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quinta-feira, 19 de maio de 2022

CONGELAR ÓVULOS PARA SER MÃE MAIS TARDE

Achei muito interessante esse texto da escritora Giovana Madalosso publicado na Folha no Dia das Mães. Apesar de lutarmos contra a maternidade compulsória (ou seja, a obrigação de ser mãe, que ainda hoje é martelada pela sociedade), existem mulheres que querem ser mães e não podem. Todas devem ser acolhidas pelo feminismo. Fiquem com o artigo da Giovana, que trata de um universo muito distante do meu (que nunca quis ser mãe e que agora, chegando aos 55, continuo sem o menor arrependimento).

A ficha caiu quando fui congelar meus óvulos. Eu estava com 37 anos e tinha acabado de me separar. Já tinha uma filha de dois anos, mas ainda queria engravidar de novo. Como naquele momento eu não tinha a menor perspectiva de encontrar outro parceiro, ainda mais que coincidisse em querer ter um filho, achei uma boa ideia guardar alguns óvulos enquanto eu ainda fosse jovem.
Ao entrar na clínica de reprodução, percebi que protelar a maternidade não seria tão simples. No jardim junto à sala onde aguardava pela minha primeira consulta, havia uma mesa cheia de objetos. Levantei, fui ver o que era. Logo percebi ser um pequeno altar, formado por estatuetas de santos, deuses e divindades de diversas religiões, deixados ali por clientes da clínica, junto a uma vela ou pedaço de papel explicitando o desejo de ser mãe.

Será que a Santa Ciência não podia resolver aquelas demandas? Eu estava em uma das melhores clínicas de reprodução do país, onde só a consulta custava perto de um salário mínimo. Concluí que aquelas mulheres deveriam ser muito mais velhas que eu, que aquele tipo de problema jamais faria cócegas no meu ativo ovário, e caminhei confiante para a minha consulta.
Entrei em uma das muitas salas. Uma jovem médica me atendeu. Enquanto ela abria uma ficha no computador, reparei no calendário da clínica sobre a mesa. Na folha de julho, um casal sorria com quadrigêmeos recém-nascidos no colo. Médicos podem entender de trompas, mas não de marketing, pensei. Onde já se viu anunciar com tanto orgulho uma cena de pesadelo?

Logo a médica se dirigiu a mim. Contei meu histórico, disse que talvez parecesse precipitado congelar os óvulos com a minha idade, mas eu havia me separado e ainda queria ter um segundo filho. A médica disse que eu estava certíssima em procurá-los. Trinta e sete não era cedo para fazer isso.
Talvez fosse até tarde. Em seguida, me explicou que a fertilidade cai drasticamente aos 38, mas claro que essa é uma idade figurativa, que pode variar de uma mulher para outra.

Com um discurso preparado para as leigas, me explicou que cada mulher já nasce com uma caixinha cheia de óvulos. Além desse número de óvulos variar, a liberação deles ao longo da vida também varia. Tem mulheres que, aos 38, ainda têm a caixa cheia. Outras já estão com a caixa vazia.
Pela primeira vez na vida, me senti velha. Senti meu corpo murchar na cadeira, me transmutando em uma imediata uva-passa. Também senti inveja da jovem médica que me contava tudo aquilo com a tranquilidade de quem carrega em óvulos dentro de si quase a população de Niterói —em idade fértil, o número de óvulos de uma mulher gira em torno de 400 mil.

"E essas tantas atrizes de 44, 45 anos que vemos grávidas na mídia?", perguntei. A médica sorriu. A maioria dessas mulheres engravida com óvulos doados. Mesmo quando conseguem pescar um óvulo em pacientes dessa faixa etária, não costumam usar, porque já são de baixíssima qualidade, com maior tendência a se dividir errado, gerando alterações cromossômicas.
O que essas mulheres costumam fazer é escolher, em um vasto cardápio de doadoras, um óvulo que gere um fenótipo parecido com o delas. Ou seja: atriz alta de olhos verdes, por exemplo, pegará um óvulo de doadora alta de olhos verdes. Assim ninguém ficará questionando se aquele filho é mesmo dela.

Congelamento de óvulos
Talvez lembrando que eu tinha me separado, que era não somente uma uva-passa, mas uma uva-passa solitária, a médica também me contou que, além de óvulos, a clínica fornecia espermatozoides, inclusive os melhores do mercado.

Com um sorriso excitado que me fez pensar novamente nas suas gônadas, ela me contou que tinham, por exemplo, os espermatozoides do doador mais qualificado do mundo. Não podia dizer o nome dele, pois no Brasil as doações são anônimas, mas podia me contar que era um norte-americano de QI altíssimo, jogador de basquete, com genes de primeira qualidade, já investigados contra graves doenças genéticas.
E não era só isso. Agora, também tinham controle do destino do espermatozoide escolhido. E então me contou que, durante um bom tempo, os espermatozoides eram vendidos sem "tracking", podiam parar dentro de mulheres que moravam na mesma região ou em um raio pequeno de distância.

"E qual o problema?", perguntei. O problema é ter irmãos biológicos nascendo próximos uns dos outros, interagindo, talvez namorando ou se casando, sem saber que são irmãos biológicos, já pensou?
Claro que eu nunca havia pensando nisso. Um "Romeu e Julieta" moderno, onde o problema não é a inimizade das famílias, mas o laço consanguíneo dos amantes, a falta de organização da clínica de reprodução que vendeu espermatozoides do mesmo macho alfa para a srta. Capuleto e para a srta. Montéquio.

Por fim, apontei para o calendário e perguntei à médica se algum casal, de fato, desejava ter quadrigêmeos. Disse que não. Que aquilo, obviamente, nunca era uma escolha. A inseminação é cara e desgastante. Para aumentar as chances de dar certo, os médicos costumam fertilizar vários embriões in vitro. É raro, mas às vezes todos vingam.
Olhei novamente para a foto do calendário. O sorriso do casal não me pareceu mais tão absurdo. Saí de lá levando um pedido para fazer um exame antimülleriano e descobrir, afinal, o volume de óvulos ainda existente dentro de mim.

O antimülleriano é um hormônio produzido pelos ovários que dá uma estimativa, de forma indireta, sobre a quantidade de óvulos. A média de uma mulher em idade fértil fica entre 1 e 4 ng/ml. O meu deu 0,16 ng/ml.
Continue lendo aqui.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

DEVOLVAM SAMA PARA SUA MÃE

Sama, um bebê de 15 meses, foi retirado da sua mãe Patrícia (que é paraguaia, vegana e indígena) há quase três meses, em 13 de agosto. Foi uma decisão da Justiça de Foz de Iguaçu, que deveria assegurar à mãe o direito a amamentar o filho. 

Ontem foi divulgado um vídeo com várias celebridades e ativistas exigindo que o bebê seja devolvido a sua mãe, com a tag #DevolvamSamaParaMae.

Publico o guest post de Marília Moreno, escritora, feminista, militante dos coletivos Mulheres da Leste e Raiz Popular, professora pública e arteterapeuta. Uma voz entre vozes pelos direitos da infância e da mulher.

Não é preciso perguntar a Patrícia como ela se sente. Sua dor é gritante! É a dor de uma alma torturada que tenta não se sufocar em desespero. Existe algo de guerra em nós mulheres quando somos atacadas assim, algo que nos alimenta em fúria e suor. É a necessidade de sempre termos de nos defender, de sermos pessoas de palavra duvidosa.

Não conheci Sama ou Patrícia, mas em contextos diferentes, conheço seu silenciamento. Mas ao tomar do conhecimento da sua situação, e da situação de inúmeras outras mulheres, não pude me calar.

Patrícia hoje personifica uma história de massacre, do abuso e da violência contra a mulher e a maternidade. Violência essa que se caracteriza do estupro à violência obstétrica, da punição jurídica ao silenciamento dentro do lar que todas nós mulheres sofremos diariamente há séculos.

Sama, criança vítima desta violência chamada patriarcado, também sofre punição ao arrancarem o seu direito ao colo materno e à amamentação. Sama é mais um ser que está em silêncio.

A história de Patrícia e Sama me chegou por uma petição: Devolvam Sama para sua mãe. Impossível não sentir empatia ao ler algo assim. Exceto pela sociopatia institucionalizada contra a mulher, qualquer pessoa que a escute clamar por justiça é capaz de perceber a atrocidade deste chamado.

Sem aviso, sem direito a se defender, Sama e Patrícia são separades por quem deveria defender seus direitos. Sob a acusação de maus tratos, Patrícia se vê sem seu bebê no colo. Mulher. Paraguaia. Guarani. Vegana. Hare Krishna. Vítima de um relacionamento abusivo com o progenitor de Sama. Acusada por ele de fazer mal a seu bebê. Teve direito de resposta? Não. Pode entregar à justiça os laudos médicos que comprovam a saúde de Sama em seu convívio materno? Não.

Meses se arrastam e somente após uma grande luta coletiva, Patrícia conseguiu o "direito" a estar com Sama por três horas diárias, medida cautelar que nem sempre é cumprida. Patrícia chora sozinha sem seu bebê. Muitas Patrícias choram sem seus bebês.

Não há força coletiva capaz de aplacar esta dor agora. Não até que estas tantas mulheres sejam ouvidas. Não até que a justiça pare de questionar a integridade destas mulheres por serem mulheres, por serem estrangeiras, por escolherem uma fé ou o veganismo, por terem força interna para denunciar os abusos sofridos por seus companheiros. Como acreditar numa justiça que se recusa a nos ouvir?

Somos julgadas antes mesmo de qualquer crime acontecer conosco. Já somos culpadas. É a norma. Mas também somos a resistência, um grito que ecoa junto! Devolvam nossa voz!

Muitas pessoas estão mobilizadas por Sama e Patrícia. Tenho acompanhado a campanha pelo Coletivo Mulheristas sempre em busca de uma boa notícia, mas tenho encontrado muita dor. 

Há muita solidariedade também. Somam-se vozes a esta voz embargada de Patrícia e Patrícias, contudo sem que haja um avanço significativo em seus casos. O que podemos fazer é também somar. Doar nossos espaços e palavras para quem está sem voz, pra quem está gritando e não é ouvida. Para quem teve seu direito de defesa negado.

DEVOLVAM SAMA PARA SUA MÃE!

Devolvam Samas para suas mães!

Devolvam a nossa voz!

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

GUEST POST: O DUPLO PADRÃO DO JULGAMENTO SOCIAL

Tássia Veríssimo é produtora editorial (UFRJ) e mestra em Literatura Brasileira. 
Trabalha na Assessoria de Comunicação do Arquivo Nacional, além de escrever para a revista Kurumat'á e para o jornal Sul Fluminense Notícias. Uma carioca amante dos pinguins e dos abraços apertados. Fiquem com ela!

Poucas coisas incomodam mais a sociedade do que a mulher que transa. Se gozar, então, pior ainda. Apesar de sermos sexualizadas desde cedo, não é visto com bons olhos que essa sexualidade seja usada a nosso favor. Devemos emular um comportamento sexy-pornô para satisfação masculina, mas não tomar as rédeas do nosso prazer.
E é muito fácil perceber isso. Quando numa discussão sobre aborto ou mesmo sobre formas dignas de parto e necessidade de se combater a violência obstétrica, a gente lê e ouve argumentos do tipo “na hora de fazer gostou, então aguenta”; “quem mandou abrir as pernas?”. Dói no fundo da alma quando eu vejo alguém –- principalmente uma mulher -– falar isso porque não passa de misoginia internalizada. É moralismo puro. É dizer que a nós cabe punição por transar. Se for fora do sagrado matrimônio é ainda pior. Engravidou do peguete aleatório? “Bem feito”. 
Ninguém lista para os homens os métodos contraceptivos ou lhes diz que “na hora de comer foi bom, agora aguenta”. A eles é cobrado apenas o pagamento da pensão quando se vai para a justiça –- o que não acontece em todos os casos, principalmente quando a mulher é pobre e sem acesso a advogado particular. Se pegar a criança a cada quinze dias e postar foto em rede social já é considerado herói.
Percebem o duplo padrão de julgamento social? Os homens podem transar livremente, com quantas quiserem e inclusive abrir mão da camisinha sob o argumento de que incomoda o prazer deles. As mulheres devem transar com o mínimo de caras possível e a elas cabe o “se cuidar” pra não engravidar, o que geralmente significa entupir o corpo de hormônios e lidar com as consequências disso na saúde e na libido. E ainda correr o risco de pegar uma doença.
Num mundo igualitário a contracepção e criação dos filhos seria algo compartilhado de fato. O prazer feminino e masculino estaria no mesmo patamar de importância. No mundo que temos hoje resta a nós mulheres, enquanto classe, o ônus da contracepção, da gravidez compulsória, da maternidade solo. O fardo é pesado e somos nós por nós. Isso não é sobre mim ou sobre você. 
Não é sobre os companheiros maravilhosos que algumas temos. Precisamos pensar no macro. Não julguemos a coleguinha. Cada uma sabe o abacaxi que descasca todo dia para ser mulher num mundo de homens.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

HISTÓRIA DE UM CASAMENTO E DO FRACASSO DA PATERNIDADE

Semana que vem saem as indicações ao Oscar 2020 e, a julgar pelo Globo de Ouro, 
A História de um Casamento (Marriage Story, veja trailer legendado) será lembrado em várias categorias, incluindo melhor filme, melhor ator (Adam Driver), roteiro e direção (ambos de Noah Baumbach, do sensível A Lula e a Baleia, que se inspirou no seu próprio divórcio com a ótima atriz Jennifer Jason Leigh para fazer História).
Eu gostei bastante. Não considero o filme uma obra-prima, como alguns vem dizendo, mas certamente vale a pena ser visto. Como ele se centra mais em Charlie, o ex-marido, que em alguns momentos parece ser mais prejudicado com o divórcio que Nicole (Scarlett Johansson), achei o filme um tiquinho machista. Os misóginos vão adorar usar História como um documentário de como os pais são privados do convívio com os filhos. Mas, claro, estamos falando de mascus, que não enxergam sutilezas. E o filme está cheio delas, e é isso que o faz tão rico. 
Esta é uma das melhores falas de História, na minha opinião. Vem logo depois de um quase monólogo em que Nicole, em close, responde perguntas sobre como é seu relacionamento com seu filho. Como a câmera fica fixada nela, não sabemos que ela está ensaiando para responder indagações numa corte, ou para uma assistente social. 
Nora Fanshaw, sua advogada, que é pintada como uma megera (interpretada por uma carismática Laura Dern, que também deve ser indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante), a interrompe num certo momento, e faz um excelente discurso feminista (minha tradução; vou deixar o discurso original em inglês abaixo): 
"As pessoas não aceitam mães que bebem vinho demais e gritam com seu filho e o chamam de babaca. Entendo. Eu também faço isso. Nós podemos aceitar um pai imperfeito. Vamos admitir, a ideia de um bom pai só foi inventada uns 30 anos atrás. Antes disso, esperava-se que os pais fossem silenciosos e ausentes e não confiáveis e egoístas, e todos podíamos dizer que queríamos que eles fossem diferentes. Mas num nível mais básico, nós os aceitamos. Nós os amamos por suas falhas, mas as pessoas absolutamente rejeitam essas mesmas falhas nas mães. Não aceitamos estruturalmente e não aceitamos espiritualmente. 
Porque a base da nossa qualquer coisa judaico-cristã é Maria, mãe de Jesus, e ela é perfeita. Ela é uma virgem que dá à luz, apoia seu filho sem piscar e segura seu corpo inerte quando ele se vai. E o pai não está lá. Ele nem fez sexo. Deus está no céu. Deus é o pai e Deus não apareceu. Então, você tem que ser perfeita, e Charlie [o ex-marido] pode ser um desastre e isso não importa. Você sempre será medida por um padrão diferente e mais alto. É uma droga, mas é como é".
Em inglês: "People don't accept mothers who drink too much wine and yell at their child and call him an asshole. I get it. I do it too. We can accept an imperfect dad. Let's face it, the idea of a good father was only invented like 30 years ago. Before that, fathers were expected to be silent and absent and unreliable and selfish, and can all say we want them to be different. 
But on some basic level, we accept them. We love them for their fallibilities, but people absolutely don't accept those same failings in mothers. We don't accept it structurally and we don't accept it spiritually. Because the basis of our Judeo-Christian whatever is Mary, Mother of Jesus, and she's perfect. She's a virgin who gives birth, unwaveringly supports her child and holds his dead body when he's gone. And the dad isn't there. He didn't even do the fucking. God is in heaven. God is the father and God didn't show up. So, you have to be perfect, and Charlie can be a fuck up and it doesn't matter. You will always be held to a different, higher standard. And it's fucked up, but that's the way it is".
Adorei a explicação religiosa para por que esperamos tão pouco da paternidade. 

quinta-feira, 4 de julho de 2019

MMS E MÃES DE AUTISTAS, UM TERRENO FÉRTIL

Aqui a segunda parte do excelente texto de Andréa Werner (veja também seu vídeo). E, claro, não deixe de ler a primeira parte deste artigo escrito especialmente para o blog.

Apesar da teoria da mãe geladeira ter ficado para trás com as novas descobertas da genética, a culpabilização materna continua.
Tudo começa na hora do diagnóstico, que nunca é fácil. Em um primeiro momento, temos a mãe preocupada com o desenvolvimento do filho de 2 anos, época em que os sintomas costumam se manifestar com mais força. A criança apresenta um atraso na fala e a mãe questiona o pediatra. 
A resposta mais comum é "seu filho não fala por falta de estímulo". Ou o famoso "você dá tudo na mão dele". A essa lista, somam-se várias outras explicações nada científicas: você teve depressão pós parto, voltou a trabalhar quando ele ainda era muito novinho, ele é filho único e mimado, você não dá limites. Culpa da mãe.
Lembro quando meu próprio filho foi diagnosticado, um mês antes de completar 2 aninhos. O neuropediatra me disse "isso é genético, nada de culpa aí". Pois eu já conheci mães que se sentem culpadas até pela genética, principalmente porque é comum a descoberta de que um ou ambos os pais também têm "um pezinho lá no autismo" após o diagnóstico da criança.
E, onde a pseudociência encontra a culpa e a desinformação, rola negócio. 
O "modus operandi" da seita do MMS é entrar nos países se infiltrando em grupos de diversas doenças e condições nas redes sociais. À primeira visão de alguém desesperado, surge o vendedor de milagres oferecendo a solução perfeita "que a indústria farmacêutica tenta ocultar, porque não dá lucro". Pode não dar lucro para a indústria farmacêutica, mas está dando para muita gente!
No caso de mães de autistas -- após 2 meses de ativismo intenso contra o MMS que incluiu infiltração em grupos do Facebook -- notei um padrão. Os charlatões criam o problema enfiando o dedo na ferida da culpa: "mãe, você intoxicou seu filho até durante a gravidez, quando tomou vacinas e remédios. Continuou intoxicando quando ele nasceu ao vaciná-lo e dar antibióticos. E é por isso que ele ficou autista". 
A ferida dói, sangra. Afinal, no fundo, aquela mãe sempre desconfiou que tinha alguma culpa nisso tudo. Ser mãe é ter culpa. Ser mãe de criança atípica é ter culpa em dobro.  
Em seguida, o charlatão oferece a solução: "tenho aqui o MMS". Segue-se aí uma sucessão de mentiras -- como a de que Rivera e Kalcker são "doutores e cientistas" -- e mais uma dúzia de links de vídeos no youtube. Todos com testemunhos lacrimosos de curas. 
E, para terminar, o processo padrão pelo qual todo culto passa: afastar a pessoa de quem pode esclarecê-la. "Não conte para o médico do seu filho que está dando isso, porque a medicina é toda comprada pelas grandes farmacêuticas". Quando questionados sobre evidências científicas que corroboram o uso do MMS, apelam para papers que citam a segurança do dióxido de cloro na purificação da água -- sem, no entanto, qualquer menção a seu uso terapêutico -- ou para o Google Academics, onde você encontra até teses de mestrado e doutorado sobre absolutamente qualquer coisa.
Por fim, tiram qualquer responsabilidade de si mesmos ou do produto. Se a criança passou mal, são duas explicações possíveis: ou é "sintoma de que o detox está funcionando", ou foi a mãe que fez o protocolo de foram errada. Ponto pra culpa materna de novo.
É frequente que as mães comecem a relatar melhoras absurdas nos filhos após o início do uso do MMS. Observo que isso vem de dois fatores: um é a própria vontade da mãe de ver uma melhora, já que ela sabe que o método é ilegal e apresenta riscos. O segundo fator é que a criança autista que está se sentindo mal, muitas vezes se recolhe, fica quietinha, até dorme mais. E isso é visto como sinal de melhora.
O ciclo não tem fim
Uma das maiores dificuldades de qualquer TV ou jornal que tenha feito matérias recentemente sobre o MMS foi encontrar mães dispostas a falar que "deu errado". Elas existem aos montes, mas não querem, em hipótese alguma, aparecer. 
Desde o início da campanha #foramms, recebemos dezenas de relatos de amigos e parentes de crianças e adolescentes que usaram o produto e convulsionaram, tiveram feridas sérias no trato gastrointestinal, ou até vieram a falecer de septicemia após perfuração no intestino ou até falência renal. Amigos ou parentes. Nunca as mães.
Aparecer significa assumir a culpa por ter sido enganada. Aparecer significa assumir a culpa de ter colocado a vida do filho em risco por uma cura que não existe. Aparecer pode significar até mesmo o fim de um casamento ou a perda da guarda da criança. Mais culpa. 
Enquanto isso, os charlatãos se aproveitam disso para dizer que "não há casos de sequelas ou morte, já que só vemos depoimentos de melhoras e curas". Como bem definiu Carlos Orsi, do Questão de Ciência, "quem não sara não liga para agradecer. Ou, numa formulação mais radical –- os mortos não falam. Todo curandeiro, seja ele sincero ou charlatão, recebe retorno predominantemente positivo".
Quebrando o ciclo
Andréa Werner menciona algumas das
doenças que o MMS jura que cura
Comecei o ativismo em 2012, escrevendo no blog Lagarta Vira Pupa. A consciência da "perda de privilégios" e da cadeia de opressões que atinge as pessoas com deficiência ficou muito clara pra mim desde o princípio. E o silenciamento das mães de pessoas com deficiência através do discurso paternalista do "você é especial e foi escolhida por Deus para esta missão" se escancarou ao conversar com tantas mulheres que chegaram até mim pelo blog.
O Estado vira as costas. Mal há diagnóstico. Não há políticas públicas para que essas crianças e adolescentes tenham terapias na qualidade e na intensidade necessárias. As escolas não estão preparadas para acolher qualquer tipo de diferença na forma de aprender.
A sociedade também vira as costas. O marido vai embora porque "especial é a mulher, ele não tem estrutura pra lidar com aquilo". Aquela mãe também passa a ser "especial demais" pra ser parte do grupo de amigas. Aquela criança é "especial demais" para ser chamada para a festinha de aniversário do coleguinha. Que fiquem as duas juntas: a mãe especial que tem esta missão e, portanto, nunca terá depressão, nunca reclamará da falta de suporte. A criança ou adolescente especial que é praticamente um anjo: não precisa de cidadania, direitos legais, acesso à educação, à saúde e ao lazer.
Machismo estrutural que impõe a culpa, mais a falta de políticas públicas, mais a falta de educação científica. Essa equação só pode gerar muito dinheiro no bolso dos vendedores de milagres.
Menos "mãe especial",
mais acolhimento
É preciso quebrar o ciclo. Não só através do investimento em políticas públicas e educação. Mas o feminismo atual também precisa abraçar estas mulheres que se encontram em posição de vulnerabilidade por tantos fatores. É acolher, empoderar e mostrar que "mãezinha especial" é um prêmio de consolação que ninguém deveria querer. E que é possível se livrar da culpa através do conhecimento. Este é o caminho.