Domingo, no Twitter, uma leitora me enviou alguns tuítes sobre a objetificação das mulheres nas comunidades do Rio.
Pedi para que ela desenvolvesse suas ideias num texto. Deixo aqui com vocês o guest post de Fatima Lima, que é bastante polêmico mas faz pensar.
Divido com vocês, com humildade e sem intenção de menosprezar, julgar ou diminuir ninguém, e na esperança de que o debate possa contribuir para uma vida menos dura para todas as mulheres, algumas observações que fiz sobre a questão do feminismo no que diz respeito à violência contra a mulher e a cultura de submissão, sobretudo nas periferias e comunidades onde o Estado não chega.
O estupro é proibido. Porém, fora o estupro, a lei nas comunidades repete o que diz o ditado: briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. As relações de poder são absolutamente desfavoráveis às mulheres, e há vários fatores envolvidos nisso.
A falta de estrutura financeira e familiar destrói o ânimo de lutar. São preocupações de ordem de sobrevivência: pagar aluguel, comer, vestir-se, preocupações básicas que preenchem a cabeça das mulheres desde muito cedo lhes subtraindo a esperança.
Na prática, o Estado não proporciona o acesso à educação e aos direitos básicos, que são garantias constitucionais. Então, de cara, temos um número muito alto de mulheres desinformadas de seus direitos. Outra parcela conhece seus direitos mas, ao lutar por eles, é ignorada e negligenciada pelas autoridades e às vezes, não poucas, pela família e vizinhos também.
As autoridades parecem não se compadecer quando a mulher está em grau crítico de vulnerabilidade. Ou seja, se é "favelada", o discurso dela já perde credibilidade. Se ela também for negra, se expressar com dificuldade, estar "desarrumada", de chinelos, é ignorada. Suas denúncias, quando acontecem, se perdem num mar de: volte pra casa e se entenda com seu marido, ele só estava nervoso, já se arrependeu.
As meninas crescem por aqui ajudando as mães na casa, na rua com trabalhos diversos e cuidando dos irmãos. À escola vão, se der. Quase nunca dá.
A gravidez não tarda, assim como uma vida inteira de submissão e desprezo, em casa e na sociedade.
Poucas famílias têm um pai presente, pai no sentido amplo da palavra, não apenas o que gera ou o que apenas suga o que a família produz, pois outro grande problema que a ausência do Estado traz é a dependência química, pesadelo de muitos lares.
A falta de educação gera uma cultura machista e de culto à violência. Ora, se a violência é cultuada, aceita e incentivada, por que haveríamos de nos preocupar com a violência contra a mulher? O que esperar? Estamos aqui, pobres, também, de argumentos!
Como argumentar se não fui apresentada às opções da vida, ou melhor dizendo, se as opções de uma vida melhor não me foram apresentadas? Ignora-se a perspectiva de uma vida diferente da que ali se apresenta.
Além do mais, ainda que haja uma consciência, como colocar em prática nossos anseios diante de tamanho caos? Não há sonho que resista!
Sou lésbica, de trejeitos masculinos e, ainda por cima, feminista.
Para o senso comum por aqui, assim como por aí, o que me falta é homem. Tem coisas que não mudam, independente do povo ser letrado ou não. Às vezes parece que até pioram.
Estava eu com uma amiga, em sua casa, tarde da noite, em uma varandinha discreta que dá visão pra ladeira, e havia um casal na rua brigando. Minha amiga, antecipando-se ao meu questionamento, logo informou: "Não invente de se meter! É bandido e não se pode falar nada, se falar, apanha você e ela". E continuou: "Elas apanham e depois voltam. Mesmo com a cara toda arrebentada, continua do lado dele".
Eu pensei bem mais tarde, naquela madrugada: mas o que ela poderia fazer? Ir pra onde? Só conhece essas ladeiras! Nunca sai da comunidade e, quando sai, vai pra outra comunidade. Todos que ela se relaciona se relacionam com ele. Aqui ninguém liga, ao contrário, aplaude se quem apanha é mulher de bandido. A escolha foi dela! Ela que se vire. Não quero problema pro meu lado! Se ela estava apanhando, mereceu!
Triste.
Ela levou muito na cara. Puxões de cabelo e depois foi arrastada morro acima! Nenhum barulho na rua, na ladeira.
A ladeira silencia! A ladeira é conivente! Covarde. Mesmo que ela quisesse, jamais poderia denunciar! Assim como eu e minha amiga não pudemos denunciar por ela.
Outro ponto que queria falar: a apologia à objetificação da mulher, expressada nas inúmeras letras dos funks proibidões, é aceita, divulgada e enaltecida pelas próprias mulheres das comunidades e -- aqui eu fico chocada -- nos "Bailes de Favela" da Zona Sul da elite branca carioca.
A primeira vontade que dá e pega-las pelo braço e dizer: mulher, ele está dizendo que vai te comer, te lanchar na madrugada e depois te largar, te xingar e te difamar. Não te amará jamais! Pare de rir e rebolar com essa música agora!
Aí, você reflete e não sabe mais por onde começar. Quem escreveu a letra? Quem pula, canta e dança? Eu já dancei isso? Ela que escolheu essa vida? Ela teve escolha? Existem escolhas?
Como podem elas permitirem tanto desprezo? Qual o papel do Estado? Como elas entoam aquelas letras com tanto orgulho de sua própria humilhação e redução a uma coisa?
Ficam as perguntas. Aqui, o funk seguiu até às quatro. Um verdadeiro Kama Sutra! Só que com desprezo e deboche pelas mulheres. Tesão nenhum!