexem. Não escutam. Descobrem o mundo de sua própria forma, muitas vezes alheias aos perigos que a vida lhes traz. Talvez devido a sua inocência ou ingenuidade, talvez devido à falta de informação ou simplesmente ao não desenvolvimento completo do lobo frontal. Quem sabe o que se passa na cabeça dessas criaturinhas teimosas.  

Nesse caso, no entanto, minha colega que me desculpe. Esse relógio está errado, mesmo naquelas duas vezes. Às 12h, marca 11h55min. Está sempre atrasado. Afinal, na pior das hipóteses, das tragédias, no acidente mais sangrento, melhor quatro dedos do que sete palmos.