Podem me chamar de doente, mas quando estou no dentista, me lembro de "Maratona da Morte"; no ginecologista, de "Gêmeos – Mórbida Semelhança"; no oftalmologista, aí depende: se a consulta relaciona-se a procedimentos cirúrgicos, vou de "O Cão Andaluz", se é mais superficial, tipo lente de contato, fico com "Laranja Mecânica". Se você viu esses filmes, não preciso nem especificar a cena, que você sabe exatamente do que estou falando. Se não viu, veja, mas pule essas partes que causam traumas pro resto da vida.
É claro que esta não é a única memória criada por "Laranja Mecânica". Há outras, e todas são repulsivas. E, no entanto, este filme que agora completa trinta anos de existência está decididamente entre os melhores já feitos. Pelo menos na opinião desta sua humilde narradora. E na de outras pessoas mais cotadas.
Kubrick, o gênio, fez "Laranja" em 71, logo após consagrar-se pela terceira ou quarta vez com "2001, Uma Odisséia no Espaço" (antes, a aclamação havia vindo com "Glória Feita de Sangue", "Spartacus" e "Doutor Fantástico", só pra ficar nos unânimes). "Laranja" era pra ser um filminho de baixo orçamento, um descanso do diretor entre dois épicos, "2001" e "Barry Lyndon". Mas, para um perfeccionista como Kubrick, não existiam diminutivos. Ele pegou a obra-prima de Anthony Burgess, escreveu o roteiro sozinho – foi seu primeiro script solo –, escolheu o elenco, produziu e dirigiu "Laranja". No final, só podia mesmo assiná-lo como "um filme de Stanley Kubrick".
Um detalhe sobre Burgess, hoje considerado um dos grandes escritores ingleses modernos, se não o maior. Em 59, ele foi diagnosticado com um tumor no cérebro. Os médicos lhe davam no máximo mais um ano de vida. Para deixar algo que sustentasse a família, Burgess redigiu, em curtíssimo espaço de tempo, uns três romances, incluindo "Laranja Mecânica". Em seguida, sobreviveu por mais um quarto de século. Faz a gente pensar que erros médicos podem não ser tão ruins assim, né?"Laranja" não põe muita fé na humanidade. Começa com Alex, um delinqüente juvenil (no filme, ele tem 20 e poucos anos; no livro, 15), narrando suas aventuras de duas noites. Num futuro próximo, que talvez hoje já soe como passado, as ruas à noite são dominadas por grupos de garotos que falam uma língua estranha e aterrorizam qualquer coisa que se mexa. Obviamente, nenhuma relação com o nosso presente. Alex toma leite com drogas, pisoteia um mendigo, briga com uma gangue rival, rouba um carro, brinca de "rei da estrada", causando inúmeros acidentes automobilísticos, veste máscaras de horror e invade um lar, onde destrói tudo, invalida o marido e estupra a mulher, enquanto canta "Singing in the Rain". Já em casa, lamentando a jornada de "pouca energia gasta", se masturba ouvindo Beethoven e tem visões apocalípticas. No dia seguinte, Alex falta à escola, é visitado por seu agente de condicional, vai a uma loja de música (ele é apaixonado pelo velho "Ludwig Van"), e seduz duas jovens. No livro, elas são meninas de 10 anos; Kubrick, aparentemente, não quis jogar mais lenha na fogueira de algo que já seria suficientemente polêmico sem pedofilia no meio. Prefere mostrar 40 segundos de um ménage-a-trois explícito, só que acelerado, ao som de "William Tell" (o filme foi censurado no Brasil durante anos, e só liberado com a inclusão de ridículas bolinhas pretas que ficavam pulando na tela para cobrir as vergonhas dos personagens nus). A seguir, Alex ensina uma lição a seus marginais amotinados, se droga mais um pouco, e entra numa casa onde mora uma senhora com suas dezenas de gatos (e nós, humanistas que somos, nos preocupamos com o que Alex vai fazer com os felinos). Num duelo em que ele segura um falo gigante contra a mulher e seu busto de Beethoven, Alex a mata. Sua gangue o trái e ele vai preso.
Ahn... Este é apenas o terço inicial da obra.
Tudo isso já seria bastante ultrajante por si só. Ser contado em primeira pessoa por Alex, que se declara "seu humilde narrador" e nos chama de "seus únicos amigos", também não ajuda. Porém, pra tornar esta fábula ainda mais inesquecível, Burgess inventou um vocabulário especial composto por palavras russas, expressões ciganas e grunhidos em inglês. As palavras que mais aparecem? Não contei, mas devem ser "horrorshow", que quer dizer "ótimo", e "krovvy", que significa "sangue". O verbo "snuff", popular hoje como sinônimo de filmes pornôs que matam suas atrizes de verdade, também está lá, mas quer dizer somente "morrer".
Se você está revoltado com a saga de ultra-violência cometida por Alex, vai se indignar ainda mais ao saber que isso é fichinha perto dos abusos que Alex sofre por parte do Estado. Não é que a gente fica com pena do miserável? Nosso criminoso passa por uma lavagem cerebral que o transforma em uma laranja mecânica, algo que parece orgânico mas que funciona mecanicamente. Qualquer ato de violência lhe provoca mal-estar. Este é o ponto central da história, proferido pelo chapelão da prisão: "quando um homem deixa de poder escolher, ele deixa de ser um homem". Alex não tem mais como optar – ele só pode ser bom, mas não por livre arbítrio. Ao sair da cadeia, ele é perseguido por suas vítimas, tenta o suicídio (numa cena memorável, Alex se joga de uma janela. Kubrick faz com que a gente adote seu ponto de vista ao arremessar uma câmera ligada de um último andar), e vira garoto-propaganda de um governo totalitário. No grand-finale, ele se imagina transando com uma moça, rodeado por um público vestido em estilo vitoriano, que o aplaude. E fala pra gente: "I was cured all right" ("eu estava mesmo curado").
"Laranja Mecânica" constitui a mais fiel adaptação cinematográfica que conheço. Quase todos os diálogos do livro, na sua linguagem (in)decifrável, estão lá. Desde a essência da obra, com seu clima opressivo, até o sarcasmo do protagonista, Kubrick não deixou escapar um detalhe sequer. Por que, então, o filme é tão melhor que o livro? (não que o livro não seja um estouro, mas o filme é uma obra de arte única). Acho que é por causa das minúcias. Por exemplo, a idéia doentia de cantarolar "Cantando na Chuva" durante o estupro não aparece no livro. Esta música aparentemente inocente inclui trechos como "estou pronto para o amor" e "tenho um sorriso no meu rosto para toda a raça humana". Você nunca mais vai encarar Gene Kelly do mesmo jeito.
E nem Beethoven, nem o cinema, nem a bíblia, nem a ideologia pró-pena de morte. E, evidentemente, nem o oftalmologista (a propósito, Malcolm McDowell, que interpretou Alex brilhantemente, teve sua córnea machucada durante as filmagens). "Laranja Mecânica" muda nossa percepção de todas as coisas. É por isso que é um grande, enorme filme que, mesmo depois de 30 anos, mantém toda sua potência intacta. Você pode ver "Laranja" e entender porque, em outras épocas, o cinema ainda era considerado arte, a sétima. Ou pode ficar com os abacaxis de hoje. Ao contrário de Alex, você tem livre arbítrio. Ou não tem?
Kubrick, o gênio, fez "Laranja" em 71, logo após consagrar-se pela terceira ou quarta vez com "2001, Uma Odisséia no Espaço" (antes, a aclamação havia vindo com "Glória Feita de Sangue", "Spartacus" e "Doutor Fantástico", só pra ficar nos unânimes). "Laranja" era pra ser um filminho de baixo orçamento, um descanso do diretor entre dois épicos, "2001" e "Barry Lyndon". Mas, para um perfeccionista como Kubrick, não existiam diminutivos. Ele pegou a obra-prima de Anthony Burgess, escreveu o roteiro sozinho – foi seu primeiro script solo –, escolheu o elenco, produziu e dirigiu "Laranja". No final, só podia mesmo assiná-lo como "um filme de Stanley Kubrick".
Um detalhe sobre Burgess, hoje considerado um dos grandes escritores ingleses modernos, se não o maior. Em 59, ele foi diagnosticado com um tumor no cérebro. Os médicos lhe davam no máximo mais um ano de vida. Para deixar algo que sustentasse a família, Burgess redigiu, em curtíssimo espaço de tempo, uns três romances, incluindo "Laranja Mecânica". Em seguida, sobreviveu por mais um quarto de século. Faz a gente pensar que erros médicos podem não ser tão ruins assim, né?"Laranja" não põe muita fé na humanidade. Começa com Alex, um delinqüente juvenil (no filme, ele tem 20 e poucos anos; no livro, 15), narrando suas aventuras de duas noites. Num futuro próximo, que talvez hoje já soe como passado, as ruas à noite são dominadas por grupos de garotos que falam uma língua estranha e aterrorizam qualquer coisa que se mexa. Obviamente, nenhuma relação com o nosso presente. Alex toma leite com drogas, pisoteia um mendigo, briga com uma gangue rival, rouba um carro, brinca de "rei da estrada", causando inúmeros acidentes automobilísticos, veste máscaras de horror e invade um lar, onde destrói tudo, invalida o marido e estupra a mulher, enquanto canta "Singing in the Rain". Já em casa, lamentando a jornada de "pouca energia gasta", se masturba ouvindo Beethoven e tem visões apocalípticas. No dia seguinte, Alex falta à escola, é visitado por seu agente de condicional, vai a uma loja de música (ele é apaixonado pelo velho "Ludwig Van"), e seduz duas jovens. No livro, elas são meninas de 10 anos; Kubrick, aparentemente, não quis jogar mais lenha na fogueira de algo que já seria suficientemente polêmico sem pedofilia no meio. Prefere mostrar 40 segundos de um ménage-a-trois explícito, só que acelerado, ao som de "William Tell" (o filme foi censurado no Brasil durante anos, e só liberado com a inclusão de ridículas bolinhas pretas que ficavam pulando na tela para cobrir as vergonhas dos personagens nus). A seguir, Alex ensina uma lição a seus marginais amotinados, se droga mais um pouco, e entra numa casa onde mora uma senhora com suas dezenas de gatos (e nós, humanistas que somos, nos preocupamos com o que Alex vai fazer com os felinos). Num duelo em que ele segura um falo gigante contra a mulher e seu busto de Beethoven, Alex a mata. Sua gangue o trái e ele vai preso.
Ahn... Este é apenas o terço inicial da obra.
Tudo isso já seria bastante ultrajante por si só. Ser contado em primeira pessoa por Alex, que se declara "seu humilde narrador" e nos chama de "seus únicos amigos", também não ajuda. Porém, pra tornar esta fábula ainda mais inesquecível, Burgess inventou um vocabulário especial composto por palavras russas, expressões ciganas e grunhidos em inglês. As palavras que mais aparecem? Não contei, mas devem ser "horrorshow", que quer dizer "ótimo", e "krovvy", que significa "sangue". O verbo "snuff", popular hoje como sinônimo de filmes pornôs que matam suas atrizes de verdade, também está lá, mas quer dizer somente "morrer".
Se você está revoltado com a saga de ultra-violência cometida por Alex, vai se indignar ainda mais ao saber que isso é fichinha perto dos abusos que Alex sofre por parte do Estado. Não é que a gente fica com pena do miserável? Nosso criminoso passa por uma lavagem cerebral que o transforma em uma laranja mecânica, algo que parece orgânico mas que funciona mecanicamente. Qualquer ato de violência lhe provoca mal-estar. Este é o ponto central da história, proferido pelo chapelão da prisão: "quando um homem deixa de poder escolher, ele deixa de ser um homem". Alex não tem mais como optar – ele só pode ser bom, mas não por livre arbítrio. Ao sair da cadeia, ele é perseguido por suas vítimas, tenta o suicídio (numa cena memorável, Alex se joga de uma janela. Kubrick faz com que a gente adote seu ponto de vista ao arremessar uma câmera ligada de um último andar), e vira garoto-propaganda de um governo totalitário. No grand-finale, ele se imagina transando com uma moça, rodeado por um público vestido em estilo vitoriano, que o aplaude. E fala pra gente: "I was cured all right" ("eu estava mesmo curado").
"Laranja Mecânica" constitui a mais fiel adaptação cinematográfica que conheço. Quase todos os diálogos do livro, na sua linguagem (in)decifrável, estão lá. Desde a essência da obra, com seu clima opressivo, até o sarcasmo do protagonista, Kubrick não deixou escapar um detalhe sequer. Por que, então, o filme é tão melhor que o livro? (não que o livro não seja um estouro, mas o filme é uma obra de arte única). Acho que é por causa das minúcias. Por exemplo, a idéia doentia de cantarolar "Cantando na Chuva" durante o estupro não aparece no livro. Esta música aparentemente inocente inclui trechos como "estou pronto para o amor" e "tenho um sorriso no meu rosto para toda a raça humana". Você nunca mais vai encarar Gene Kelly do mesmo jeito.
E nem Beethoven, nem o cinema, nem a bíblia, nem a ideologia pró-pena de morte. E, evidentemente, nem o oftalmologista (a propósito, Malcolm McDowell, que interpretou Alex brilhantemente, teve sua córnea machucada durante as filmagens). "Laranja Mecânica" muda nossa percepção de todas as coisas. É por isso que é um grande, enorme filme que, mesmo depois de 30 anos, mantém toda sua potência intacta. Você pode ver "Laranja" e entender porque, em outras épocas, o cinema ainda era considerado arte, a sétima. Ou pode ficar com os abacaxis de hoje. Ao contrário de Alex, você tem livre arbítrio. Ou não tem?
Amei a critica.
ResponderExcluirAcho que preciso ver esse filme de novo, eu não soube vê-lo da primeira vez.
ahahaha... mas o acho uma excelente produção. E com ótimas idéias.
Sim, estou lendo suas criticas. :D
:***
haha
ResponderExcluireu adorei o livro, mas nao teria coragem de ver o filme. uma coisa é vc ler sobre isso, outra é vc ver. é um filme pesado... e meu estômago é meio... frágil
HAHA
Concordo com você: uma obra de arte!
ResponderExcluirAinda não li o livro, mas após ler seu interessante comentário me animei e, enfim, comprei um exemplar na estante virtual! Já estava mais que na hora (risos).
Quando penso no "cinema de hoje" (e é claro, não generalizando), sempre me faço a mesma pergunta que você fez no final. E é por isso que penso que não seja possível comparar o "Laranja" com o "Tropa 2", talvez por uma questão de arbítrio mesmo...
Abraços e bons ventos de escrita. Belo blog!
Eu fico com os abacaxis!
ResponderExcluirThank you very much,
F.
Sempre gostei mais das laranjas do que dos abacaxis.
ResponderExcluir=D
Queria estar em Cannes para ver a cópia restaurada -agora já são 40 anos!
Abs.
Rodrigo
Nunca tive vontade de ver esse filme e pra falar a verdade não acho que eu vá assistir, mas é interesse sua observação de como o Estado também é responsável por males contra todos os cidadãos, dos mais "certinhos" aos nem tão "bons".
ResponderExcluirAdoro teu blog, Lola! :3
Na verdade, não é tão fiel ao livro assim. Na versão original do livro, tem um último capítulo em que Alex "amadurece" e, de certa forma, se arrepende do que fez. Mas esse último capítulo foi retirado da edição americana (!), que é a edição em que Kubrick se baseou. E é também por esse motivo que eu prefiro muito mais o filme do que o livro.
ResponderExcluirEsse filme é fantástico... já vi várias vezes, e não tem uma vez em que não me sinta arrepiado!
ResponderExcluirAcabei de ler sua crítica velhinha... Eu tb gosto desse filme. Bem distópico, né? Um simbolismo louco e tals. Até hoje faço uma certa referência a ele quando bebo leite... =P
ResponderExcluirOs estupros são horríveis... É impressionante a visão que Alex tem do estupro, algo como "o velho entra e sai".
Tem que ser meio maluco pra ter pena de um monstro como o Alex
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