segunda-feira, 6 de abril de 2009

QUANDO A NARRAÇÃO CONDENATÓRIA NÃO SAI DE FÉRIAS

Cena de The Girl Next Door. Adams se baseia na mesma história real.

Faz um tempinho (foi nas férias, em dezembro; nem me lembro mais que tive férias!), li um romance que peguei da biblioteca pública porque meus queridos Cavaca e a Tina tinham falado que era a literatura mais chocante que eles já leram. Eu nunca nem havia ouvido falar de Quando os Adams Saíram de Férias, do americano Mendal W. Johnson. É um livro de 1974 baseado no terrível caso de Sylvia Likens, uma menina de 16 anos que, em 1965, foi torturada até à morte por uma mulher desequilibrada (que deveria cuidar dela), os filhos dessa louca e outros jovens da vizinhança. Essa história virou um filme (que ainda não vi) com a Ellen Page, Um Crime Americano, e inspirou outro, também de 2007, The Girl Next Door (que não foi distribuído no Brasil. Cuidado, porque o patético Um Show de Vizinha tem o mesmo título em inglês).
Quando os Adams... é bem diferente porque não há adultos. A vítima da vez é Barbara, uma babá de 19 anos, que vira uma experiência macabra na mão de cinco sádicos jovens de 10 a 17 anos. O livro é perturbador não apenas pela trama sórdida e pelo contexto (reza a lenda que o autor, na vida real, foi o personagem Bobby, um dos algozes da babá), mas por certas escolhas narrativas. Em vários momentos, Adams adota um tom de “Viram? Crianças são ruins também! Merecem ser punidas”.
O livro não tem a inteligência de um clássico como Senhor das Moscas, de William Golding. Aquele em que um bando de educados meninos ingleses precisam sobreviver numa ilha deserta, e rapidamente se transformam em selvagens. Eu me admiro como Golding se esquivou do tema da violência sexual (espertamente, a meu ver), fazendo com que todos os sobreviventes do acidente fossem meninos. Ninguém do sexo feminino, um problema a menos. Se bem que o personagem Piggy é bastante afeminado, e há um quê de violência sexual não escrito na história. Quer dizer, não que ele seja afeminado - é só que a narração lhe confere características tidas como femininas, como gordura, passividade, falta de competitividade, sensibilidade. Sempre penso no personagem do Ned Beatty em Amargo Pesadelo (Deliverance; não li o livro), que é igualmente gordinho e é quem leva a pior. Enquanto Ned é estuprado (a cena, tenebrosa, sem o menor apelo sexual, que é como é um estupro, pode ser vista aqui), os caipiras ordenam que ele “grite como um porco”. Neste que é o pior estupro de um homem já visto nas telas, será que o porco/piggy é coincidência ou uma referência indireta a Senhor das Moscas?
Mas, voltando a Quando os Adams: a narração, em terceira pessoa onipresente, adjetiviza e comenta a trama. E, mesmo que ela conte o que se passa dentro da cabeça de cada personagem, há umas palavras aqui e ali que parecem se intrometer. Por exemplo (tradução de Carmem Ballot na edição brasileira): “Comparado a outros garotos de treze anos, Paul era já muito estragado. Aos cinco anos ele já espionara sua irmã mais velha despida; aos oito, descobrira as revistas de seu pai; aos dez, sua imaginação já galopava tão longe que alcançara todos os limites que o mundo podia lhe oferecer. Aos doze, ele compreendeu que estava cercado por todos os lados e que seus mais lindos sonhos jamais se realizariam por causa das 'pessoas'”.
Ok, o adjetiv
o lindos na frase “seus mais lindos sonhos” é ironia. A esta altura do campeonato, sabemos que Paul com 13 anos já é um sádico atroz com ambições de se tornar um serial killer. Portanto, de lindos seus sonhos não têm nada. Mas pode ser também um adjetivo pra definir como ele vê os desejos de sua imaginação psicopata. De qualquer forma, o que me chama a atenção nessa passagem é a palavra estragado. Gostaria de saber o vocábulo usado no original - não deve ser spoiled, que tá mais pra mimado. Rotten, podre? Não, forte demais. Mas estragado também é muito forte. Implica um juízo de valor: estragado por já estar sexualmente desperto? E essa não parece ser a opinião de Paul a seu respeito. Ele não condena os desejos que tem. Pelo contrário, se orgulha deles. Logo, é a opinião do narrador. E não apenas a respeito de Paul, mas das crianças em geral.
De outra personagem, Dianne, irmã de Paul, o narrador diz que ela havia se informado sobre sexo “num manual para o casamento que seus pais moderninhos, para não dizermos permissivos, tinham lhe atirado à cara logo depois que ela ficou menstruada”. O “atirado à cara” ilustra bem como os pais são ausentes, e o moderninhos novamente é pejorativo, mas de onde veio o “para não dizermos permissivos”? Quem está dizendo isso? Não parece ser o pensamento de Dianne. Novamente, tem pinta da voz do narrador (e olha o tom moralista: Paul e Dianne viram monstros porque seus pais são permissivos?).
Compare com este trecho sobre John, um rapaz de 17 anos. Depois que John estupra a babá pela primeira vez, o narrador descreve o que se passa na cabeça do personagem: “Ele ia fazer de novo, é lógico, mas melhor, se possível - pelo menos, melhor para ele. Nenhum outro pensamento - nenhuma consideração quanto às ações e reações de Barbara, seus problemas ou sentimentos - chegou a lhe passar pela cabeça. Se lhe houvessem perguntado sobre ela, teria dito - como um homem - que não ligava m**** nenhuma!”. Nesta passagem não há intromissão alguma do narrador, talvez tirando o “como um homem”. Tudo é o pensamento de John. Nada de estragado ou para não dizermos permissivos.
O maior problema, o que faz Adams se tornar um livro francamente misógino, está em quando o narrador se coloca na mente de Barbara, a vítima. Bem antes da primeira vez que Barbara é estuprada, há um instante em que o narrador sugere que ela esteja tentando seduzir seu algoz. O narrador a descreve como “Barbara Sexual”, num dilema entre a mulher recatada (e virgem), e a desejada pelos homens. O livro implica que, se ela é desejada pelos homens, é por causa de seu comportamento, não o dos homens. Uma frase como esta é tremendamente machista: “Ela se moveu para a frente e para trás diversas vezes, de forma a realçar seus seios não muito grandes (infelizmente)”. Infelizmente pra quem, cara pálida? Pra ela, pro rapaz que ela (cof) quer seduzir, ou pro próprio autor? Ainda falarei mais sobre isso.

26 comentários:

  1. Gostei do seu texto. Tb ja li o senhor das moscas e gostei muito!
    Ah proposito tem um livro chamado "Uma criança chamada coisa" que retrata violencia com uma criança praticada pelos proprios pais.

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  2. Credo, Lola, que livrinho pesado... >.<
    E, sim, o tom do cara pareceu bem sexissista neste último trecho que você colocou...
    É algum caráter pedagógico e sádico? 'Tome cuidado, suas vadiazinhas, olha só o que pode acontecer...'
    Fica difícil até emitir juízo de valor sem ler o livro...
    {se bem que eu não quero ler nada disso...}

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  3. eu também não tenho muita vontade. acho que eu não suportaria ler algo do tipo. sou bem fresco mesmo, hihi. quando tu falou do rapaz gordinho eu lembrei do lawrence (acho que é isso) do full metal jacket.

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  4. Ui. Li quando tinha uns 13 e morri de medo, mais que dos livros de terror que eu preferia. Sem dúvida é mal escrito e moralista. Mas acho até que nem foi reeditado, portanto está destinado a ser esquecido. Ufa.

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  5. Oi Lola, procurei por esse livro no site da saraiva e não encontrei, onde você comprou?

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  6. Asn, não conheço esse livro. Parece interessante.


    Milla, é pesado mesmo. Eu acho que o caráter é moralista. Mas não moralista contra a babá (porque ela não fez nada!), e sim, talvez, contra a “educação permissiva” dos pais. Se bem que os pais nem aparecem...

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  7. Filipe, eu nem pensei no Lawrence, porque não há violência sexual contra ele. Vc consegue ver uns paralelos?


    Tina, acho que virou meio que um livro cult. É difícil parar de ler.

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  8. Kielma, eu peguei na biblioteca pública. Mas tem em sebos tb.


    Samantha, acho que vc está falando de I Spit on Your Grave (Cuspo na sua Cova), que é um exemplo típico dos sexploitation movies dos anos 70/80. Escrevi um tiquinho sobre ele aqui (e ainda tenho que escrever mais). Nesse tipo de filme há dois momentos que provocam horror e, ao mesmo tempo, alívio - quando a vítima é estuprada, espancada, etc, e quando ela mata os algozes. Em Quando os Adams Saíram de Férias não tem a segunda parte!

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  9. Kielma, procura no Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br). Tem exemplares a partir de R$ 4.

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  10. E já que sugerimos títulos com esse assunto, fica aqui a minha: "FILHOS SELVAGENS - Reflexões sobre crianças violentas", do Jonathan Kellerman, que é, além de autor de ficção, psicólogo infantil. É um soco na boca do estômago - porque ele diz o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer.

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  11. Li o livro quando era adolescente e a história deixou-me deprimida.
    Nenhuma das personagens, apesar de serem todos (inclusive a vítima) adolescentes ou crianças, é inocente ou é poupado pelo autor. É uma visão cruel da infância, da juventude...
    A personagem mais cruel, na minha opinião, é a irmã de Paul, que no sadismo e na crueldade supera até mesmo o irmão.
    Talvez você esteja certa: A história é misógina.

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  12. Lolinha, faz muitos anos que li "Quando os Adams..."...
    Achei chocante quando li a primeira vez. Reli, e a segunda leitura foi pior.
    Impressionante como alguns livros dão um amargo na boca...
    beijos

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  13. Oi, Lola,
    Não consegui ler todo o seu texto de tão forte que achei o livro... não que eu o tenha lido, mas pela primeira parte que li da sua resenha sei que não tenho coragem de ler o restante (as citações e a parte final). E a cena do filme, que horror! achei nojenta, asquerosa, tenebrosa como vc bem disse, e olha que fechei os olhos em algumas partes. A que ponto chega o ser humano, tão bárbaro e cruel. Não vi o filme, então não posso falar muito, mas achei a cena chocante. Não sei se teria coragem tb de assisti-lo, mas li que ele foi passado na Sessão da Tarde sem a cena do estupro.

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  14. Ei, Lola!
    Um comentariozinho fora do assunto:
    Leia só o texto abaixo, de um blog que também acompanho. É bem divertido e acho que você vai gostar da temática, hehe...
    http://influxo.org/ingenuidade/anatomicamente-ofensivo/
    Bye!

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  15. Ah, não li O Senhor das Moscas, só vi o filme (primeiro na universidade, depois por "conta própria"). Gostei muito , mas fiquei agora com vontade de ler o livro.

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  16. só pelo fato dele ser meio gordinho, mesmo. de fato, não houve violência sexual (não que eu lembre) mas aquela cena em que espancam ele me marcou demais.

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  17. Ola lolinha como vai? Bom, o livro mal escrito não é. Sem dúvida é uma história muito particular. Tem um ponto de vista curioso sobre o comportamento das crianças, nada daquilo é o que estamos habituados.
    Eu li duas vezes, e senti tanto pela Barbara, eu nunca vou esquecê-la, e um trecho que eu acho interessante também é quando a garotinha disse: Nós encontramos outras crianças por lá, e mesmo sem elas nos terem feito alguma coisa eu senti ódio, uma vontade de feri-las.
    Sera que essas crianças já nasceram assim?

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  18. Oi Lola, não conhecia esse livro mas gostei da sua comparação com Lord of the flies. Tive que ler pro Proficiency mas nunca o havia tido analisado dessa forma.

    Acho q o filme em que a moça e violentada por 3 rapazes é o The accused, com a Jodie Foster.

    Há um tempo atrás vi um documentário sobre uma família q tinha uma práticas sexuais não muito "normais" mas não consigo me lembrar o nome...

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  19. Voce pode entrar em contato com o Ambrosia.com.br ? Nao consegui achar um modo de entrar em contato com vc. La tem uma pagina de contato.

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  20. Oi Lola tudo bem?

    Nada a ver com o post... mas dá uma olhada nesse vídeo aqui:

    http://www.unichem.com.br/videos.php

    fala sobre o funcionamento do capitalismo, baseado no consumo, mesmo sem citar uma única vez a palavra capitalismo.

    Acho que merece um post :)

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  21. Ambrosia, se vc quer entrar em contato comigo, meu email é
    lolaescreva@gmail.com
    Não encontrei a parte de "contato" no Ambrosia.

    Gente, desculpa não poder responder! Sem tempo nenhum...

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  22. Nossa, Lola, parece um livro horrível. Você tem razão, esse tipo de narrador é "intrometido" mesmo, deixa bem clara a opinião, não deixa os personagens falarem por si, e, nesse caso, é um intrometido moralista. Sabe, eu tava notando ontem que isso é bem americano mesmo, botar uma certa culpa na vítima. Eu gosto de ver aquelas séries policiais para esvaziar a cabeça, daí que o SBT passa de madrugada e eu fico vendo e trabalhando, já que eu não presto tanta atenção mesmo. Só que tem uma que é com promotores, horrível, republicana até a medula, daquelas que eles só ficam contentes mandam pra prisão perpétua. E eu me dei conta que SEMPRE, ou a vítima ou o criminoso tem algo sexual considerado "podre" para ser revelado. Ou eles ganham a causa mostrando isso ou a vítima poderia ter evitado o que aconteceu se não fizesse a tal coisa. Como um cara que foi assaltado e esfaqueado depois de sair de um bar gay ou a moça que já tinha feito sexo violento e acaba sendo estuprada e morta. Como se criminosos só atacassem se a pessoa der motivo, eu diria para ninguém ter carro ou coisas caras, então, tá dando chance pro azar...

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  23. Nojento e clichê esse fetiche de que toda mulher no fundo quer ser violentada e que uso de roupas curtas ou "provocar" um sujeiro seria motivo para que ele cometa um estupro. Escritores e formadores de opinião deveriam ser mais cuidadosos pq a maneira como o texto é escrito pode acabar sendo interpretado como um incentivo, apologia mesmo, a esse tipo de crime quando cai nas mãos de um desajustado qualquer.

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  24. Ellen Page, Um Crime Americano,
    Vi o filme super polêmico,
    mas vou acabar lendo, já li outros então,
    sem problemas...
    embora como analise comportamental principalmente do homem!!!
    ate mais

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  25. onde tem o livro pra download?

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  26. Taí um livro que eu não conseguiria ler... Não gosto mesmo de ver/ler violência contra mulheres. Tem que ser com final feliz ou cenas rápidas pra que eu aguente...

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