...mas ainda não avisaram certas pessoas
Ontem foi um domingo deprimente. Assim que liguei o computador, a primeira coisa que vi foi a hashtag #ChupaNordeste no Twitter. Parece que foi uma brincadeira com a seca terrível e insistente, a pior dos últimos trinta anos, que anda fulminando a região. Tweets preconceituosos contra o Nordeste e nordestinos são comuns. Toda semana tem um. Mas rir da seca é dose.
Embora esse desastre climático não esteja afetando tanto as pessoas quanto em outras épocas (graças ao Bolsa Família que a mesma galera do #ChupaNordeste condena), ela faz rios e lagos desaparecerem, muda a vegetação, e causa a morte de milhares de animais. Em dezembro fui de carro de Fortaleza pra região oeste do Estado, e, em janeiro, pra região leste, chegando até o Rio Grande do Norte. Nunca vi tanto cavalo, jumento, bode, boi atropelado (pra não falar dos cães e gatos). Acho que eles, famintos, tentam atravessar a estrada pra conseguir grama e água do outro lado, e são surpreendidos por automóveis.
Mas não é só isso. Em alguns trechos da estrada mal dá pra respirar, porque o cheiro de carniça é forte, um cemitério a céu aberto. E os animais que teimam em sobreviver estão magérrimos, com todas as costelas aparecendo. Um cenário desses não tem graça nenhuma.
A outra tag que vi no Twitter ontem foi sobre a tragédia na boate em Santa Maria, RS, o segundo maior incêndio na história do país em número de vítimas (só perdendo para o incêndio num circo em Niterói, em 1961, quando morreram 500 pessoas). Muita, muita dor. Boa parte das vítimas era estudante da UFSM.
Conheço várias cidades gaúchas; Santa Maria ainda não é uma delas. Mas, durante os sete anos que dei aula de inglês em Joinville, tive inúmeros alunos engenheiros que haviam se formado na UFSM. E, recentemente, fui convidada para dar uma palestra lá, em março, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Então a tragédia doeu como se eu conhecesse cada uma das 233 pessoas mortas. Me afetou pessoalmente.
Como tanta gente, estou chocada. E exijo, além da adoção de medidas para que esses acidentes criminosos não aconteçam mais, a punição dos culpados. Como pode alguém disparar um sinalizador num lugar fechado? Os seguranças bloquearam a única saída da boate? O extintor de incêndio não funcionou? Onde ficava a saída de emergência? O alvará de funcionamento estava vencido? A luz de emergência não funcionou, gerando ainda mais pânico? Há muitas outras questões, e quero resposta pra todas.
As 650 pessoas que sigo no Twitter (ou seja, minha timeline) foram exemplares. Não houve sensacionalismo nem piadas, só comoção e revolta. Mas elas também informaram, indignadas, que havia muita gente fazendo brincadeira com a tragédia. Como assim? Tão cedo? No mesmo dia? Será que essa gente não compreende a definição do Mark Twain, de que humor é tragédia mais tempo? E que não deu tempo ainda pra se acostumar com a ideia? Claro, a gente pode se perguntar quanto tempo precisa passar pra que seja aceitável tentar fazer rir em cima da morte de jovens por asfixia e queimaduras. Dias? Semanas? Meses? Nunca?

Fora a turma do “foi merecido, os jovens deveriam estar em casa, não em festas” e do castigo divino (que, imagino, devem ser da mesma turma -– e eles não estavam brincando), teve humoristas amadores que criaram frases como “festa em Santa Maria pega fogo”, “gaúchos queimaram rosca em boate”, “gaúcho gosta de churrasco”, “hoje eu vou fritar na balada”, “pena que meus ex não frequentavam a Kiss”, além de coisas relacionadas a 233 tons de cinza, sujeito dizendo que iria se mudar pra Santa Maria porque agora teria vaga numa universidade federal, e os prints que leitorxs me enviaram pra ilustrar este post.

Interessante foi ver a atitude muito séria de humoristas profissionais, divulgando endereço de hemocentro, pedindo doações, soando como os melhores samaritanos. Ué, mas não eram eles que se vangloriavam de ser possível fazer piada com tudo? Não são eles que pregam que não há limite pro humor? Não são eles que insistem que é só uma piada? (aliás, um leitor me mandou ontem esta imagem chamando de estuprador um famoso comediante brasileiro de stand up, mas tudo bem, ninguém deve se ofender, porque é só uma piada). Por que, na tragédia de Santa Maria, esses humoristas que fazem piada com estupro, racismo e holocausto cederam o palco pra amadores? Ou é muito cedo?
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Uma das piadas no Facebook |
Não, não quero que eles se juntem aos humoristas amadores e passem a tuitar “chistes” como “Promoção: Necrofilia liberada a noite inteira”. Eu só queria saber onde está o limite. Se eles fizessem uma piada dessas, quantos de seus milhões de seguidores aplaudiriam? Quantos se ofenderiam? Quantos ficaram frustrados que seus comediantes de estimação não aproveitaram a tragédia pra arrancar algumas risadas?
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Tweet de humorista amador |
Ou será que um incêndio numa boate é mais trágico que o estupro de mulheres? E se fosse um incêndio numa boate gay, haveria piadas? Conhecendo os alvos habituais desses humoristas, minha aposta é que sim.
Mas é só uma conjectura. De certeza mesmo, só o repúdio de quem acha que com certas coisas não se brinca a quem não tem a menor empatia pelo sofrimento alheio. E a solidariedade a todas as vítimas, de todas as tragédias, inclusive as mais cotidianas. Sempre.
Charge infeliz do cartunista Chico Caruso, criticando Dilma.